Limite Penal

Tipo assim: as confusões em cascata do processo penal de hoje

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15 de julho de 2016, 8h00

Spacca
O processo penal contemporâneo está premido por diversos sentidos diferentes em face do mesmo significante. Quando invocamos a noção de “processo”, dependemos de como o sujeito com o qual interagimos, por exemplo, o compreende. Inexiste uma compreensão única de processo, já que podemos falar em processo como relação jurídica (Bulow), situação jurídica (Goldshimidt), procedimento em contraditório (Fazzalari), a partir do neoinstitucionalismo (Rosemiro Pereira Leal), mero proceder ou mesmo como jogo (Calamandrei), dentre outras. O status da norma jurídica pode ser considerado como direito fundamental e, portanto, inegociável e irrenunciável; também pode ser entendido como direito ao processo e, assim, renunciável e negociável, na modalidade de privilégio[1].

As coordenadas pelas quais pensamos o processo estão cada vez mais complexas. Não raro, entretanto, usamos os mesmos significantes sem que o pano de fundo teórico advenha à superfície. Sem que explicitemos os mecanismos teóricos pelos quais operamos, geramos uma cascata de mal-entendidos.

Daí ser exigível certo rigor semântico para se evitar confusões, embora busquemos a aproximação com a linguagem cotidiana, superando latinismos, não podemos abdicar o uso da língua portuguesa em nome de “tipo assim” que transformaria a produção normativa em conversa de botequim, com todo respeito ao estabelecimento comercial.

Compreender adequadamente (Lenio Streck) o percurso argumentativo demanda que o sujeito que enuncia um discurso possa guardar minimamente coerência. Existem significantes que não podem ser invocados impunemente fora de seu contexto hermenêutico (Ernildo Stein e Cláudio Melim).

Por exemplo, as noções de “carga probatória” e “ônus da prova” não são sinônimos, justamente porque partem de pressupostos distintos. Aliás, usar ônus probatório no processo penal em que há presunção de inocência mostra-se complicado, salvo aos que se aproximam perigosamente da Teoria Geral do Processo[2]. Isso porque as categorias gerais do processo precisam de acomodação ao contexto do processo penal que parte de outro status de direitos, ainda que hoje em dia a delação premiada tenha modificado a produção de verdades processuais penais.

Vivemos, assim, pelo menos, duas pistas de processo penal: a) o Processo Penal do Cotidiano: dos crimes do Código Penal, em que se demanda produção probatória, garantias etc., com uma decisão judicial (motivada) que estabeleça a verdade de uma das versões; b) o Processo Penal da Adjudicação: dos crimes em que cabe delação/colaboração premiada, cujo trabalho do Estado-juiz é o de “homologador” da versão acordada entre as partes/jogadores do negócio jurídico.

A tragédia é querer ensinar o mesmo processo penal em ambas as pistas. É impossível querer harmonizar dois modos de pensamento que não podem ser coerentes entre si. Isso porque o pano de fundo filosófico é diverso, consoante já tivemos ocasião de apontar (aqui), dado o modo pragmático de imputação de “realidades”.

O desafio, portanto, de cada professor de processo penal é saber diferenciar os modelos de pensamento (as pistas que se bifurcaram) e, durante as aulas, saber apresentar as distinções necessárias para que as confusões possam ser mitigadas, como aponta Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[3].

Porém, talvez seja essa incapacidade de formação, a saber, a ausência de fronteiras entre as duas pistas processuais que interesse ao novo modelo brasileiro que “aproveita” a mentalidade inquisitória e se vale do pragmatismo. O casamento entre o modo de pensar autoritário e o consenso gera, como já explicitamos, um mercado da liberdade, da pena e da prisão, cujos negociadores não são mais os operadores do Direito Penal, mas “corretores penais” que compram e vendem pena/liberdade, tendo por objeto direitos de terceiros (do Estado e dos acusados/investigados). Onde chegaremos, de fato, não sabemos. O que temos certeza é que precisamos ampliar os horizontes e deixar de buscar — compulsivamente — uma coerência interna do processo penal de hoje que foi desterrada. São tempos de processos penais versáteis, longe do que pensamos como sendo garantias e limites. Impor limites ao império do negócio penal é o desafio. As regras existentes deixam muito espaço para protagonismos…


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 161-164.
[2] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016.
[3] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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