Opinião

Regras para contabilidade de instituições financeiras têm aparente conflito

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18 de julho de 2016, 6h40

Diferentes diplomas legais conferem ao Conselho Monetário Nacional (CMN), ao Banco Central do Brasil (BCB) e à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) competências para regulamentar os agentes e as atividades exercidas no âmbito dos mercados financeiro e de capitais, no Brasil. Em razão da interseção dos nichos mercadológicos em que incidem as regras editadas por tais entidades, costumeiramente, surgem aparentes conflitos entre comandos legais e regulamentares, demandando um esforço interpretativo para a obtenção do exato sentido e alcance das normas emanadas do CMN, do BCB e da CVM.

Observa-se essa proximidade de competências normativas nas normas que tratam das demonstrações contábeis realizadas pelas instituições financeiras. Nesse sentido, a Lei 6.385, de 7 de dezembro de 1976, em seu artigo 22, parágrafo 1º, outorga à CVM a competência para expedição de normas aplicáveis às companhias abertas, no que tange às suas demonstrações financeiras. O mesmo diploma, com redação dada pelo Decreto 3.995, de 31 de janeiro de 2001, deu tratamento diferenciado às instituições financeiras e demais entidades autorizadas a funcionar pelo BCB, submetendo-as a espectro normativo específico, com vistas às peculiaridades dessas pessoas jurídicas e do sistema no qual estão inseridas. Nessa via, o mencionado artigo 22, parágrafo 2º, da Lei 6.385, de 1976, determina, que:

“Art. 22. Considera-se aberta a companhia cujos valores mobiliários estejam admitidos à negociação na bolsa ou no mercado de balcão.
§ 1o Compete à Comissão de Valores Mobiliários expedir normas aplicáveis às companhias abertas sobre:
(…)
II – relatório da administração e demonstrações financeiras;
(…)
IV – padrões de contabilidade, relatórios e pareceres de auditores independentes;
(…)
§ 2o As normas editadas pela Comissão de Valores Mobiliários em relação ao disposto nos incisos II e IV do parágrafo 1o aplicam-se às instituições financeiras e demais entidades autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, no que não forem conflitantes com as normas por ele baixadas.”

Ocorre que, posteriormente, a Lei 11.941, de 27 de maio de 2009, também dispôs sobre a matéria, em seu artigo 61, prevendo que:

“Art. 61. A escrituração de que trata o artigo 177 da Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976, quando realizada por instituições financeiras e demais entidades autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, inclusive as constituídas na forma de companhia aberta, deve observar as disposições da Lei no 4.595, de 31 de dezembro de 1964, e os atos normativos dela decorrentes. “

Em uma leitura preliminar, poder-se-ia entender que as disposições acima transcritas são antagônicas e que, por isso, o artigo 61 da Lei 11.941, de 2009, teria revogado tacitamente o parágrafo 2º do artigo 22 da Lei 6.385, de 1976. No entanto, é preciso analisar o respectivo histórico normativo e as atribuições dos entes administrativos mencionados pelo legislador, de forma a interpretar as regras adequadamente e, assim, definir, de forma precisa, quais normas devem ser observadas pelas instituições financeiras e demais entidades autorizadas a funcionar pelo BCB, na elaboração de suas respectivas demonstrações contábeis.

Inicialmente, verifica-se que a Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964, em seu artigo 4º, inciso XII, outorgou competência ao CMN para “expedir normas gerais de contabilidade e estatística a serem observadas pelas instituições financeiras”. Por oportuno, observa-se, ainda, que o mesmo diploma legal dispôs que o BCB tem o poder de exigir, na forma que vier a determinar, dados e informes das instituições sob sua supervisão, para o fiel desempenho de suas atribuições legais (artigo 37).

Em seu turno, a redação original do artigo 22 da Lei 6.385, de 1976, não previa qualquer dispositivo aplicável especificamente às instituições financeiras e demais entidades autorizadas a funcionar pelo BCB. Tal quadro alterou-se somente com a vigência da Lei 9.447, de 14 de março de 1997, que incluiu o parágrafo 2º no mencionado artigo 22, assim estabelecendo:

“§ 2º O disposto nos incisos II e IV do parágrafo anterior não se aplica às instituições financeiras e demais entidades autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, as quais continuam sujeitas às disposições da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, e aos atos normativos dela decorrentes”. (Grifos inautênticos)     

A alteração legislativa teve o propósito de elucidar que as instituições supervisionadas pela autoridade monetária não deveriam observar, na elaboração de suas demonstrações financeiras, as normas expedidas pela CVM, mas, sim, as regras da Lei nº 4.595, de 1964, e os atos normativos dela decorrentes, editados pelo CMN e pelo BCB.

