Brasil em debate

"'Lava jato' não tem culpa pela crise econômica e fará o Brasil voltar a crescer"

Autores

14 de julho de 2016, 12h38

Spacca
O economista Antonio Delfim Netto é uma personalidade complexa. Em um país polarizado, não dá para enquadrá-lo em nenhuma vertente ideológica. Ferrenho defensor do salário mínimo e do programa Bolsa Família, está longe de ser "coxinha". Tampouco pode ser considerado "petralha", já que é categório ao afirmar que a presidente afastada Dilma Rousseff é responsável por uma quantidade “monumental” de violações. 

O fato de ter sido filiado à Arena e ministro responsável pela economia durante 13 dos 21 anos da ditadura militar também é uma tentação para colocá-lo mais à direita do espectro político. Porém, foi um dos principais conselheiros do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva enquanto este estava no Palácio do Planalto.

No seu campo de especialização, classifica o mercado como o sistema mais eficiente de produção de riquezas. Isso não basta para rotulá-lo de ortodoxo, pois garante que ninguém descreveu tão bem o capitalismo e suas falhas quanto Karl Marx — o autor ocupa boa parte de sua biblioteca.

As aparentes contradições de Delfim Netto se estendem à sua opinião sobre a “lava jato”. O economista é acusado de ter recebido valores de propina para ajudar um consórcio a ganhar a licitação para a Usina Hidrelétrica de Belo Monte (PA). Apesar disso, é um admirador da operação que catapultou procuradores, policiais federais e o juiz Sergio Moro ao status de celebridade.

A seu ver, a "lava jato" está acabando com as relações promíscuas entre Estado e empresas, aprimorando as instituições e criando condições para o Brasil voltar a crescer. Quanto às acusações que pesam contra si, Delfim Netto diz que só obteve honorários por serviços de consultoria regularmente prestados.

E a “lava jato” não tem “nenhuma” culpa pela atual crise do país, avalia o ex-ministro. De acordo com ele, o atual cenário foi gerado pelos erros de Dilma na condução da economia. Entre eles, a diminuição “populista” do preço da energia elétrica, a redução forçada da taxa de juros e o controle do preço da gasolina.

Mas o erro decisivo, na visão de Delfim, veio quando a petista nomeou Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, um mês após ser reeleita. Assim, ela adotou sem rodeios as medidas de austeridade defendidas pelos seus adversários Aécio Neves (PSDB) e Marina Silva (PSB), que tanto criticara durante a campanha eleitoral.

“Com isso, ela perdeu toda a credibilidade, e pior: naquele mesmo instante, ela perdeu dois terços dos que haviam lhe dado um voto de confiança, para os quais ela não prestou a menor satisfação por que tinha mudado. Então, é imediato”, opina o economista.

Para piorar, o PT lutou contra Eduardo Cunha (PMDB-RJ) pela presidência da Câmara dos Deputados, e perdeu feio. Com a economia, o Congresso Nacional e a sociedade contra, Dilma perdeu a capacidade de governar, e virou alvo de um processo de impeachment por condutas que, em condições normais, seriam punidas apenas com “um puxão de orelha do Tribunal de Contas da União”, argumenta Delfim Netto.  

Com a recente morte do ex-ministro da Casa Civil Rondon Pacheco, Delfim virou o último sobrevivente da reunião que aprovou o Ato Institucional 5, que recrudesceu a censura, suspendeu o Habeas Corpus de acusados de crimes políticos e deu ao Executivo o poder de dissolver o Congresso.

Embora na ocasião tenha achado a norma “insuficiente” e defendido a possibilidade de o presidente fazer “certas mudanças constitucionais”, o ex-ministro elogia o modelo de sociedade estabelecido pela Constituição de 1988 — a qual ajudou a escrever como deputado. E mais: ele alega que o direito de defesa “deve ser o mais amplo possível”.

Na manhã de 1º de julho, o economista recebeu a revista Consultor Jurídico em seu escritório, um pequeno castelo de pedra na Zona Oeste de São Paulo. A sala dele é repleta de caricaturas que o retratam e de fotos com seu neto.

