Opinião

PL do Senado sobre abuso de autoridade cria crime de hermenêutica

Autor

  • Vinícius de Toledo Piza Peluso

    é juiz de Direito do TJSP professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos SP (Unisantos) e mestre em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

24 de julho de 2016, 8h30

“O direito da intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto nós exterminamo-nos por parágrafos” (VOLTAIRE. Tratado Sobre a Tolerância. Trad. Paulo Neves, 2a ed., São Paulo: Matins Fontes, 2000, p. 34)

Sem apresentação de qualquer justificativa razoável, foi recentemente retirado de hibernação, voltando a tramitar no Senado Federal, em rito espantosamente sumaríssimo, o Projeto de Lei do Senado 280/2016, que define os crimes de abuso de autoridade e dá outras providências.

A inusitada e injustificada tramitação-relâmpago chamou a atenção, não só do meio jurídico, mas de toda a sociedade brasileira, que, no delicado momento político, passou a indagar-se sobre as verdadeiras razões que levaram o Senado Federal a deliberar sobre tema tão específico.

Surpreende, não só a inconveniência temporal, ou seja, no meio da tormenta do maior escândalo de corrupção sistêmica que envolve a poderosa casta política brasileira, mas, também, pelos principais senadores protagonistas da medida, os quais estão sendo investigados por suposta participação direta nesse escândalo.

Assim, avultaram sentimento de inquietação e indagações sobre as latentes razões que ensejaram a retomada da tramitação do projeto de lei: a quem, de fato, interessa a inédita rapidez de sua aprovação? A que se presta o conteúdo normativo do projeto?

As respostas não são simples e fáceis, nem a presente análise tem por escopo encontrá-las, senão apenas auxiliar tal tarefa ao dar relevo, dentre do inusitado conteúdo do projeto, à figura que se pode denominar “crime de hermenêutica”, estabelecendo qual o seu destinatário e qual sua finalidade normativa.

O artigo 9°, § único, II, do PLS 280/2016, na redação original,[1] prevê que incorre nas penas do caput — de 1 a 4 anos de detenção e multa —, “quem deixa de conceder ao preso liberdade provisória, com ou sem fiança, quando assim admitir a lei e estiverem inequivocamente presentes seus requisitos”.

Desde logo se identifica aí o sujeito ativo do crime, ou seja, a quem tal construção normativa visa a alcançar, pois, nos termos do tipo penal, em regra, tal crime só pode ser praticado por magistrados (juízes de direito, juízes federais, desembargadores e ministros), de modo que se trata de tipo penal especial próprio, isto é, de crime que só pode ser praticado por quem tenha as qualidades especiais que, descritas ou pressupostas no tipo legal, fundamentam a punibilidade[2].

Outra não pode ser a interpretação, já que em nosso ordenamento jurídico-penal, com exceção dos crimes afiançáveis,[3] apenas magistrados podem conceder liberdade provisória (art. 321 do CPP). Logo, a condição pessoal de magistrado do agente ativo é qualidade especial pressuposta inerente ao tipo penal e, consequentemente, nenhuma outra pessoa pode praticar o crime descrito no inciso II do § único do art. 9° do PLS 280, de 2016.

Por sua vez, a conduta penalmente típica caracteriza-se pela não concessão da liberdade provisória ao preso, quando assim o admita a lei e estejam inequivocamente presentes seus requisitos. Aqui reside o ovo de serpente, o problema fulcral que permite denominar tal figura penal como crime de hermenêutica.

Nos termos do art. 321 do CPP, a concessão da liberdade provisória, com ou sem fiança, e/ou outras medidas cautelares, será concedida nas hipóteses em que falhem os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, noutras palavras, quando ausentes os requisitos do art. 312 do CPP, quais sejam:

a) garantia da ordem pública;

b) garantia da ordem econômica;

c) conveniência da instrução criminal;

d) necessidade de assegurar aplicação da lei penal.

Dessa forma, grosso modo, o cerne da questão da concessão da liberdade provisória se resume em verificar se ocorre, ou não, uma das hipóteses do art. 312 do CPP, pois sempre que os magistrados depararem com investigados, autuados e réus presos, e verificarem a ausência de quaisquer das circunstâncias autorizadoras da prisão preventiva, imediatamente deverão revogar a prisão ou conceder a liberdade provisória.