No entanto, o artigo 22 da Lei 6.385, de 1976 foi alterado com a edição do Decreto 3.995, de 31 de outubro de 2001, responsável pela redação atual do referido dispositivo legal. A partir dessa norma, restou estabelecida a possibilidade de as instituições financeiras e demais entidades autorizadas a funcionar pelo BCB, constituídas como companhias abertas, submeterem-se a normas editadas pela CVM, desde que estas não fossem conflitantes com as regras emanadas daquela autoridade monetária.

Importante salientar que a opção de alterar a Lei 6.385, de 1976, por meio de decreto autônomo, espécie normativa com fundamento de validade extraído diretamente da Constituição Federal, fundamentou-se na assertiva de que a inovação traria apenas atribuições a um ente administrativo, enquadrando-se no disposto no artigo 84, inciso VI, “a”, da CF. Nessa via, a Exposição de Motivos do Decreto 3.995, de 2001, dispôs que:

“Em razão dos vetos a diversos dispositivos do projeto de lei que modifica a lei das sociedades anônimas, bem assim a legislação relativa à Comissão de Valores Mobiliários, vetos esses em razão de vício de iniciativa, faz-se necessário preencher lacuna normativa daí advinda. (…)

E o fazemos em projeto de decreto autônomo, espécie normativa primária (“primária” porquanto fundada diretamente na Constituição) retomada pela Emenda Constitucional 32, de 11 de setembro de 2001. Em verdade, o decreto passou a ser, a partir de então, o único instrumento normativo primário apto a versar sobre atribuições e estruturação intestinas dos Ministérios e órgãos da Administração.”

No que concerne à Lei 11.941, de 2009, cabe elucidar que a sua edição se deu em um contexto de reforma nas normas sobre a elaboração e divulgação de demonstrações financeiras pelas companhias, com o intuito de compatibilizar as normas contábeis nacionais aos padrões internacionais de contabilidade. Essas alterações normativas exigiram adaptações tributárias, o que foi viabilizado pela Medida Provisória 449, de 3 de dezembro de 2008, posteriormente convertida na Lei 11.941, de 2009.

Volvendo à Lei 6.385, de 1976, nota-se que o seu artigo 22, na redação em vigor, contêm, em suma, regras de competência relativas a procedimentos e aspectos formais, pois prevê a prerrogativa de a CVM expedir normas sobre a elaboração de relatórios ou o estabelecimento de padrão a ser seguido na remessa de informações àquela autarquia, permitindo que esta obtenha o conhecimento adequado da condição financeira de cada instituição supervisionada. Tais regras têm, portanto, o escopo de viabilizar o adequado exercício das atribuições de supervisão do ente administrativo, justificando a veiculação em decreto autônomo indicada no capítulo anterior.

A menção direta ao BCB, no parágrafo 2º do artigo 22 da Lei nº 6.385, de 1976, como a entidade a quem as instituições sujeitam-se primariamente, reforça o caráter procedimental das regras, pois, como salientado acima, cabe à autoridade monetária estabelecer a forma de fornecimento de dados pelas entidades que supervisiona, para que possa exercer fielmente suas atribuições (consoante o artigo 37, da Lei 4.595, de 1964).

Infere-se, portanto, que o artigo 22 da Lei nº 6.385, de 1976, indica, sem inovar em termos materiais – leia-se, regras gerais sobre contabilidade – a autoridade competente para estabelecer modelos e procedimentos de prestação e disponibilização de dados, para fins de supervisão, ressaltando, em seu parágrafo 2º, a especificidade do Sistema Financeiro Nacional e, por conseguinte, a aplicação apenas subsidiária, nesse setor, das regras operacionais editadas pela CVM.