Por exatamente uma hora, ele analisou a situação do Brasil quase deitado na cadeira de sua mesa de trabalho, e gesticulando para enfatizar seus argumentos. Na conversa com a ConJur, Delfim Netto ainda elogiou as propostas econômicas do presidente interino Michel Temer (seu companheiro de PMDB), discutiu o papel do Judiciário e criticou o sistema tributário do país.

Leia a entrevista:  

ConJur – Como o Brasil chegou a essa situação?
Delfim Netto
– Não tem nenhum mistério nisso: foi o curso natural da história. A história, na verdade, é uma coleção de acidentes. Não há uma lei histórica. Então, houve essa desintegração muito rápida, que é produto de um desarranjo, da incapacidade do Executivo em assumir o seu protagonismo. O que aconteceu é só isso. Em 2011, Dilma fez um bom governo: cresceu 3,9%; a inflação estava no teto da meta; o superávit primário era de 3%, 2,5%; o déficit fiscal, de 3%; até reduziu a relação dívida x PIB. Em 2012, ela estava com um prestígio bastante alto, mas aí começou a fazer algumas intervenções voluntaristas.

ConJur – Como a de abaixar o preço da energia elétrica?
Delfim Netto
– A energia foi o caso mais típico, porque foi uma medida que, no curto prazo, obteve uma grande aprovação da população, porque a população é "curtoprazista". Então, o preço da energia caiu 20%, e todas as pessoas que pensam um pouco sabiam que em um ano, um ano e meio, dois anos, aquilo iria voltar com uma vingança e subir 50%. Mas durante o período em que isso foi feito, Dilma subiu cinco pontos na aprovação da população. Ela gostou disso. Aí pôs a mão nos juros, mas não deu para o Banco Central as condições fiscais para sustentar a baixa de juros, então depois subiu mais 5%. Aí pôs a mão no câmbio. Ela destruiu a Petrobras com o controle de preços, destruiu o setor de etanol, destruiu o setor de energia. Com o câmbio valorizado, destruiu a indústria. Dilma estava no auge da sua popularidade e no auge de todos os seus erros. Daqui para frente, as pessoas devem perceber que o governo não pode fazer política com pesquisa de opinião. O Brexit [saída do Reino Unido da União Europeia, aprovada em junho] é a mesma coisa. Até o final de 2013, não estava uma tragédia, mas chegou 2014, e ela decidiu fazer o diabo para se reeleger. O [chanceler alemão] Otto Bismarck dizia que nunca se mente tanto como antes de uma eleição, durante uma guerra ou depois de uma pescaria. Ela exagerou. Elegeu-se, e elegeu-se demonizando a política econômica do seu opositor [Aécio Neves (PSDB)], dizendo que aquilo tudo estava errado. E elegeu-se com um pouquinho mais de um terço dos votos. O Aécio teve um pouquinho menos de um terço. E um terço não soube usar o segundo turno, que não é para você eleger quem quer, mas para escolher o menos pior. Jogaram fora essa oportunidade e ela foi eleita. Uma vez eleita, ela assumiu o programa que tinha demonizado, do Aécio, e escolheu para executá-lo um profissional altamente competente, que era o Joaquim Levy, mas que pensa exatamente o oposto dela. Com isso, ela perdeu toda a credibilidade, e pior: naquele mesmo instante, ela perdeu dois terços dos que haviam lhe dado um voto de confiança, para os quais ela não prestou a menor satisfação por que tinha mudado. Então, é imediato. Ela é eleita com dois terços mais um pouquinho, um mês depois está com 10% de aprovação. Com isso, ela criou uma situação extremamente delicada, perdeu a credibilidade. Não satisfeita, ela se mete em uma briga para eleger o presidente da Câmara, e perde. Daí para frente, ela perdeu toda a condição de continuar. Nunca mais conseguiu aprovar nada, foi se enrolando para cima e para baixo, a recessão se aprofundando dramaticamente. Quer dizer, entre o último trimestre de 2014 e o último trimestre de 2015, o Brasil perdeu quase 6% do PIB. É um negócio absurdo. Hoje estamos com 11 milhões de desempregados. A maior demonstração de que ela tinha perdido completamente o protagonismo foi na questão da dívida dos estados. O Nelson [Barbosa, último ministro da Fazenda de Dilma] tinha um bom programa. E quem se opôs ao programa? O PT. Quer dizer, ela não tinha nem o partido dela mais. Aí Dilma comete um ato espantoso, que permite que aquele problema da dívida fosse levado ao Supremo. O Supremo, em pânico, deu 60 dias para que o Executivo resolvesse. O Temer entrou e resolveu. E resolveu muito bem, da melhor maneira possível. Isso já podia ter sido resolvido, só não foi porque ela já não tinha mais o controle da situação. Essa é a prova mais concreta de que Dilma já não tinha condição de administrar o país. Dilma é uma pessoa correta, tem honestidade de propósito, e uma ideia interessante de procurar a modicidade tarifária, mas se atrapalhou na administração. 

