Segunda Leitura

Individualismo na área jurídica só serve para piorar o sistema de Justiça

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

10 de julho de 2016, 10h10

Spacca
Sistema é a “reunião dos elementos que, concretos ou abstratos, se interligam de modo a formar um todo organizado”.[i] As relações jurídicas só alcançam eficiência quando os envolvidos colaboram entre si, de forma sistêmica, visando alcançar a meta comum. Evidentemente, isto nem sempre é fácil, pois somos seres humanos, temos nossas deficiências e isto transparece em nossas decisões pessoais e profissionais. No entanto, sabidamente, resultados dependem da equipe e não de um ator, por mais genial que seja.

O psiquiatra Augusto Cury, comentando os hábitos dos bons profissionais, coloca, entre eles, o trabalho em equipe. Repudiando o individualismo, ensina que “bons profissionais vivem ilhados, enquanto profissionais excelentes vivem interagindo. Bons profissionais valorizam a força do indivíduo, profissionais brilhantes valorizam a força do grupo. Bons profissionais lutam pelo estrelismo, enquanto profissionais excelentes lutam pelo sucesso da equipe”.[ii]

Vejamos se estas recomendações são observadas no Brasil.

Informa a imprensa que, no dia 5 de julho passado, o ministro Celso de Melo, dos mais respeitados no Supremo Tribunal Federal, deferiu liminar para colocar em liberdade o empresário Leonardo Coutinho R. C. Mello, condenado por homicídio qualificado a 14 anos e 6 meses de reclusão, sob a acusação de ter matado seu sócio em uma boate, em Belo Horizonte, no ano de 2009.[iii] Segundo a mídia[iv] Cipriano matou Gustavo com um tiro na cabeça, enrolou o corpo numa manta de isolamento acústico, colocou-o nos fundos da boate e, na mesma noite, participou de uma festa no local.

Ocorre que, em 17 de fevereiro passado, o STF estabeleceu, por maioria de votos, que a execução da sentença poderia ser feita a partir da decisão da segunda instância.[v] Argumentou Mello que a decisão não é vinculante e manteve sua posição contrária. Tal afirmação é verdadeira, sem dúvida, e não seria necessário mais do que oito linhas para justificá-la. O que é inusitado é não respeitar a opinião da maioria, ou “força do grupo”, como diz Augusto Cury.  Decisões individuais divergentes da conclusão da maioria, principalmente no STF, transmitem à sociedade insegurança jurídica e fazem com que a liberdade de alguém dependa da sorte, ou seja, da distribuição a este ou àquele ministro.

Mas o individualismo não é privilégio do STF e nem de decisões judiciais. Na esfera da administração judiciária, os tribunais de apelação (TRFs, TRTs e TJs) trocam de presidente a cada dois anos.  Geralmente o novo presidente troca toda ou quase toda a equipe de trabalho. A partir daí, mesmo havendo planejamento estratégico para evitar alterações desnecessárias, muitas coisas se fazem sem nenhum resultado positivo.

O que aqui se diz vale também para outros gestores, como corregedores, coordenadores e diretores de Foro. Às vezes o gestor diz, com orgulho, que trará “a sua equipe”, como que a insinuar que estes, sim, merecem confiança, e os que lá estavam, não. Em outras, simplesmente muda a sigla de um setor que passa, por exemplo, de SEISIM para SEILÁ e, na realidade, tudo continua igual. E ele pensa que deixou sua marca. Deixou sim, a marca do individualismo e da incompetência.

A segurança pública dispensa comentários. O Estado, cada vez mais fraco, não dá segurança nem aos seus próprios agentes, munidos com armas notoriamente inferiores às dos membros do crime organizado. Mesmo assim, Polícia Civil e Militar seguem em caminhos diferentes, disputando poder. Planos de alcançar-se colaboração entre ambas não avançam. Apenas duas Academias de Polícia ministram cursos de forma integrada para as duas, Pará e Ceará.[vi] Enquanto isto, a PEC 430/2009, que as une sob o nome de Polícia Estadual, não avança na Câmara dos Deputados.[vii]

O processo eletrônico é uma realidade. Mas os sistemas de acesso são diferentes e isto cria dificuldades aos advogados. O Conselho Nacional de Justiça possui o seu Processo Judicial Eletrônico, o PJe. Tentou impô-lo aos demais tribunais, porém encontra dificuldades, pois muitos já atuam com programas que consideram mais efetivos e, neles, investiram alto (v.g., TJ-SC, TJ-MS, TJ-SP, TRF-4 etc.).[viii] Sem qualquer análise de qual é o melhor programa, uma coisa é certa: houve e há individualismo na implantação dos programas. Se tivesse o CNJ, quando eles surgiram, assumido a condução da histórica transformação, teria sido mais fácil encontrar o melhor caminho.

