Opinião

ECA deve funcionar como
escudo contra retrocessos

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14 de julho de 2016, 17h37

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) representa, no plano federal, o que a Constituição de 1988 significa para a República: “um novo tempo, apesar dos perigos”. Isso porque os representantes do velho regime ainda estão de plantão, sempre questionando os avanços, principalmente quando se trata de proteção especial. Apesar disso, continuamos avançando.

Claro, nossa Constituição contribuiu sobremaneira para isso. De um modo muito feliz, o jurista argentino Emilio Garcia Mendez destacou que o artigo 227 da Constituição de 1988 representou uma admirável síntese da Convenção da ONU sobre direitos da criança, que veio a ser aprovada em 1989. Isso, por si só, dimensiona a importância que a Carta dá à infância e juventude.

E as leis aprovadas posteriormente foram no mesmo sentido. Dentre os avanços no plano legislativo podemos citar a Lei 13.010/2014, que modificou ECA para assegurar o direito da criança e do adolescente a serem criados e educados sem o uso de castigo corporal ou de tratamento cruel ou degradante. Batizada de Lei Menino Bernardo, a norma faz referência a uma criança de 11 anos, morto em 2014 pela madrasta e pelo próprio pai, no Rio Grande do Sul, depois de ter procurado as autoridades competentes para relatar a violência da qual era vítima.

Também um grande avanço recente na proteção foi o marco legal da primeira infância, consolidado através da Lei 13.257, de 8 de março de 2013, que dispõe sobre as políticas para a primeira infância e altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Processo Penal, a Consolidação das Leis do Trabalho além de outros instrumentos legais, para estabelecer “princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano”.

Mas as propostas que visam a impedir os avanços persistem. Nesse sentido, destaca-se a Proposta de Emenda Constitucional 171, que propõe a redução da maioridade penal. A proposta reflete um tema sempre recorrente no debate nacional, quando ocorre algum caso de repercussão envolvendo adolescente, e vende a ilusão de que a violência é problema atribuído aos adolescentes, quando basta consultar as estatísticas para verificar que crianças e adolescentes são muito mais vítimas de violência do que autores, em especial quando tratamos de crimes contra a vida.

Outra proposta de retrocesso no plano legislativo é o PL 333, que trata do aumento do tempo de internação, desconsiderando o princípio constitucional da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento quando da aplicação de medida privativa de liberdade.

Em linhas gerais, entendo que não precisamos reformar o Estatuto da Criança e do Adolescente, a menos que seja para avançar. O sistema de responsabilização previsto no ECA está plenamente em acordo com os princípios consagrados na Constituição Cidadã de 1988, quanto ao respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, brevidade e excepcionalidade da medida de privação de liberdade, tal como prevê o artigo 227, parágrafo 3º, inciso V da Constituição.

Portanto, propostas como de redução da maioridade penal além de inconstitucional por afronta ao artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV combinado com os artigos 227 e 228, ainda viola o princípio da proibição de retrocesso, devendo ser lembrado que crianças e adolescentes têm sido muito mais vítima de crimes do que autores de ato infracional, conforme demonstrou um estudo de 2015, elaborado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, com dados da Polícia Civil do Estado.

Segundo o levantamento, “no estado do Rio de Janeiro, entre 2010 e 2014, o número anual de vítimas menores de 18 anos passou de 33.599 para 49.276, um aumento de 46,7% (contra um aumento de 24,4% de vítimas maiores de idade)”. Além disso, “ao longo de cinco anos, foram 213.290 vítimas menores de idade, das quais 26,2% eram crianças (de zero a 11 anos) e 73,8% eram adolescentes (de 12 a 17 anos)”.

No que diz respeito ao crime de estupro, mais de 50% são classificados como estupro de vulnerável, ou seja, têm como vítimas pessoas com menos de 14 anos, conforme aponta o Dossiê Criança e Adolescente e o Dossiê Mulher e dados nacionais através de nota pública do IPEA.  Estamos distantes da concretização do princípio constitucional da prioridade absoluta no respeito aos direitos de crianças e adolescentes conforme se constata pelas graves violações dos direitos desses sujeitos, em especial o direito à vida.

Então, a conclusão que podemos chegar é da necessidade da articulação do sistema de garantia de direitos e mobilização da sociedade para que os direitos sejam respeitados e as crianças protegidas contra todas as formas de negligência, violência, discriminação, exploração, crueldade, opressão, como determina o artigo 227 da Constituição da República, que prevê que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar com prioridade absoluta os direitos de crianças, adolescentes e jovens.

Precisamos cada vez mais de uma real integração entre os órgãos que poderia ser facilitada por centros integrados de atendimento, assim como pelo necessário fortalecimento dos conselhos tutelares como órgãos incumbidos pela sociedade de zelar pelos direitos de crianças e adolescentes cujo processo de escolha foi realizado recentemente em esfera nacional de acordo com a previsão de data unificada do processo de escolha. Qualquer tentativa de mascarar a realidade e transformar crianças e adolescentes em perigosos, quando são muito mais vítimas, é tentar desviar o foco do debate da efetividade dos direitos para violação de garantias.

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