ConJur – Qual é o peso que se pode dar ao fator “lava jato” para essa situação a que chegamos?
Delfim Netto
– Nenhum. A “lava jato” é um processo que aconteceu no mundo inteiro, nos Estados Unidos talvez no século XIX. A operação está atacando uma relação incestuosa que se criou muito recentemente entre o Estado e as empresas. Esses exageros que estão aí é coisa recente, de 20 anos, até menos. O que importa é que a “lava jato” já mudou a concepção das relações entre Estado e empresas. Hoje, por conta da operação, o compliance da empresa é mais importante que o presidente. O compliance tem mais poder para decidir se um negócio vai ser feito do que o diretor tesoureiro. Está sendo introduzida uma ordem institucional nessas relações que quando terá efeitos no crescimento do país — o Brasil vai crescer 1% ao ano nos próximos 150 anos por conta da “lava jato”. A operação não impede o crescimento. Pelo contrário: ela já está criando as condições para o crescimento mais robusto sem essa relação incestuosa entre o Estado e as empresas. 

ConJur – O quadro desse alegado combate à corrupção é mais uma iniciativa brasileira ou das novas leis internacionais sobre o assunto, que surgiram a partir dos anos 90?
Delfim Netto
–  Não, nós somos parte do mundo. Na verdade, nós já estávamos copiando essas instituições. O que ninguém nunca teve ideia é do laxismo que tinha sido produzido nas estatais. Esses instrumentos de controle tanto existem como estão sendo usados, e se aperfeiçoam cada vez mais. É o que eu volto a dizer: estamos em um processo de grande aperfeiçoamento institucional, de republicanização. Estamos em processo em que ninguém está acima da lei, o que, no fundo, é a base da República. Mesmo assim, o direito de defesa deve ser o mais amplo possível. Você tem que fazer justiça. A Justiça demora porque quer fazer justiça; então, o direito de defesa não pode ser tolhido de nenhuma forma. Não é dizer que agora vai ter aqui todo tipo de recurso, mas dar para o cidadão a oportunidade de se defender é fundamental.

ConJur – Nós partimos de uma tolerância exagerada e estamos caminhando para uma intolerância exagerada?
Delfim Netto
– Nós partimos de um laxismo e estamos caminhando para a ordem. Pode haver um exagero aqui ou um exagero ali, mas estou convencido de que a sociedade introjetou a necessidade de por ordem no país, e é isso que está acontecendo.

