Senso Incomum

Abusos, não cidadania e WhatsApp:
a divina comédia no Brasil

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21 de julho de 2016, 8h00

Spacca
Em A divina comédia, Dante Alighieri, acompanhado pelo poeta latino Virgílio, visita os três mundos para onde vão todos aqueles que partiram da Terra: Inferno, Purgatório e Paraíso. Sua concepção cosmológica e teológica é influenciada principalmente pela filosofia aristotélico-tomista e, por isso, pode ser lida como a Summa Theologica em versos. Na primeira parte, quando os dois poetas chegam ao Inferno para conhecerem todos os círculos onde os pecadores são retribuídos por castigos correspondentes aos pecados que cometeram na Terra, ambos se deparam com o seguinte aviso: “Deixai toda esperança, ó vós que entrais”. E deixai os celulares. É proibido usar WhatsApp no inferno. Bingo.

Guardadas as devidas proporções — pois existem muitas diferenças entre as culturas medieval e moderna —, acredito que existe uma certa semelhança entre o Brasil da atualidade e a advertência colocada na porta do Inferno.  Pelo menos com relação ao papel que o direito deve(ria) desempenhar numa ordem política democrática, temos motivos de sobra para colocar o mesmo aviso nas portas das Faculdades de Direito, dos Fóruns, do STF, do MPF, do Congresso Nacional e da presidência da República: “Deixai toda esperança, ó vós que entrais pelas instituições brasileiras”. “—E não usai WhatsApp.

Os constantes desmandos dos agentes públicos corroem qualquer esperança de que, um dia, a democracia brasileira vai funcionar. São tantas as aberrações jurídicas – comunicadas ou não por WhatsApp –  que fica difícil acreditar que o direito cumpre algum papel relevante entre nós. Toda comunidade política democrática conta com a racionalidade jurídica para impedir que abusos e arbitrariedades sejam praticados por agentes públicos. Entretanto, sem a superação de uma concepção instrumental do direito, que autoriza discricionariedades e voluntarismos de todos os gostos, fica difícil alcançar um avanço civilizatório para uma ordem política estável e democrática.    

Com efeito. Leio que tramita no parlamento um projeto de lei (PLS 280/2016) pretendendo atualizar a regulamentação sobre crimes de abuso de autoridade (a lei vigente é a 4.898/1965). Muito mais fruto das circunstâncias da “lava jato”, de todo modo é um projeto que merece um processo de reflexão. Sua leitura já nos arrasta para um cinzento mundo de especulações e estranhamentos. Nem vou falar das sombrias especulações políticas em torno dessa tramitação, a guerra entre Poderes da República e etc. Trabalhemos sob a ficção necessariamente útil de que ainda há República, um “como se” (als ob). Faço, aqui, algumas observações estritamente jurídicas.

Triste é o país que se diz democrático em que seja necessária uma lei para proibir agentes públicos de constranger pessoas presas a exibir seu corpo à curiosidade pública (artigo 11 do projeto) ou ser fotografada ou filmada, como um troféu, para divulgação aos meios de comunicação (artigo 12). Acredito que a objeção kantiana de que não se pode tomar seres humanos como objetos, já deveria ter dado conta disso. Em tempos de reificação do humano numa sociedade do espetáculo, o filósofo de Königsberg ainda tem lições importantes a serem discutidas em terrae brasilis.  

Daí a pergunta: Precisamos de lei para proibir que a autoridade negue, sem justa causa, acesso de defensor aos autos de procedimento investigatório (artigo 32)? Triste país.  Precisamos de lei para dizer que a autoridade não pode instaurar investigação criminal em desfavor de alguém, sem indício de crime, pela simples manifestação artística, de pensamento, de convicção política, filosófica ou religiosa (artigo 27)?

Por mais bizarro que possa parecer, há que se perguntar: não seria mesmo necessário? Essas coisas não acontecem? O mais triste, porém, é ter a perspectiva de que a lei, além de ter seus problemas, será esvaziada quando interpretada/aplicada. Esvaziada de seu conteúdo garantidor, por intermédio de mil e uma gambiarras jurídicas (lembremos dos dribles da vaca aplicados ao pobre do CPC e ao artigo 212 do CPP, sem esquecer o modo como se decreta prisão preventiva em Pindorama) que vão justificar os abusos contra a patuleia. E usada como instrumento de vingança e intimidação das autoridades quando suas ações atingirem o "andar de cima".

Afinal, precisávamos de lei para dizer que uma decisão judicial deve considerar todos os argumentos deduzidos no processo e não pode se limitar, por exemplo, a invocar enunciado de súmula ou precedente sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta aos fundamentos? 

Essas obrigações já não eram, desde sempre, implicações do princípio do contraditório? Já não dizíamos isso há anos? E, no entanto, mesmo depois do artigo 489, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil, ainda não continua tudo como dantes?

Eis as questões sobre as quais temos de refletir. Muito (ainda). A dogmática jurídica brasileira necessita, urgentemente, dar meia volta e olhar para trás para ver o que é isto que foi produzido. Quer dizer: Isto tudo não seria reflexo de uma dogmática que, historicamente, mais apoiou as estruturas sociais díspares e injustas do que se empenhou em construir, de fato, uma blindagem contra o autoritarismo sempre presente no establishment, seja ele de que corrente ideológica for? Ou então, de uma dogmática, tradicionalmente positivista (no sentido do formalismo), que se limitou a “descrever” – e, já com isso, prescrevendo –  o jurídico apenas como uma estrutura, sem adentrar nos meandros de sua legitimação/justificação?

