Combate à corrupção

"Para que o crime não compense, é preciso confisco na condenação definitiva"

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17 de julho de 2016, 13h22

Procurador da República desde 2003, Vladimir Aras atua na área de cooperação internacional do Grupo de Trabalho formado pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para a operação “lava jato”.

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Especialista em combate à lavagem de dinheiro e à corrupção, ele afirma, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, que “não existe um enfrentamento eficiente ao crime organizado e nem contra a corrupção”.

“Para que o crime não compense, eu preciso que os confiscos sejam implantados no momento da condenação definitiva, que os bloqueios sejam dados no momento da investigação e que o processo penal não demore muito, porque corre o risco da prescrição. Quando há prescrição, não há condenação definitiva. Não havendo condenação definitiva, não pode haver o confisco”, alerta o procurador.

Leia a íntegra da entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo:

Qual a importância da cooperação e do resgate de valores lavados no exterior para o combate à corrupção e ao crime do colarinho branco?
Vladimir Aras
Extremamente importante. Tanto do ponto de vista interno quanto do ponto de vista internacional, qualquer investigação bem-sucedida, contra a corrupção e o crime organizado, só é bem-sucedida se ela se baseia em uma lógica de que não vale a pena para o criminoso cometer o crime. Não vale a pena para o criminoso cometer o crime quando ele sabe que o risco de ele ser condenado é muito grande, cumprir pena, ainda que não seja preso, mas condenado e cumprir uma pena proporcional ao delito e ainda sabendo o risco do confisco penal, do perdimento dos bens. É o que se chama na lógica da luta contra a lavagem de dinheiro, a sufocação econômica. Não existe um combate eficiente ao crime organizado e nem contra a corrupção, seja ela em forma ou não de crime organizado, sem o emprego dessa estratégia de sufocação econômica da organização criminosa, de modo que não haja a recompensa para o crime. Para que o crime não compense, eu preciso que os confiscos sejam implantados no momento da condenação definitiva, que os bloqueios sejam dados no momento da investigação e que o processo penal não demore muito, porque corre o risco que haja prescrição. Quando há prescrição, não há condenação definitiva. Não havendo condenação definitiva, não pode haver o confisco. O confisco dos bens só vem se houver condenação definitiva. Quando prescreve, eu perco o bloqueio, no Brasil ou no exterior. Se o bloqueio é perdido no exterior, a gente tem de mandar uma cartinha para o país de destino e dizer: ‘Olha, infelizmente, podem liberar o valor, porque essa ação penal aqui no Brasil não tem futuro, o fato prescreveu’. Isso nos leva a outra questão. É preciso que nós tenhamos no Brasil um novo tipo de ação judicial chamado Ação de Extinção de Domínio, que permite que nesses casos de prescrição penal ou nos casos de morte do agente — a ação penal morre também, sem condenação e confisco, o Estado fica de mãos amarradas — que o bem móvel ou imóvel possa ser confiscado.

Uma das 10 medidas, a de número 10, fala em recuperação do lucro do crime. Quais são as ferramentas disponíveis para os procuradores rastrear o dinheiro alcançado pelas organizações?
Vladimir Aras
Para você rastrear dinheiro no exterior precisa de contato direto e informações de inteligência. Você não rastreia dinheiro com pedidos formais de cooperação. Rastreamento é feito através de redes de inteligência, através da própria Interpol, de uma rede chamada RRAG [Rede de Recuperação de Ativos do Gafilat], um tipo de rede regional. Do ponto de vista da colaboração premiada, nós temos outro caminho para recuperar ativos. O réu colaborador indica onde está a conta dele e a partir dessa conta se fazem quebras, um pedido formal de cooperação para quebras. A partir dessas quebras, você obtém inteligência para fazer quebras sucessivas, localizar ativos e rastreá-los seguindo o fluxo do dinheiro. Ou, quando não é possível seguir o fluxo do dinheiro porque houve a utilização de interpostas pessoas, você usa de novo outro mecanismo de investigação, novas colaborações premiadas, interceptação telefônica ou busca e apreensão, que também serve para rastrear ativos. Em uma busca você pode apreender documentos bancários, provas de propriedade no exterior. Tem uma série de redes e ferramentas de rastreamento de ativos e meios de obtenção de provas que permitem esse rastreamento internacional de ativos.