ConJur – Mas isso não pode gerar um cenário de demonização da política e valorização apenas de entidades acusatórias como a polícia e o Ministério Público?
Delfim Netto
–  A sociedade vai ter que aprender que não tem milagre. Se não respeitarmos as restrições físicas da economia, as restrições da contabilidade nacional e o fato de que tem que haver uma harmonia entre o crescimento do consumo e o crescimento do investimento, nunca vamos ser uma sociedade civilizada. Hoje, há no mundo 25 ou 30 sociedades civilizadas. São todas democracias. Elas têm seus problemas internos, todas têm, mas seguem o mesmo modelo, que é esse que está na Constituição de 1988. Então, não é preciso ter grandes novidades, é preciso ter um pouco de cabeça para não fazer grandes besteiras. O Brasil é tão rico que permite que, de vez em quando, joguemos recursos fora, mas é preciso ter uma linha. O que aconteceu é isso. Quando o Executivo perde o seu protagonismo, o sistema não funciona. O tal presidencialismo de coalizão nem presidencializa nem coaliza. O que o Temer fez? O Temer entendeu que não tem grande diferença de diagnóstico entre as várias tribos ou várias igrejas que compõem e economia. Não importa se keynesiano, kaleckiano, marxista – todo mundo tem um diagnóstico de que você tem um desastre fiscal. Não tem problema de talentos para usar esse diagnóstico e corrigir, tem abundância de talentos. Por que não acontece nada? Porque não tem poder político para executar o diagnóstico e entregá-lo nas mãos de pessoas competentes. Então como é que ele [Temer] começou? Ele começou por onde se salva o economista, através da política. Ele construiu inicialmente uma espécie de parlamentarismo de ocasião, e está usando-o para aprovar aquelas medidas que Dilma não conseguiu aprovar. Então ele está na direção certa. Por que a coisa não funciona mais depressa? Por que as pessoas não investem? Por que não sabem quem vai ser o presidente no Natal. A única coisa que eu sei é que não vai ser o Papai Noel.

ConJur – O Ministério Público Federal está querendo algo pelo qual os partidos políticos estão sendo punidos: ficar com um percentual de valores desviados da Petrobras. O que o senhor pensa dessa ideia? Há o risco de transferir o cartel das empresas para o cartel dos investigadores?
Delfim Netto
–  Isso tudo é uma falácia. Isso é a mesma coisa que você entregar comissão para o fiscal do Imposto de Renda. É uma proposta oportunista. Mas tudo isso vai encontrar o seu limite, o seu equilíbrio. É claro que uma denúncia mal feita tem que ser punida. Nos EUA, se você faz uma denúncia mal feita, você perde o emprego. Nem o procurador-geral da República está acima da lei.

ConJur – O que o senhor pensa sobre o projeto de lei que coíbe abuso de autoridade? Porque hoje o agente público erra e quem paga é o Estado.
Delfim Netto
–  É claro que tem que ter um projeto que trate do abuso de autoridade. Mas volto a insistir: nós estamos em um processo de aprendizado, e todo processo de aprendizado tem esse zigue-zague. É meio pendular –  estava no laxismo completo, vai para o rigorismo absoluto, e depois vai de novo até atingir o seu equilíbrio. Tanto é verdade que já estamos criando condições de anticorpos. Aos poucos vai ter um ajuste, vamos caminhar com relativo equilíbrio. 

ConJur – Na sua visão, a principal causa do impeachment de Dilma é a crise econômica? É possível ocorrer um processo de impeachment sem crise econômica?
Delfim Netto
– A principal causa do impeachment de Dilma é, digamos, o quadro geral da sua administração. Sobre o impeachment, primeiro: ele está absolutamente dentro da lei, dentro das disposições da Constituição. Houve, sim, violação de função; não adianta querer discutir. No setor privado, se o banqueiro tomou emprestado no seu banco, ele vai preso e o banco fecha. No Estado, a Lei de Responsabilidade Fiscal diz que se o Estado pegar emprestado de seu banco, é violação. Esse é o ponto central. Tem os decretos em que a meta fiscal ainda não tinha sido mudada, e ela antecipou e disse "no fim do ano eu ajusto". Então, não há meta. Quer dizer, houve violações. Em condições normais de pressão e temperatura, sem o desastre econômico, ela ia receber um puxão de orelha do Tribunal de Contas da União. Agora, tendo em vista o quadro geral, o conjunto da obra é que se explicitou como violação. Essa justificativa de que "ah, todo mundo fez isso" é pura enganação. O nível em que foi feito nunca foi admitido. Se você olhar, a relação era sempre pequenininha. Aí, de repente, vem uma explosão. Por quê? Foi contabilidade criativa, mistificações, ampliações de restos a pagar. Ela fez todos os truques possíveis, transformou dívida pública em superávit primário. A quantidade de violações é monumental.