O grave problema está, portanto, na interpretação das hipóteses autorizadoras do art. 312 do CPP, pelos magistrados; se interpretarem que tais circunstâncias estão presentes, a liberdade provisória não será concedida, abrindo-se, com isso, possibilidade de que sua conduta possa ser considerada penalmente típica.

Basta rápido passar d’olhos nas doutrinas processuais penais para ver logo a total discordância, entre os doutrinadores, quanto ao(s) significado(s) e conteúdo(s) de cada uma das hipóteses legais autorizadoras da prisão preventiva e, por conseguinte, da concessão da liberdade provisória.[4] Tal situação se torna ainda mais aguda e caótica, se às visões doutrinárias, se somarem as jurisprudenciais.[5]

Nesse complexo e delicado universo hermenêutico, devem os magistrados, mediante fundamentação, optar pela interpretação que melhor se ajuste às circunstâncias fáticas em que possa incidir o art. 312 do CPP, decidindo pela prisão cautelar ou pela concessão da liberdade provisória.

Tal questão torna-se mais problemática, porque, depois das reformas instituídas pela Lei 12.403/11, os magistrados, ao receberem os autos de prisão em flagrante, deverão relaxar a prisão ilegal, converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, ou conceder a liberdade provisória (art. 310 do CPP).

Nestes termos, se o magistrado, ao analisar fático-normativamente auto de prisão em flagrante, entender, na interpretação, presentes os requisitos do art. 312 do CPP, converterá a prisão em flagrante em preventiva e, lógica e consequentemente, deixará de conceder a liberdade provisória.

Pois bem. Caso o preso não concorde com a decisão judicial, pedirá a revogação da prisão ou a concessão da liberdade provisória e/ou impetrará Habeas Corpus, com os mesmos objetivos, à instância superior. Se esta entender ausentes os requisitos autorizadores da custódia cautelar, concederá a liberdade provisória. Isto significará que o magistrado praticou o crime em apreço?

Se a instância superior mantiver a decisão original, haverá novo recurso para outra instância mais alta – lembremos que, no Brasil, na prática, há quatro instâncias – e, assim, sucessivamente. Suponhamos, v.g., que a liberdade provisória seja concedida no eg. Supremo Tribunal Federal.

Então, todos os demais magistrados (juízes de direito, desembargadores e ministros) cometeram o crime do art. 9°, § único, II, do PLS 280/2016, ao não conceder anteriormente a liberdade provisória? Em caso positivo, na primeira instância, responderá criminalmente apenas o juiz de direito que negou inicialmente a liberdade provisória, ou os demais juízes que autuaram posteriormente no processo-crime também responderão em caso de não concessão ex officio?

Já em segunda e terceira instâncias, responderá criminalmente apenas o relator ou também os demais integrantes da câmara, turma, grupo ou pleno, que participaram do julgamento? E no caso da existência de voto-divergente? E ministros da Suprema Corte também podem cometer esse crime?

Não deve ser esquecido, ainda, outro grave problema, já que que o referido tipo penal contém o elemento normativo inequivocamente, ao descrever o suporte fático autorizador da liberdade provisória. Segundo os léxicos, tal palavra significa algo que não contém equívocos, o que é claro, evidente, explícito, manifesto, o que não suscita dúvidas, o que só comporta uma única interpretação.

Assim, ao usar o advérbio inequivocamente na definição do comportamento penalmente proibido, o projeto de lei está absurdamente a indicar que cometerá o crime o magistrado que não conceder liberdade provisória, quando seus requisitos legais forem claros, evidentes, explícitos, manifestos, que não suscitem quaisquer dúvidas, por tolerar uma só interpretação possível, como verdadeiro elemento normativo do tipo penal.