A cooperação entre os países tem avançado a cada ano. É um mau negócio, para o investigado, tentar fugir, achar que não será encontrado?
Vladimir Aras
Ainda é um bom negócio e muita gente foge. Hoje é mais difícil garantir a impunidade do que antes. As redes de cooperação são muito mais presentes, há mecanismos tecnológicos para entrelaçar as polícias e os Ministérios Públicos, o diálogo é mais fácil entre as agências de persecução penal, seja Ministério Público, seja polícia. Os controles migratórios também são mais rigorosos, então, há uma dificuldade maior hoje. Por outro lado, os marcos normativos, a legislação melhorou em vários países e melhorou também a consciência em torno da necessidade de lutar contra a impunidade. Este aspecto da impunidade que muita gente fugia e ficava em algumas jurisdições. Agora é mais difícil chegar a um país que não coopere para localizá-lo e processá-lo em seu território ou para devolvê-lo no mecanismo tradicional da extradição ou nesses novos mecanismos de entrega, desenvolvidos no âmbito regional.

Custa caro ao Tesouro capturar um investigado no exterior? Alguma estimativa de valor? Alguma estimativa do quanto se gasta por ano trazendo foragidos de volta para o Brasil?
Vladimir Aras
Custa bastante caro. O caso [Henrique] Pizzolato [ex-diretor do Banco do Brasil condenado no mensalão e extraditado da Itália] custou em torno de R$ 170 mil. Não foi barato porque, além das traduções, houve gastos com a contratação de um escritório de advocacia em Roma para acompanhar o trabalho do Ministério Público. Nós não temos uma Procuradoria lá de ligação. Existe um adido da Polícia Federal, mas não existe um procurador de ligação no exterior. A contratação quem faz é a Advocacia-Geral da União, sai do orçamento da AGU esse valor para que o processo de extradição seja acompanhado em favor do Brasil lá. Nós podemos conversar com nossos colegas do Ministério Público, como conversamos com os italianos, eles concordarem conosco: ‘Ok, vou trabalhar em favor de vocês’. Mas há situações em que o procurador local não se convence da tese. Houve um caso com a Itália em que se nós não tivéssemos um escritório lá contratado, nós teríamos perdido o caso. Era um caso de um traficante. O procurador italiano não recorreu em favor do Brasil, foi contra o pedido brasileiro de extradição. Se nós não tivéssemos contratado esse escritório em Roma, não poderíamos ter recorrido e ganhado no recurso. No caso do Pizzolato, os juízes de Bolonha se manifestaram sobre o pedido e a defesa alegou que o sistema carcerário (do Brasil) era um caos. Nós produzimos um vídeo que custou R$ 30 mil. Isso é um ônus que tivemos que arcar porque foi preciso juntar essa prova nos autos para que os juízes vissem que se Pizzolato fosse extraditado, seria para a Papuda (em Brasília) ou para duas unidades de Santa Catarina indicadas por nós. Além desses aspectos, a Polícia Federal faz incursões, se mobiliza para procurar indivíduos. Quando a pessoa é capturada, depois de todos esses gastos feitos durante o processo, ainda tem o gasto na remoção do indivíduo. Você não remove um foragido com um policial, você remove com três ou mais. Teve uma extraditanda agora que precisou de cuidados médicos. Foi uma médica da polícia. Você tem que pagar os servidores públicos que vão, a passagem aérea, ainda que econômica, vão três ou quatro agentes da polícia. O processo de extradição não é algo barato, daí porque a lógica de pensar em cobrar esses valores dos indivíduos.

A Secretaria de Cooperação Internacional está atuando na Olimpíada do Rio?
Vladimir Aras
O procurador-geral criou um grupo de gabinete de crise, como houve para a Copa [do Mundo, em 2014], reunindo várias instâncias do Ministério Público Federal. Existe também dentro da Procuradoria-Geral da República um gabinete intercameral, que reúne a 2ª, a 5ª e a 7ª câmaras e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que vão acompanhar também a questão da Olimpíada, tentando articular com os organismos de segurança pública — as polícias Federal e estadual, Exército, Forças Armadas, em geral.

Alguma preocupação a mais por causa do ataque em Nice, na França? Um tunisiano ao volante de um caminhão matou mais de 80 pessoas na cidade francesa em 14 de julho.
Vladimir Aras A preocupação existe, tem de existir. O procurador-geral, desde 2014, tem buscado promover o debate sobre a questão do terrorismo. A gente fez um debate grande em 2014, trouxemos especialistas de sete países diferentes. Fizemos, depois, gestões junto ao Congresso e ao governo para que as leis antiterrorismo fossem aprovadas. Depois de um longo e tenebroso inverno, elas foram aprovadas. Do ponto de vista normativo, a situação hoje é bem melhor do que era um ano atrás. Porém, a estrutura do país ainda é para segurança pública em geral, nem para o terrorismo, é muito deficiente. Logo, é uma soma de dois mais dois. Se, para os crimes comuns, o risco que o cidadão brasileiro sofre e o estrangeiro que aqui estiver é muito grande, para esquemas complexos de criminalidade mais intrincada, obviamente o risco será maior. Não quero dizer com isso que tenha alguma informação de ameaça terrorista no Brasil. O fato é que é uma aritmética. Se este é um país que nós matamos 60 mil pessoas por ano, é muito fácil matar no Brasil.