ConJur – Essa é a pior crise que o Brasil já enfrentou?
Delfim Netto
– A pior crise é sempre aquela que você está vivendo. Depois passa, e você diz que não era tão terrível, que a gente conseguiu escapar e tal. É uma crise muito grave, porque o nível de desintegração das finanças do governo é muito alto. O presidente interino está com uma proposta bastante razoável, essa de fixar o teto, mas ela precisa ser aprovada primeiro. Depois tem que aprovar [medidas] sobre a previdência, sobre a desvinculação, sobre as desvinculações de educação, mas que não tem nenhum efeito, porque o total das despesas vai ser acrescido pela taxa de inflação. Vamos supor que, no ano que vem, a população cresça 1%. O que você está exigindo desses setores? Que eles aumentem a sua produtividade em 1%, e isso com o desperdício, que nós sabemos que existe tanto na saúde como na educação. Mas isso não constitui uma dificuldade maior, porque se trata de problemas de administração. Creio que vai funcionar. O que é importante é o seguinte: precisamos dessas outras medidas: a desvinculação, a eliminação. É preciso continuar a usar o salário mínimo, porque ele é um instrumento de política salarial muito eficiente. Mas para continuar aumentando-o, é preciso eliminar a vinculação entre o salário mínimo e outros benefícios que não tem nada a ver. E o salário mínimo tem que acompanhar o ganho de produtividade. No final, é preciso fazer uma espécie de livre negociação salarial entre trabalhadores e empresas, que é a proposta da Central única dos Trabalhadores, quando eles tiveram um ataque de bom senso, depois de visitar a Alemanha, em 2010. Não se ataca nenhum direito do trabalhador. Pelo contrário: isso permite que o trabalhador sente de um lado, o empregado senta do outro, e eles põem os dados na mesa. Com isso, vê-se que se tudo ficar com um ou com outro, um dos dois morre. Se tudo ficar com o empresário, todo o excedente virar lucro, não tem consumo, e o empresário morre por falta de consumo. Se tudo ficar com o trabalhador, não tem dinheiro para investir, e o trabalhador acaba perdendo o emprego. Portanto, entre esses dois existe um caminho do meio, em que um pedaço vai ficar para cada um. E como isso se dá? Por meio da construção de uma negociação em que o trabalhador vai se integrar do que acontece com a empresa, transparentemente. “Se você quiser um salário mais alto, nós não vamos exportar, portanto o seu emprego vai embora, está certo?” Há uma educação recíproca que caminha para uma sociedade um pouco mais razoável.

ConJur – Mas o trabalhador não ficaria fragilizado nessa situação?
Delfim Netto
– Isso ocorreria sob vigilância do sindicato. Não é porque eles desejam, mas pelos fundamentos da Justiça Trabalhista. Aliás, o Brasil é um dos raros países que tem isso, mas qual é a premissa da Justiça Trabalhista? De que o trabalhador é um hipossuficiente, um idiota, e o empregador é um ladrão. Logo, precisa ter um cara no meio para por ordem. Mas isso é uma coisa completamente falsa. Mais do que isso: você introduz uma arbitrariedade no processo. O maior risco das empresas é que nenhuma delas sabe qual é o seu passivo trabalhista. Então, trata-se de destituições que permitem a segurança do trabalhador e dão flexibilidade para a economia.