Como se sabe, elementos normativos do tipo penal são os que não se realizam no mundo exterior e exigem sua completude e, pois, sua comprovação, mediante juízo de valor por parte do juiz-intérprete com base em sistema de valores ou parâmetros que estão fora da norma penal, seja no âmbito jurídico ou extrajurídico.[6]

Nestes termos, o tipo penal do art. 9°, § único, II, do PLS 280/2016, apresenta elemento normativo com tessitura, extrema e absurdamente, aberta, cuja complementação valorativa pelo juiz-intérprete não se acha de modo algum objetivada, por remeter o juízo de valor à subjetividade, até porque, para que a liberdade provisória seja concedida, devem estar ausentes os requisitos do art. 312 do CPP, que, conforme já visto, seja doutrinariamente, seja jurisprudencialmente, não são passíveis de interpretações claras, evidentes, inequívocas e, pois, que não suscitem dúvidas por ditar uma única interpretação possível a cada um de seus elementos.

Ou seja, o reconhecimento da prática da conduta penalmente descrita ficará a depender do juízo de valoração de cada magistrado na análise fático-jurídica da questão da concessão ou não liberdade provisória, trazendo indevida e insuportável insegurança no exercício da jurisdição criminal pelos magistrados, pois basta que conversão da prisão em flagrante em prisão cautelar seja reformada por instâncias superiores, para ser tida e juridicamente classificada como conduta penalmente típica.

Patente, assim, que o art. 9°, § único, II, do PLS 280/2016, instauraria verdadeiro crime de hermenêutica por criminalizar as interpretações dos magistrados quanto aos requisitos fático-jurídicos dos arts. 312 e 321 do CPP, ou seja, criminalizaria a própria atividade jurisdicional dos magistrados penais: os juízes serão penalmente perseguidos por interpretar a lei em desfavor de uma das partes.

Para além de críticas a outros aspectos, esse do projeto fere de morte a independência do Poder Judiciário e vai de encontro ao art. 41 da Loman (Lei Complementar 35/1979), que expressamente prescreve que, salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem, nenhum magistrado pode ser punido ou prejudicado pelo teor das decisões que proferir.

Como já notamos, a independência dos juízes para decidir e exercer a função jurisdicional com destemor é garantida pela imunidade e liberdade intelectual no respectivo exercício, especialmente quanto à interpretação da lei, não podendo ser punidos em seu desempenho, o que inegavelmente se estende (…) ao conteúdo ou teor das decisões que proferirem, desde que, evidentemente, não incorram em impropriedade ou excesso de linguagem[7].

Trata-se de verdadeira prerrogativa, que, na correta acepção técnica, significa o direito especial que, inerente a cargo ou profissão, que atende a interesses públicos, ainda que relacionados diretamente à pessoa titular, não dizendo respeito, pois, a simples privilégio que atenderia unicamente a interesses pessoais e que, dessa forma, não estaria de acordo com a ordem constitucional (art. 5.º, I, da Constituição Federal de 1988).

Ora, as prerrogativas da Magistratura Nacional não são privilégios concedidos à pessoa do juiz, mas, sim, direitos especiais atribuídos em razão da vital e importante natureza do cargo que ocupa e que visam unicamente ao interesse da própria sociedade, oferecendo condições mínimas de garantia da dignidade e da independência no exercício do cargo e do desempenho imparcial da função jurisdicional.[8]

Oferecem-se, assim, condições eficazes para a independência e imparcialidade das pessoas responsáveis pelo exercício da jurisdição, mantendo tradicional proteção endereçada individualmente aos juízes, pois quem quer que cometa a outrem alguma tarefa, assume, no mesmo passo, o compromisso de lhe garantir as condições do seu bom desempenho.

A sociedade outorga aos juízes o encargo de decidir conflitos entre pessoas; mas, no decidir, os juízes desagradam, quase sempre, à parte vencida. E esta, quando poderosa e menos nobre, pode mover-lhes, em desforra, toda a sorte de perseguições. Se poderosa na política, em países sem forte cultura da legalidade, a desforra pode ir, para além de perseguições administrativas, à própria criminalização do ato de decidir, razão pela qual não é justo, nem lógico que a sociedade os deixe expostos à sorte tão adversa, por serviços que lhe prestem.