Por outro lado, as normas gerais sobre contabilidade têm a seguinte topologia: no caso das sociedades anônimas abertas em geral, encontram-se previstas na Lei nº 6.404, de 1976; e, no caso específico das instituições integrantes do sistema financeiro, nas regras editadas pelo CMN, consoante o disposto no artigo 4º, inciso XII, da Lei 4.595, de 1964.

Com efeito, o advento do Decreto 3.995, de 2001, não alterou em nada a competência do CMN para editar normas gerais sobre contabilidade dirigidas às instituições financeiras. Deve-se considerar geral a norma contábil que tenha inequívoco conteúdo material, ou seja, que estabeleça conceitos e definições a serem observados pelas instituições integrantes do sistema financeiro, na elaboração de suas demonstrações financeiras.

A propósito, é relevante destacar ainda que a matéria contábil se divide em técnicas, sendo as principais: (i) escrituração; (ii) demonstrações contábeis; (iii) análise de demonstrações contábeis; e (iv) auditoria. Naturalmente, a definição, no âmbito do sistema financeiro pátrio, dos conceitos e padrões atinentes a cada uma das referidas categorias compete ao CMN, como determinado pelo artigo 4º, XII, da Lei nº 4.595, de 1964.

A Lei 11.941, de 2009, por sua vez, apenas corrobora o quadro acima exposto, ao determinar, em seu artigo 61, que as instituições supervisionadas pelo BCB, inclusive as constituídas como companhias abertas, observem as disposições da Lei 4.595, de 1964, bem como os atos normativos dela decorrentes, em suas escriturações.

Vale repetir que, previamente à edição da Lei 11.941, de 2009, houve grande alteração nas normas relativas à elaboração e divulgação de demonstrações financeiras pelas companhias, com o intuito de compatibilizar as normas contábeis nacionais aos padrões internacionais de contabilidade. Tal inovação deu-se por meio da Lei 11.638, de 28 de dezembro de 2007, que promoveu alterações na Lei de Sociedades Anônimas.

As alterações supracitadas, por sua vez, demandaram adequações no âmbito tributário, o que somente foi promovido com a Medida Provisória 449, de 2008, posteriormente convertida na Lei 11.941, de 2009. Em que pese a Exposição de Motivos da medida provisória não discorra especificamente sobre o artigo 61, constante no texto normativo desde a sua redação original, a interpretação da norma conduz ao raciocínio de que o legislador quis deixar assente que resta incólume a competência do CMN e do BCB para dispor, respectivamente, sobre regras contábeis gerais e complementares aplicáveis às instituições financeiras e demais entidades supervisionadas, dada as suas peculiaridades do sistema financeiro. Com isso, o legislador afastou eventuais entendimentos de que as alterações legais então promovidas, necessariamente, englobariam essas pessoas jurídicas.

Vale acrescentar que o CMN efetivamente cumpriu o papel que lhe foi outorgado, editando atos normativos relativos às demonstrações contábeis, com o propósito de incorporar padrões internacionais de contabilidade no âmbito nacional, como as Resoluções 3.786, de 24 de setembro de 2009, e 4.144, de 27 de setembro de 2012, com fulcro nos artigos 4º, inciso XII, da Lei nº 4.595, de 1964, e 61, da Lei 11.941, de 2009. Por sua vez, em complemento à atuação do Conselho, o BCB editou normas de caráter procedimental, como, por exemplo, a Circular 3.472, de 23 de outubro de 2009, norma que estabelece condições e procedimentos para a elaboração e divulgação de demonstrações contábeis consolidadas com base no padrão contábil internacional emitido pelo International Accounting Standards Board (IASB).

Conclui-se, assim, que o artigo 61 da Lei 11.941, de 2009, não contraria o disposto no parágrafo 2º do artigo 22 da Lei 6.385, de 1976, pois os comandos normativos trazem competências a serem ser exercidas pelos entes administrativos de maneira harmoniosa e complementar. Em outras palavras, no que concerne às instituições financeiras, cabe ao CMN dispor sobre o aspecto material da contabilidade, ou seja, o conteúdo e conceitos a serem adotados nas demonstrações dessas entidades, enquanto ao BCB e à CVM (esta última somente no que não conflitar com as normas daquele) compete a expedição de normas relativas a aspectos procedimentais, para que detenham os dados necessários às suas atividades de supervisão.

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