ConJur – Na sua opinião, a Justiça do Trabalho tem que acabar?
Delfim Netto
– A Justiça do Trabalho nunca mais vai acabar, porque no Brasil nada acaba. Se você olhar o orçamento da União, vai perguntar: por que esse projeto X está aqui? E aí falam que é porque estava no ano passado, mas por que estava no ano passado? Porque estava no ano retrasado. Mas por que estava no ano retrasado? Porque D. João VI pôs. E a gente vai acumulando. Nada sai do orçamento, só entra. Uma das propostas que está aí é de um orçamento de base zero. Ou seja, todos os projetos, todos os programas vão ser reanalisados para estudar custo e benefício. Pegue o caso da Bolsa Família. Um dos maiores absurdos é você ser contra a Bolsa Família. Bolsa Família. É um programa absolutamente extraordinário, e de custo baixíssimo pelo efeito que tem, porque possui condicionalidades importantes. Você dá o mínimo de subsistência para a mãe enquanto ela está gerando o filho, depois dá a subsistência depois do nascimento, com uma assistência médica que o SUS vai fazer, e, no final ela vai por essa criança na escola. O Bolsa Família é o maior fator de igualdade de oportunidades. Onde é que se constrói a desigualdade? É no lar que você nasceu. Uma sociedade civilizada tem que reduzir a importância do acidente do lugar que você nasceu. Não importa se você nasceu numa festa no Waldorf-Astoria [hotel de luxo em Nova York], depois de uma festa brilhante tomando [champanhe] Don Pérignon, ou se de repente, em um sábado de noitinha, chovendo, debaixo do Museu do Ipiranga, você foi produzido sem querer. Uma vez produzido, você tem direitos. E que direitos? O direito de construir o seu instrumento de apreensão do mundo da mesma forma, ou de forma muito parecida com aquele que nasceu em um lar estruturado. O regime em que nós vivemos é um regime competitivo. A justiça não se faz na chegada, a justiça se faz na saída. Todo mundo tem que ter duas pernas, e depois a corrida é longa, vai depender do seu DNA, da sua sorte, das suas circunstâncias, uma porção de coisas. Onde você vai chegar, não tem injustiça. A injustiça existe se você partiu na frente. Essa sociedade é a que está implícita na Constituição de 1988. A Carta Magna não diz que saúde e educação básicas são universais e gratuitas. Ela diz: saúde e educação básica são para todos, paga por todos. É o maior nivelador da igualdade de oportunidades.

ConJur – Qual é a sua avaliação da Constituição de 1988, 28 anos após o senhor ter ajudado a escrevê-la?
Delfim Netto
– A Constituição de 1988 tem muitos defeitos, mas tem muitas virtudes. Ela melhorou a qualidade do Brasil enormemente. Dou o exemplo das vinculações. Eu discutia com o Mário Covas [fundador do PSDB e ex-governador de São Paulo] quando estávamos lá [na Assembleia Constituinte]: “nós dois somos tão inteligentes que vamos deixar na Constituição o seguinte: qualquer idiota que chegue em 2020 no Brasil tem que obedecer o que nós decidimos”. Vinculação é a mesma coisa que você entrar em um avião, levantar voo, colocar no piloto automático e ficar esperando acabar a gasolina, porque o mundo muda! O importante é que dar para o Congresso, que representa a sociedade, a capacidade de fixar as prioridades de acordo com o que elas vão aparecendo. Os objetivos da Constituição são formidáveis, pois visam à construção de uma sociedade civilizada — que, no fundo, é uma sociedade na qual há plena liberdade de iniciativa. Você corre os riscos e se apropria dos seus resultados, desde que a lei o permita. Segundo: igualdade de oportunidades, feita através de políticas públicas, como saúde e educação básicas pagas por todos. Para a sociedade não tem nada grátis. Quando o meu velho professor André Franco Montoro foi governador de São Paulo em 1982, ele pôs nos ônibus a frase "Transporte: um direito do cidadão e um dever do Estado". E eu dizia “Montoro, não. Transporte é um direito do Pedro pago pelo Paulo”. Igualdade de oportunidades exige educação e saúde básicas e programas como o Bolsa Família. Assim, o cidadão é amparado desde o início, e o Estado mitiga o poder através de uma política fiscal. Você encurta o ponto de partida de todos. Se você vai receber uma herança, eu vou cobrar de você um pedaço da herança para nivelar; não vou equalizar, mas eu mitigo o efeito dos ganhos das gerações anteriores de tal jeito que todo mundo sai mais ou menos do mesmo lugar. E como se pretende fazer isso? Através do único sistema que o homem descobriu de produzir com eficiência, que é o mercado, e que é compatível com a liberdade e com a igualdade de oportunidades. Isso tudo é uma invenção do homem. Nada disso é natural. O capitalismo se instalou no século XVIII, XIX, e desde o início teve dificuldades gigantescas. O Karl Marx, melhor do que qualquer um, mostrou isso. Como é que o trabalhador se defendeu? Fazendo sindicatos, criando partidos e construindo o sufrágio universal, que empodera quem não tem capital. E é por isso que essa sociedade é um jogo dialético entre duas instituições: a urna e o mercado. Se a urna exige do mercado mais do que a sociedade pode dar, no próximo round, a urna muda. Se o mercado explora a sociedade mais do que ela suporta, a urna vem e corrige. Você tem um jogo entre as duas instituições que vai caminhando na construção dessa sociedade civilizada a que eu me referi.