Em que circunstâncias um país passa a cooperar com o outro? Ocorre sempre via autoridade central ou o trânsito pode ser realizado diretamente pelo Ministério Público dos dois países?
Vladimir Aras
Existe uma questão muito polêmica que é achar que tudo se faz pela autoridade central. O Itamaraty, antes de a primeira autoridade central brasileira ser criada, já fazia cooperação. O Itamaraty não é autoridade central, é autoridade diplomática. Essa é via ordinária da cooperação internacional, a tramitação via chancelaria, via diplomática. Desde o dia em que o primeiro diplomata foi instituído, existe cooperação internacional, inclusive para captura de pessoas e foragidos. A atual autoridade central brasileira foi criada em 2004, o DRCI [Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, braço do Ministério da Justiça]. A primeira autoridade central brasileira somos nós, a Procuradoria-Geral da República. Desde 1968, nós somos autoridade central para a Convenção de Nova York, de 1956, que não é penal, trata da prestação de alimentos no exterior, quando a mãe está aqui com o filho e o pai está fora e precisa receber os alimentos e vice-versa. Desde 1994, a PGR também é autoridade central para Portugal, tratado bilateral Brasil-Portugal. Mas, em 2004, o governo resolveu fazer uma autoridade central sua, que é o DRCI. Mas mesmo assim não é a única, a PGR continua a ser para Portugal, Canadá e essa Convenção de Nova York. Existe a via diplomática e um enorme mundo de cooperação administrativa entre o Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras] e seus congêneres. Existe a cooperação direta também entre as polícias. A via policial todo mundo conhece pelo nome Interpol, uma via válida de cooperação internacional. A autoridade central é apenas uma das formas de cooperação.

O Mandado Mercosul de Captura (MMC) foi assinado em 2010. Andou?
Vladimir Aras
Ele não está em vigor. Isso é algo que nós temos debatido, eu já fui algumas vezes ao Congresso falar com deputados. Falamos também com o anterior ministro da Justiça, o anterior chanceler do governo Dilma, pedindo que esses acordos que o Brasil assinou no âmbito regional em matéria de cooperação fossem tocados para frente. Tem este acordo de Foz do Iguaçu de 2010, que cria o Mandado Mercosul de Captura, exatamente um mecanismo de simplificação da extradição dentro do Mercosul. Vale para os países membros Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai e Venezuela, mas também para os associados e para a Bolívia que está em situação de adesão. O outro acordo é o de Buenos Aires, de 2010, também, que permitiria equipes conjuntas de investigação. polícias e Ministérios Públicos do bloco. Já que você tem o cenário de fácil transição de pessoas, mercadorias, serviços, valores, então, é importante que nós tenhamos leis, no caso tratados, que permitam que a atuação do Estado, do ponto de vista da persecução penal e da polícia, também possa se favorecer da integração. A integração não pode ter uma perspectiva apenas econômica, ela é em termos de direitos. Você fala da cidadania do Mercosul, dos sistemas de controle do interesse do Estado, como a matrícula única de veículos do Mercosul e também a questão criminal e policial, para que as polícias possam não ficar a mercê de situações grotescas, como a que impede que um policial brasileiro, mesmo se estiver em perseguição em flagrante de um traficante homicida, ele não pode passar para o território vizinho porque estará invadindo o território do país. Existem vários lugares que as fronteiras são muito movimentadas, a luso-espanhola, a franco-alemã. Há acordos regionais que permitem que a polícia ingresse até 10 quilômetros, um quilômetro para que nessas situações de perseguição ou de acompanhamento de criminosos não se perca a possibilidade de prender alguém, apreender mercadorias, evitar um crime por motivos de apenas uma linha abstrata que marca soberania, mas que numa situação de livre circulação de pessoas é um obstáculo incompreensível. Já que os países permitem que os cidadãos atravessem de um lado ao outro com seu RG ou sem documento algum, é preciso que o Estado crie as ferramentas que a polícia e o Ministério Público tenham meio de realizar uma atuação de segurança pública e investigação criminal eficientes na medida em que esse sistema de fronteira todo tem grande influência na criminalidade das grandes cidades que ficam longe das fronteiras. Como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre, Recife, que sofrem impacto, mesmo muito além das nossas fronteiras, do crime de fronteira, o narcotráfico, o tráfico de pessoas, de armas, que precisa da fronteira para se consumar. E é consumado facilmente, porque não existe um marco jurídico normativo para os temas de fronteira. Precisa que a Câmara dos Deputados e o Senado aprovem o texto, assinado primeiro pelo Executivo.

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