Opinião

Ao menos no litoral norte gaúcho, prende-se muito e prende-se muito mal

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23 de julho de 2016, 9h10

Introdução
Prende-se muito no Brasil? Prende-se mal? Em que pese seu caráter excepcional, percebe-se, na atualidade, um uso demasiado da prisão preventiva.

Com efeito, segundo o relatório do Conselho Nacional de Justiça (2014), o Brasil possuía, até aquele ano, 711.463 pessoas presas, ficando em 3º lugar no ranking mundial. Estavam à frente somente os Estados Unidos (em primeiro) e a China (em segundo), sendo que a média de pessoas presas provisoriamente é de 41%.

Números que causam espécie, tendo em vista que a prisão cautelar é (deveria ser) medida de extrema exceção. Nessa senda, cumpre lembrar que, com o advento da Lei 12.403/2011, o Código de Processo Penal passou a contemplar o cabimento de novas medidas cautelares diversas da prisão preventiva, o que justifica, ainda mais, a excepcionalidade da segregação cautelar extremada.

Diante disso, considerando os números excessivos de decretos prisionais cautelares no Brasil, buscou-se, na presente pesquisa, mediante a coleta de dados obtidos junto ao site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o levantamento de dados referentes aos Habeas Corpus impetrados a partir da vigência da Lei 11.403/2011 (em 5 de julho de 2011), até o dia 5 de janeiro de 2014[1], em face das ordens prisionais decretadas pelos juízos das comarcas do litoral norte daquele estado.

Foram analisados os casos referentes às condutas tipificadas no artigo 155 do Código Penal. Isso porque, em que pese haver circunstâncias que qualifiquem o tipo penal em análise, o preceito secundário da referida norma não prevê sanções elevadas.

Em vista disso, verificou-se que foram julgados, nesse período (de 5/7/2011 a 5/1/2014), 108 Habeas Corpus, sendo que 59 dessas ordens foram denegadas. Dessas 59 ordens denegadas, 58 foram embasadas na garantia da ordem pública, e, dessas 58, a reincidência e os maus antecedentes foram fatores determinantes para manutenção das prisões.

Números esses que, de plano, já causam certa estranheza, em razão de uma aparente “padronização” dos decretos prisionais e uma, de se dizer, “estigmatização” do reincidente, ou punição do “inimigo”.

Prisão preventiva: prisão antecipada e aplicação de pena mais gravosa – (in)aplicabilidade do princípio da proporcionalidade
Inobstante seu caráter instrumental e excepcional, calcada sob os princípios da provisionalidade, provisioriedade e, notadamente, sob o princípio da proporcionalidade (LOPES JÚNIOR, 2015, p. 602-605), em 58 das 59 decisões denegatórias a reincidência e/ou os maus antecedentes, conforme acima referido, foram fatores determinantes às denegações de todas essas ordens.

Nessa trilha, vale transcrever a lição de Lopes Junior (2013, p. 115), in litteris:

No que tange à prisão preventiva em nome da ordem pública sob o argumento de risco de reiteração de delitos (periculosidade do agente), está se atendendo não ao processo penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo penal.

Além de ser um diagnóstico impossível de ser feito (salvo para os casos de vidência e bola de cristal), é flagrantemente inconstitucional, pois a única presunção que a Constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em relação a fatos futuros.

De lembrar que a reincidência (já) é requisito previsto no inciso II, do artigo 313, do Código de Processo Penal.

Por essa linha de raciocínio, devido à ausência de definição precisa do que vem a ser garantia da ordem pública, pautando-se em fatos pretéritos, no falacioso discurso de evitar que determinadas pessoas voltem a reiterar no mundo do crime, evidencia-se que decisões são tomadas com base no que a doutrina denomina Direito Penal do Inimigo, que se caracteriza, segundo Jakobs e Meliá (2008, p. 35-36), por três principais elementos, a saber: o adiantamento da punibilidade, a previsão de penas desproporcionalmente altas e a relativização ou mesmo a supressão de certas garantias individuais.

Outro dado que chama a atenção e causa perplexidade é que apenas um agente (isso mesmo, apenas um!) foi condenado — após ter a prisão preventiva decretada no juízo de origem e mantida pelo tribunal — a cumprir pena no regime fechado[2]. Ainda assim, o recurso de apelação interposto pela defesa do réu foi provido, readequando-se o quantum e o início do cumprimento da pena aplicada, devendo esta ser cumprida, inicialmente, no regime semiaberto. Em outras palavras, e, em suma, nenhum indiciado ou réu, após permanecer preso provisoriamente, foi condenado, definitivamente, a cumprir pena no regime fechado.

Da gravidade abstrata do delito e a ausência de fundamentação
Atribuir a gravidade do crime (furto qualificado pelo rompimento de obstáculo e/ou pelo concurso de agentes) e a afirmação abstrata de que o réu oferece perigo à sociedade para justificar a imposição da prisão preventiva, conforme decisões encontradas durante este estudo[3], são argumentos rechaçados na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2006).