ConJur – Qual é o papel do Judiciário na construção dessa sociedade civilizada?
Delfim Netto
–  Nesse sistema, existe um Estado forte constitucionalmente controlado por um Supremo Tribunal Federal, que é o garante das liberdades. E por que um Estado forte? Para que ele seja suficientemente forte para regular os mercados. O mercado é uma invenção do homem, com todos os defeitos de qualquer invenção do homem. O mercado não é uma criação divina. O mercado, no fundo, é um produto da propriedade privada, que não existe sem o suporte de um Estado forte.

ConJur – E o Supremo tem exercido esse papel?
Delfim Netto
– Eu não tenho dúvida. O Supremo tem dado lições extraordinárias. O PT fez oito dos 11 juízes, e as pessoas ficam em dúvida [sobre a imparcialidade da corte]. Eu nunca tive dúvida. Quando um homem chega ao Supremo, ele não tem mais passado, ele só tem futuro. O que você acha que quer um sujeito que chegou lá? “Ah, eu quero deixar pareceres, votos que daqui a 25 anos vão ser citados ‘como dizia o ilustra ministro não sei o que’. Eu vou ajudar a construir essa estrutura do Direito”. Como eu disse, qual foi a maior demonstração que Dilma não tinha mais protagonismo? Foi quando ela não conseguiu aprovar a relação com os estados e foi obrigada a mandar isso para o Supremo. O Supremo não decidiu, o Supremo disse: eu dou 60 dias para vocês chegarem a um entendimento; quer dizer, ele não se meteu naquela eleição maluca de se pode existir juro sobre juro. Quando você tem que mandar para o Supremo uma coisa como essa, é porque já não há mais governo, e eu não tenho dúvida que o Supremo tem se revelado o garante das nossas liberdades. Mas não é bom que o Judiciário interfira em tudo. Essa judicialização da política é tão ruim quanto a politização da Justiça. Nisso eu acho que o Supremo tem se defendido brilhantemente.

ConJur – É possível restabelecer as finanças públicas sem mexer em direitos adquiridos?
Delfim Netto
–  Não vai se mexer nunca em direito adquirido, porque começa a desarrumar. O que tem que fazer é discutir os parasitismos que se instalaram nos direitos adquiridos. Por exemplo, a Previdência Social. A previdência do setor privado tem 25 milhões de brasileiros que ganham em média R$ 900 por mês. A previdência pública tem 900 mil sujeitos que ganham em média R$ 12 mil. Dá muita coisa por ano. Visivelmente, não há nada de republicano nisso. Ao passo que essa ideia de que somos todos iguais vai se estabelecendo, é preciso encontrar passagens para fazer isso. A reforma da previdência vai ser isso. Não vai tirar direito de ninguém, mas vai dar um regime de passagem que diz o seguinte: daqui a dez anos, vai estar muito melhor do que hoje, e daqui a 25 anos, a previdência não será mais problema.

