Processo Familiar

Importância do psicólogo nas perícias é reconhecida pelo Código de Processo Civil

Autor

  • Giselle Câmara Groeninga

    é psicanalista doutora em Direito Civil pela USP diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família professora da Escola Paulista de Direito.

10 de julho de 2016, 10h34

Spacca
Um dos efeitos da interdisciplinaridade deve ser o fortalecimento da identidade de cada disciplina.  O encontro com outras áreas do conhecimento deve marcar os limites, diferenças e possibilidades de atuação profissional.

Mas este ainda é um cenário um tanto distante. No momento atual, a riqueza da descoberta da complexidade dos conflitos, e a busca de formas de abordá-los, tem trazido também uma certa confusão. Importante diferenciar os conflitos que se transformam em impasses, e que chegam ao Judiciário, daqueles que fazem parte da vida de relações e que se transformam e evoluem, quer naturalmente ou com intervenção de outros agentes ou de profissionais — conflitos não judicializados.

Os conflitos são gênero, inerentes à nossa condição humana, enquanto que os impasses e litígios são espécies. Ao tomar os conflitos em geral como se fossem ameaças ao ideal de paz, acabamos por incrementar, indevidamente, a judicialização da sociedade, ampliando o escopo da intervenção do Estado e mesmo a confusão entre a função de cada profissional.

Nesta dinâmica de conflitos cada vez mais indevidamente judicializados, os operadores do Direito e os operadores da Saúde que atuam na área da Justiça passam por uma verdadeira “crise de identidade”, e pode-se dizer o mesmo em relação a um assoberbado Judiciário.

Neste cenário, é saudado, não sem algumas ressalvas, o novo Código de Processo Civil. Deve ser brindada sua ênfase na colaboração e na autocomposição — dinâmicas que têm mobilizado a todos os profissionais quanto à forma e ao escopo de suas atuações.

A importância dada à mediação e à conciliação, ainda em processo de definição de suas diferenças, representa um desafio a ser enfrentado por todos os profissionais e que, de uma forma ou de outra, passou a atravessar suas práticas.

Mas não somente em relação a estes dois institutos encontram-se os desafios.

Especificamente, no caso da atuação dos psicólogos na área da justiça, o Código de Processo Civil traz importantes questões que, felizmente, têm mobilizado discussões nos órgãos da classe.

Como inovação temos o artigo 156 que diz que o juiz será, e enfatizo —será —, assistido por perito quando a prova ou fato depender de conhecimento técnico ou científico. Uma devida valorização do conhecimento próprio ao psicólogo nas demandas que envolvem questões de família. Podem ser nomeados peritos os profissionais legalmente habilitados e, como inovação, os órgãos técnicos ou científicos devidamente inscritos em cadastro mantido pelo tribunal ao qual o juiz está vinculado. Caberá aos tribunais a avaliação para manutenção do cadastro. Avaliação cujos critérios, acredito, devam necessariamente ser objeto de discussão com as respectivas categorias profissionais.

O artigo 464 define a prova pericial como exame, vistoria ou avaliação. Ademais desta função, é preciso dizer que o trabalho realizado pelos psicólogos muitas vezes tem, além da perícia, um caráter de intervenção. Esta guarda uma relação, mas que não se confunde, com a mediação e a conciliação. Institutos que têm enquadramentos específicos e profissionais não necessariamente formados em psicologia.

Assim, no âmbito das perícias podem ocorrer intervenções com o uso de técnicas próprias à psicologia, e que em muito contribuem para a elaboração dos conflitos e solução dos litígios. Para citar algumas: a conscientização do significado e das consequências das disputas, sobretudo, para os filhos; mediação das relações com o fortalecimento dos vínculos; a prevenção de transtornos psíquicos ou de seu agravamento; acompanhamento da situação objeto do litígio; recomendação de psicoterapias específicas às situações analisadas.

No parágrafo 2º consta que o juiz poderá determinar a produção de prova técnica simplificada, com a inquirição de especialista, quando o ponto controvertido for de menor complexidade. Uma inovação cuja definição a priori é um tanto difícil quando se tratam de questões inerentes à avaliação psicológica, uma vez que, em geral, é no curso da perícia que a complexidade pode ser avaliada. Mas a prática o dirá. Como também a experiência indicará, acredito, a necessidade da presença de assistente técnico na inquirição de especialista.

Mas é o artigo 466 que traz importante controvérsia quanto ao concurso do assistente técnico no campo da psicologia. Diz o parágrafo 2º: “O perito deve assegurar aos assistentes das partes o acesso e o acompanhamento das diligências e dos exames que realizar, com prévia comunicação, comprovada nos autos, com antecedência mínima de cinco dias”.