Da mesma forma, é o entendimento na esfera do Supremo Tribunal Federal, conforme afirmou o ministro aposentado Cezar Peluso: “[…] Vamos voltar ao Código Mussolini. Ou seja, basta que se pratique o crime tal, e está eliminada a possibilidade de prisão” (BRASIL, 2009).

Afora a flagrante ilegalidade da prisão preventiva com base na gravidade abstrata do delito, verificaram-se decisões sem qualquer motivação idônea, que não o risco de reiteração delitiva. Por vezes, decisões que apenas transcrevem acórdãos, indicando tão somente a textualidade literal da lei. Veja-se: “[…] necessária a manutenção da prisão preventiva para garantir a ordem pública, nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal” (RIO GRANDE DO SUL, 2013).

Para decretação da prisão preventiva, não basta a mera explicitação textual dos requisitos elencados no artigo 312 do Código de Processo Penal, sendo imperativo que a alegação abstrata ceda à demonstração concreta e assente de que tais condições estão efetivamente presentes.

Sendo vedadas, por exemplo, ordens de prisões como ocorrido em Piracicaba (SP), no qual o magistrado daquela comarca utilizou uma espécie de formulário para “fundamentar” sua decisão, levou os ministros da 2ª Turma do STF a afastarem a Súmula 691[4], a conhecerem o pleito de Habeas Corpus, em razão de situação manifestamente contrária à jurisprudência da corte suprema, e a concederem, liminarmente, a ordem, suspendendo os efeitos da prisão preventiva decretada pelo juízo a quo.

Na decisão, asseverou o relator do Habeas Corpus, ministro Gilmar Mendes, in litteris:

A decisão de primeira instância, que converteu o flagrante em prisão preventiva, constitui mero formulário pré-formatado, um modelo contendo fórmulas vazias e desvinculadas de qualquer base empírica. Cingiu-se a apontar a presença dos pressupostos da custódia cautelar, discorrendo acerca dos malefícios que o tráfico de drogas traz à sociedade.

Tanto é evidente se tratar de modelo pré-pronto que, ao proferir a decisão ora sob comento, o magistrado de origem nem ao menos adaptou ao caso concreto o gênero dos substantivos e flexões gramaticais constantes do texto. (BRASIL, 2015).

A ministra Cármen Lúcia, nessa mesma trilha, exprobrou decisões como aquela: “[…] É a vida de uma pessoa que eles tratam como se fosse papel”. Afirmou a magistrada, com acepção, ao acompanhar o voto do ministro relator.

Considerações finais
Resta indubidoso, diante do exposto, que, quando da decretação da prisão preventiva, o julgador não deve se limitar a analisar os requisitos presentes no fumus commissi delicti e no periculum libertatis. Ou seja, da probabilidade, baseada em uma cognição sumária, de que o agente seja o autor de um delito e que este ponha em risco o andamento do processo. São elementos essenciais, elementar, mas não suficientes para a prisão preventiva. Deve-se haver, outrossim, um juízo prognóstico a considerar, além da probabilidade de uma condenação, a probabilidade de que seja imposta uma pena privativa de liberdade a ser executada (BADARÓ, 2008, p. 393).

O falacioso argumento, ainda que de forma dissimulada, adepto aos discursos autoritários e utilitaristas, no sentido de que a prisão processual não pode ser considerada como pena antecipada, em razão de que sua natureza é diversa da prisão sanção[5], não resiste a menor análise crítica, demonstrando entendimento que suplanta e extirpa os princípios e garantias constitucionais e processuais penais.

Seja preso processualmente, seja preso após sentença condenatória, o investigado ou réu sofre os mesmos efeitos: a restrição da liberdade corporal, o segregamento em presídios e penitenciárias superlotados, que remontam à Idade Média, onde detentos provisórios e aqueles que já possuem condenação dividem o mesmo espaço, um descontrole total sobre a massa carcerária que tem como consequência a atual situação calamitosa do sistema prisional brasileiro, como, há muito, já conhecido.

Pode-se concluir, pois, diante do estudo em comento, que, ao menos no litoral norte do Rio Grande do Sul, prende-se muito e prende-se muito mal.

*Artigo científico apresentado ao curso de Direito da Faculdade Cenecista de Osório, sob orientação do professor Saulo Bueno Marimon.


[1] Ou seja, durante o período de dois anos e seis meses — tempo esse que se justifica em razão do advento das novas medidas cautelares no Código de Processo Penal e o lapso temporal suficiente para conclusão dos processos originários de primeiro grau. Mesmo assim, muitos processos não estavam findados quando da conclusão desta pesquisa, em novembro de 2015.
[2] Processo 073/2.12.0007502-0, comarca de Tramandaí/RS (TJ-RS).
[3]  Nesse sentido, TJ-RS: HC 70054234919, HC 70051242634.
[4] Súmula 691. Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de Habeas Corpus impetrado contra decisão do relator que, em Habeas Corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.
[5] Nesse sentido, TJ-RS: HC 70057073231, HC 70054394614.


Referências
BADARÓ. Gustavo Henrique Righi Ivahy. A prisão preventiva e o princípio da proporcionalidade: proposta de mudanças legislativas. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 103, p. 381-408, jan./dez. 2008. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/67811-89242-1-pb.pdf>. Acesso em: 7/11/2015.
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