Claro. Sei da limitação da lei. Um enunciado normativo (lei, Constituição) não move montanhas. Mas pode impedir de os montanheses serem chicoteados, pois não? Por isso, sei que ela importa. Como diz o historiador  E.P. Thompson, o direito importa e é por isso que nos importamos muito com tudo isso. O que fez a dogmática? Investiu na fabricação de manuais e compêndios. Investiu na discussão da verdade real. Jogou as fichas no livre convencimento. Acreditou firmemente no protagonismo judicial. Afinal, o protagonismo sempre é “motivado”, certo? A palavra “motivado” sempre teve o condão de absolver, aparentemente, a aposta no solipsismo judicial.

A mesma dogmática jurídica nunca se preocupou com o instrumentalismo processual. Ao contrário. O instrumentalismo ainda é dominante. Hoje, vemos o resultado de tudo isso. Avançamos “tanto” que “precisamos” de uma lei como a do abuso de autoridade como acima relatei. Claro: em um país em que o convencimento é “livre-desde-que-motivado”, a prisão pode ser decretada por sentimento judicial. Motivo? Sempre se arruma a posteriori. Um juiz não pode trancar o funcionamento do WhatsApp? Do que ele precisa? Nada. Apenas da “vontade de poder”. Aliás, está lá no cap. 8º. da TPD de Kelsen: a interpretação feita pelo juiz é um ato de vontade. Decisionismo: eis a regra de Pindorama.

E, pior: apostamos tanto nos protagonismos que chegamos ao cúmulo de que os juízes e tribunais só obedecem às leis com as quais simpatizam. Nem mesmo fazem controle de constitucionalidade quando se negam a aplicar uma lei. O que fizeram com o artigo 212 do Código de Processo Penal? O que estão fazendo com o artigo 489 do CPC? De que está servindo a exigência/obrigatoriedade de coerência e integridade do artigo 926 do CPC? Os processualistas, em vez de conter o poder judicial, bradam aos quatro ventos que “agora vivemos um sistema de precedentes”. Mas, por favor: o que é um sistema? Qual é o conceito de “sistema”? E o que é um precedente? Súmula é precedente? Jurisprudência é precedente? Mas que raios de “sistema” de precedentes é esse?[1]

De quem é a culpa “disso tudo”? Culpa daquilo que é condição do direito: a dogmática jurídica, que se acostumou a servir de biruta de aeroporto dos tribunais. Uma dogmática transformadora e reflexiva…nunca tivemos. A dogmática fez tanto e tão mal que até hoje a maioria dos professores nas salas de aula das mais de mil faculdades não sabe distinguir regra de princípio e vai destilando a catilinária de que princípios são valores. E positivismo para os professores “destes tempos” é ainda o velho positivismo. E ainda diz: “o juiz boca da lei morreu; agora é a vez do juiz dos princípios”. Fujamos para as montanhas. Antes que façam uma lei nos proibindo de fugir para as montanhas. A menos que os juízes não gostem dessa lei. Neste caso, não fugiremos… Afinal, aplica-se no Brasil apenas o que se quer e como se quer.

Talvez seja por isso que precisemos de leis como a do abuso de autoridade. Para dizer coisas óbvias, mas que, mesmo legisladas, dificilmente serão cumpridas. Talvez por isso precisemos do artigo 489 do CPC. O grande problema é: como fazer com que seja cumprido? Como impedir que um(a) juiz(a) suspenda o WhatsApp em um regime democrático, prejudicando dezenas de milhões de usuários, a ponto de se exigir uma suspensão liminar por parte do STF? Afinal, o poder do juiz(a) é ilimitado, pois não? Ou, como diria um processualista inserido “nessa dogmática-que-acredita-no-protagonismo”, o juiz forma a sua decisão por livre convencimento, bastando, depois, motivá-lo… Entenderam?

Triste Pindorama. Pior: vamos tão mal que o tal projeto – objeto principal desta Coluna – estabelece que abuso de autoridade depende de representação. É de farfalhar. Ou de chorar. Vai ver que o crime é de menor potencial ofensivo. Bingo. Vai ver que é isso…mesmo! Esse Pindorama… “Deixai toda esperança, ó vós que entrais”.

 

Nota: como estou no exterior, a Coluna não pode ser mandada por WhatsApp. Mas li com alegria que a suspensão dada pelo presidente do STF foi comunicada por WhatsApp (se não foi, de qualquer modo dá uma boa história e teorizações sobre paradoxos: se todos que usam WhatsApp ficaram sem WhatsApp e a juíza usa WhatsApp, como ela comunicou o WhatsApp? Algo como o paradoxo do cretense: todos os cretenses são mentirosos; quem disse isso foi um cretense. Logo, o que ele disse é uma mentira; logo, os cretenses não são mentirosos… Como sair dessa?).


[1] Georges Abboud e eu comentamos o art. 927 do CPC para o Comentários ao CPC (Saraiva, 2016). Ali, criticamos essa falácia de “sistema de precedentes”. Demonstramos que há um conjunto de provimentos vinculantes. Nada mais do que isso. Portanto, antes de criticar a minha crítica, há que ler os nossos Comentários sobre o artigo 927. De cabo a rabo.

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