Já a resolução 008/2010 do Conselho Federal de Psicologia que trata a respeito da atuação do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder Judiciário, aponta que os assistentes técnicos são de confiança da parte para assessorá-la e, sublinho, garantir o direito ao contraditório. No entanto, observo que no Capítulo I – Realização da Perícia, o artigo 1º diz que “o psicólogo perito e o psicólogo assistente técnico devem evitar qualquer tipo de interferência durante a avaliação que possa prejudicar o princípio da autonomia teórico-técnica e ético-profissional, e que possa constranger o periciando durante o atendimento”. E diz o artigo 2º: “O psicólogo assistente técnico não deve estar presente durante a realização dos procedimentos metodológicos que norteiam o atendimento do psicólogo perito e vice-versa, para que não haja interferência na dinâmica e qualidade do serviço realizado” (grifos meus).

Certo é que não há de se questionar a hierarquia das normas. No entanto, cabem algumas considerações e, quiçá, a ponderação de princípios para que a diferença entre o CPC e a referida resolução seja devidamente sopesada. Minha experiência como perita e como assistente técnica recomendam cautela e amadurecimento quanto a esta questão, e que deve ser considerada caso a caso. E com este caráter faço as considerações a seguir.

Há uma característica da avaliação psicológica que implica na exploração de questões da intimidade, e a exposição de aspectos muitas vezes desconhecidos e mesmo negados, inclusive inconscientemente. Cuida-se aqui da preservação da intimidade e mesmo de questões de dignidade.

O vínculo com o perito, sem a presença de assistentes técnicos, poderia gerar uma relação de maior confiança, menor constrangimento e também terreno fértil para uma possível intervenção do perito e resolução do litígio. E é certo que pode ser mais constrangedor que a avaliação se dê na presença de assistentes técnicos. Estas são algumas razões pelas quais as perícias psicológicas não deveriam ser acompanhadas pelos assistentes técnicos.

Mas, por outro lado, a presença dos assistentes também poderia, por exemplo, trazer maior segurança pessoal aos assistidos, inibir a tentativa de manipulação do perito, efetivamente colaborar com este na avaliação de questões prenhes de subjetividade, além de possibilidade de acompanhar e, se for o caso, criticar a produção da prova.

Pondero que, neste último aspecto, o novo código traz algumas salvaguardas, especificando no artigo 473 o que o laudo pericial deverá conter, garantindo-lhes melhor qualidade e possibilidade de crítica (exposição do objeto da perícia; análise técnica ou científica realizada pelo perito; indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou; resposta conclusiva a todos os quesitos).

Mas é certo que sem o acesso às entrevistas, o trabalho do assistente técnico é dificultado e muitas vezes chega a ser cerceado pela falta de acesso às partes, ficando muitas vezes sua credibilidade diminuída. Do meu ponto de vista, tal situação corrobora para que, muitas vezes, os laudos críticos se assemelhem mais a uma defesa das partes, com considerações indevidas e coibidas pela ética dos psicólogos, em vez de serem trabalhos de compreensão da dinâmica psicológica que se encontra em jogo no litígio em exame.

O resultado pode ser, então, uma descabida parcialidade, do ponto de vista da psicologia. Aponto a indevida parcialidade porque no campo de análise da psicologia as relações devem ser vistas como necessariamente complementares, envolvendo aspectos conscientes e inconscientes. Ou seja, não cabe uma visão maniqueísta e excludente de certo ou errado, ou mesmo de são ou doente, assim como não cabe a mera defesa de uma parte em detrimento da outra. Tal postura de assistentes técnicos pode trazer sérios prejuízos à dinâmica familiar e resolução dos litígios.

E, finalmente, quanto ao acompanhamento das entrevistas, quase desnecessário seria dizer que todo o cuidado é pouco quando se cuidam de avaliações que envolvam crianças e adolescentes, vulneráveis que são aos traumas e sua repetição que pode se dar com as avaliações.

Finalmente, como inovações expressas, temos ainda, o artigo 471 parágrafo 3º, segundo o qual “a perícia consensual substitui, para todos os efeitos, a que seria realizada por perito nomeado pelo juiz”. E no artigo 472 consta que: “O juiz poderá dispensar prova pericial quando as partes, na inicial e na contestação, apresentarem sobre as questões de fato, pareceres técnicos ou documentos elucidativos que considerar suficientes”. Assim, ganham valor a escolha consensual e também os pareceres e laudos prévios.

As questões, confusões e discussões estão apenas em seu início, mas acredito ser um cenário promissor, com a valorização e o reconhecimento da importância do operador da saúde, caminhando ao lado da eficácia que deve pautar sua atuação, segundo a ética profissional, e em consonância com o novo Código de Processo Civil.

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    é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

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