Dessa forma, quando não seja por dever indeclinável, é para o bem mesmo da Justiça que a sociedade, ao organizar o aparelho judiciário, só não construirá sobre a areia, se assegurar aos juízes, pelo menos, a prerrogativa de que nenhum deles possa ser criminalmente punido ou prejudicado pelo teor das decisões que proferir.

Garantir tal prerrogativa é barreira oposta aos maus, em defesa dos bons, na distribuição da Justiça, como fundamento insubstituível da independência pessoal dos juízes em favor da própria sociedade,[9] evitando a mordaça que lhes subtrairia o direito de interpretar livremente a lei e os aprisionaria no plano de decisões mecânicas, lineares, uniformes e injustas, ao instituir policiamento político-ideológico do Poder Judiciário.

Para finalizar, caindo como luva à presente análise, nunca é demais lembrar a célebre advertência de Rui Barbosa, para quem: “Para fazer do magistrado uma impotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o Juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos. Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortesã. Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema de recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo[10].


[1] Disponível: <http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=196675&tp=1>. Acesso em: 12.07.2016.

[2] v. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. parte geral. Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2006, p. 112-113.

[3] De maneira residual, mas sem alterar sua natureza jurídica especial, tal crime também pode ser praticado por delegado de polícia, nas hipóteses de crimes afiançáveis (art. 322 do CPP). Diz-se residual, pois a concessão da liberdade provisória mediante fiança por autoridade policial só ocorre nas hipóteses de prisão em flagrante e do art. 322 do CPP, observando-se que a concessão ou não pode, a qualquer momento, ser revista pelos magistrados (art. 282, § 5°, do CPP). Assim, para além de tal circunstância específica, o conteúdo normativo do art. 9°, § único, II, do PLS n° 280, de 2016, s.m.j., em sua abrangência, visa especificamente aos magistrados.

[4] Apenas para exemplificar, veja-se a questão doutrinária sobre o requisito autorizador da “garantia da ordem pública”. Para Magalhães Noronha, tal hipótese de prisão preventiva visa a evitar que o criminoso pratique novos crimes e que seja vítima de vindita popular, do ofendido e sua família (Curso de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1964, p. 221). Já para Vicente Greco Filho, a hipótese abarca a proteção de interesse de segurança de bens juridicamente protegidos, ainda que de apenas um indivíduo, implicando a necessidade da instrução criminal e a  segurança da aplicação da pena (Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 243). Por sua vez, José Frederico Marques entende que tal hipótese se caracteriza quando a liberdade do agente gere a possibilidade da prática de novos crimes ou cause repercussões danosas e prejudiciais no meio social (Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1997, v. IV, p. 63). Para Gustavo Badaró, tal hipótese é inconstitucional, mas, caso se entenda sua constitucionalidade, deve, em consonância com o art. 282, I, do CPP, ser interpretada unicamente como forma de inibição da reiteração criminosa pelo agente (Processo penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 740).

[5] Exemplificando, segundo a jurisprudência, estão abarcadas no requisito autorizador da “garantia da ordem pública”: “comoção social” (STJ – HC n° 7.429); “periculosidade do agente” (STJ – RHC n° 61.750); “credibilidade da justiça” (TJ/SP – HC n° 2112736-68.2016.8.26.0000; HC n° 2114840-33.2016.8.26.0000); “clamor público” (STJ – HC n°  353.459; HC n° 65.635; HC n° 66.167); “prejuízo à sociedade” (TJ/SP – HC n° 2073589-35.2016.8.26.0000); etc.

[6] v. OSSANDÓN WIDOW, María Magdalena. La formulación de tipos penales. Valoração crítica de los instrumentos de técnica legislativa. Santiago: Editorial Jurídica, 2009, p. 97 e ss..

[7] PELUSO, Vinicius de Toledo Piza; GONÇALVES, José Wilson. Comentários à lei orgânica da magistratura nacional. Lei complementar 35/1979 – LOMAN. São Paulo: RT, 2010, p. 107.

[8] PELUSO, Vinicius de Toledo Piza; GONÇALVES, José Wilson. Op. cit., p. 88.

[9] PELUSO, Vinicius de Toledo Piza; GONÇALVES, José Wilson. Op. cit., p. 68-69.

[10] Obras completas. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1896, v. XXIII, t. 3.

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