ConJur – Mas os 900 mil que hoje ganham R$ 12 mil por mês vão continuar ganhando esses salários? 
Delfim Netto
–  Provavelmente as pensões serão mitigadas, serão estabelecidos limites. Você não vai acabar com isso, nem o Brasil, e nem qualquer outro país do mundo fariam isso — a não ser que haja uma revolução. Mas hoje há uma Constituição, e esses direitos adquiridos vão ser respeitados porque há toda probabilidade de você reduzir os efeitos disso ao longo do tempo. Então, não vai haver ataque ao direito adquirido, porque isso é um negócio muito ruim para o futuro do país. A insegurança jurídica é mortal, e prejudica dramaticamente o processo de crescimento.

ConJur – E o que pode ser feito com a carga tributária?
Delfim Netto
–  Nada. Se brigar, ela vai crescer. O Estado obviamente é ineficiente — quem é que não sabe disso? Quem é que não sabe que é realmente impossível fazer o Estado ser eficiente? Por quê? Porque o funcionário termina seu expediente na quinta-feira à noite e volta na terça. Quando você está seguro, quando você não tem nenhum risco, sua tendência é se acomodar. Quando você presta um concurso e ganha um lugar de ser inamovível, o que você vai fazer? Vai viver em vez de trabalhar. O que está certo, porque o homem não nasceu para trabalhar. O trabalho é simplesmente um mecanismo para a sua sobrevivência material, porque para você ser homem, você tem que ganhar a sua imunidade, você tem que exercer as suas potencialidades, e isso depende de educação e de saúde.

ConJur – O que prejudica mais o país, tanto na área do Poder Público como na sociedade: corrupção ou ineficiência?
Delfim Netto
–  Ineficiência. A corrupção vai ser corrigida, vai voltar para o índice que existe em qualquer sociedade do mundo. O que nós precisamos corrigir é a ineficiência do serviço público, que é uma questão de administração. 

ConJur – O fim da estabilidade dos empregos públicos, como o senhor mencionou, seria um caminho para aumentar a eficiência do Estado ?
Delfim Netto
–  Nos cargos de Estado, você precisa de uma relativa estabilidade. Nos outros, não. Tanto que, em 1984, 1985, não tinha nenhuma estabilidade, a não ser nos cargos de Estado. Quem estabeleceu a estabilidade para todo mundo foi o Collor, porque o governo tinha que pagar o INSS dos não estáveis, dos estatutários, dos contratados. Ele achou que era uma grande coisa, e transformou todos em estatutários e não recolheu o INSS. 

ConJur – O senhor citou o salário mínimo como uma ferramenta de equilíbrio nas relações sociais. Mas o grande aumento do salário mínimo a partir de 2003, de US$ 72 para US$ 272 em 2016, não foi um dos fatores responsáveis pela explosão da previdência? 
Delfim Netto
–  Não, porque você usou o salário mínimo como indexador. O salário mínimo não pode ser um indexador. Senão não é possível melhorar o salário mínimo. Até a Alemanha, depois de 70 anos, rendeu-se e estabeleceu o salário mínimo, porque um salário mínimo que tenha 40% do salário mediano é um bom instrumento para melhorar a distribuição da renda. Você não pode é usar esse salário mínimo como indexador das outras despesas.

ConJur – Muitos especialistas afirmam que a tributação brasileira, mais focada no consumo do que na renda, é um grande fator para a desigualdade. O senhor concorda com essa visão? 
Delfim Netto
–  Eu não tenho dúvida. O problema do Brasil é uma carga tributária extremamente elevada e extremamente mal distribuída.

ConJur – E como mudar isso? Com alíquotas mais altas do Imposto de Renda para os mais ricos e criação de imposto sobre grandes fortunas?
Delfim Netto
–  Tributação de grandes fortunas é coisa de pessoas generosas que não gostam de ler, não gostam de estudar. A tributação de grandes fortunas não funciona em nenhum lugar do mundo. Pelo contrário: é um imposto ruim, que dá um poder inacreditável ao Fisco. Eles dizem assim: “ah, isso é um tapete persa que você trouxe de Istambul que vale US$ 300 mil”. Você fala que não, que comprou na feira ali, e eles não acreditam, arranjam a expertise. 

ConJur – Na sua visão, o futuro do país vai ser bom?
Delfim Netto
–  Nós não temos capacidade para impedir o Brasil de voltar a crescer. 

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!