Há, contudo, boas iniciativas a demonstrar que podemos reverter este quadro de individualismo e consequente ineficiência.

Na Bahia, a partir de novembro de 2002, tiveram início diversas operações destinadas a revitalizar o rio São Francisco, chamadas de “Fiscalização Preventiva Integrada – FPI”, delas participando diversos órgãos em parceria, como o MP-BA, Ibama, Adab, Crea, Inema, MPF, MPT, Sefaz, Sema, PM, MMA, Polícia Civil, Funasa e outros. Cada operação destina-se a municípios de determinada região e em abril de 2014, realizou-se a 33ª etapa. As decisões são tomadas em reuniões periódicas e “todos os órgãos possuem igual importância, nenhum é mais importante do que o outro, e, sem dúvida, esse é um dos grandes segredos para o êxito do programa”.[ix]

O bom exemplo ultrapassou a divisa, sendo implantado em Sergipe e Alagoas. Neste estado já se chegou à 5ª etapa, tendo a atuação, por foco, municípios da calha do rio São Francisco. O FPI acaba não só realizando audiências públicas, conscientizando e dando esperanças à população, revitalizando o “Velho Chico”, como também reprimindo outras ofensas ao meio ambiente. Por exemplo, em 18 de maio passado, durante uma operação, foi destruído “um viveiro clandestino com cerca de 100 de pássaros silvestres nos fundos de um motel localizado na zona rural do Município de Santana do Ipanema”.[x]

Na área tributária, o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) é devido aos estados, geralmente na base de 4% sobre o valor declarado por toda pessoa física ou jurídica que receba bens ou direitos de terceiros, seja como herança ou doação. As Secretarias da Fazenda estaduais, por força de convênio, recebem informações da Receita Federal sobre cada doação declarada no Imposto de Renda e daí faz a exigência. Trabalhando juntos, o órgão federal e os estaduais reduzem a sonegação.

Mas muito há a ser feito. Por exemplo, estados da região Norte realizam excelentes expedições em embarcações a municípios distantes, onde populações carentes desconhecem ou não usufruem seus direitos. Tais iniciativas, sem dúvida louváveis, poderiam ser ampliadas, nelas integrando membros da Justiça Federal e do Trabalho, a fim de que a assistência fosse a mais completa possível.

Na região Sul, iniciativas semelhantes são feitas, evidentemente não em embarcações, mas sim através de veículos. Por exemplo, o município com menor PIB do sul do país é Doutor Ulisses, no Paraná. Seria de todo oportuna a realização de um esforço concentrado das Justiças, MPs, OAB, Polícia Militar e Civil, prestando auxílio àquela população carente, elevando seu nível sócio econômico.

Como se vê, muito há a fazer para que o sistema jurídico brasileiro – sem falar do resto – aperfeiçoe-se e alcance nível mais elevado. Trabalhar em conjunto, com certeza, é um dos requisitos para que isto passe de sonho a realidade.

 


[ii] CURY, Augusto. O Código da Inteligência. São Paulo: Sextante, 2015, p. 239.

[iii]  Estado de São Paulo, “Decano ignora STF e suspende prisão”,  6.7.2016, A6

[v] STF, HC 126292, Plenário, rel. min. Teori Zavascki, j. 17.2.206, http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=310153, acesso em 4.7.2016. 

[vii] Vide “Em nome da segurança pública, é preciso discutir a polícia única estadual”, Vladimir Passos de Freitas, Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 29.11.2015.

[ix] Velho Chico. A experiência da Fiscalização Preventiva Integrada na Bahia. Coord. Luciana E. C. Khoury e  Priscila A. Rocha. Salvador: MPBA e parceiros FPI, 2014, p. 114.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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