Opinião

Atecnia suprema, prisão antecipada desrespeita título executivo judicial

Autor

9 de julho de 2016, 8h30

Recentemente, em fevereiro do presente ano, toda a comunidade jurídica, acadêmica do Direito e a sociedade brasileira foram surpreendidas com a reviravolta não prenunciada de entendimento do STF quanto à execução provisória (antecipada) da sentença penal condenatória, isto é, daquela que ainda não transitou em julgado, seja lá porque motivo for.

Com efeito, o cenário posto em 2009 a partir do HC 84.079 restou simplesmente abandonado à própria sorte, apesar da resistência dos votos vencidos quanto à jurisprudência solidificada e à necessidade de amadurecimento do debate para mudança de entendimento, pela Suprema Corte que, a fórceps, arguiu, pobremente do ponto de vista jurídico – ao menos –, o reclame social quanto à impunidade e à morosidade do Poder Judiciário para punir os crimes cometidos. Em suma: o STF assumiu, em uma simples votação e a partir de uma meia dúzia de discursos que replicam os reclames das ruas – e que não necessariamente estão de acordo com a lei e o Direito – a incompetência do poder do qual é o representante máximo para cumprir o dever que lhe cabe, e, consequentemente, a própria falência em relação à sua competência penal, ao menos. Vale lembrar que, como aludido pelo ministro Dias Toffoli – que votou pela virada jurisprudencial – quando da votação da Lei da Ficha Limpa no STF, salvo engano, às vezes é preciso proteger a sociedade dela mesma, sob pena de permitir sua extinção.

Em um piscar de olhos o que era impossível juridicamente passou a ser possível. A embalagem e o conteúdo são os mesmos e o produto, logo, é também o mesmo. O resultado que produz, contudo, agora é outro, exatamente o seu oposto, o seu inverso. Um verdadeiro verso reverso. Durma-se com um barulho desses!

Contra esse decisium foram escritos artigos diversos e, mais recentemente, ajuizadas as ADC´s 43 e 44. Essas medidas pedem, em apertada síntese, a declaração de constitucionalidade do art. 283, CPP – não mencionado no julgamento do HC 126.292 – e pelo efeito suspensivo pelo menos para o RESp em processo penal, já que o art. 637, CPP, somente o veda o para o RE – que então julgava também matéria infraconstitucional -, o que afasta a incidência da Lei 8.038/90 e do NCPC quanto à disciplina nesta parte deste recurso no processo penal.

Contudo, em nenhum desses escritos sobre a questão eu pude perceber a justificativa da atecnia suprema, com o perdão da ambiguidade, com base na teoria dos títulos executivos judiciais. Com efeito, há quatro teorias a respeito.

A Teoria do título como acertamento do direito subjetivo material (Crisanto Mandrioli) argui que quando há obrigação definida em título não há dúvida da dívida (cumprimento da pena in casu), razão porque o título tem uma eficácia certificante que atua antes e fora da execução (provisória ou definitiva). Com isso, o título é o ato de acertamento contido em documento, que constitui condição necessária e suficiente para a execução forçada. Aqui o título não seria o gerador da ação de execução, mas sim condição para seu exercício. Percebe-se que o novel entendimento não atende aos preceitos dessa teoria, pois não há título juridicamente ainda, ou seja, não resta cumprida uma condição da execução.

Passemos, pois, à análise da Teoria documental (Carnelutti), que aduz que o título é a pretensão conforme ao direito e, por isso, há presunção de existência do direito material, o que dispensa a atividade cognitiva e viabiliza a pronta atuação da norma jurídica. Aqui o título executivo é a ancora explícita para ordenar os atos executivos. O crédito (pena privativa de liberdade) é fruto de relativa certeza dada por lei, o que faz do título a prova legal ou integral do crédito (restrição da liberdade por prazo determinado). Em síntese, o título é o “documento” do ato, ou seja, o título é o ato de crédito documentado, e não o próprio crédito em si. Por isso mesmo sofre a crítica de haver exagero na concessão à forma ao condicionar a existência da execução ao efeito probatório daí resultante. Sabemos, contudo, que não há imposição de pena sem o devido processo legal, razão porque não se pode falar em presunção de existência do direito material (punição do acusado) que permita a pronta atuação da norma jurídica, bem como que, novamente, não há título executivo hábil (sentença penal com trânsito em julgado) a ordenar os atos executivos. Tal teoria também não embasa o decisium em voga.

Por sua vez a Teoria do ato jurídico (Liebman) defende que o título tem toda a energia necessária para a execução, razão porque a lei abstrai sua causa, isolando-o do próprio crédito fundado no direito material. Isto é, o título executivo é ato jurídico dotado de eficácia executiva porque é fonte imediata e autônoma da execução, que é independente do crédito. Por isso mesmo se torna dispensável a prova do crédito. Vale dizer, o título é a fonte “imediata, direta e autônoma” da regra sancionadora e dos efeitos jurídicos dela decorrentes. Título, em sentença penal sem trânsito em julgado, não existe, já dissemos, e por isso não se pode falar na existência da energia necessária para a execução provisória. Cabe então perguntar: se não pode haver execução definitiva sem a sentença penal condenatória (documento), isto é, mesmo com o direito material existente porque transitada em julgado a sentença, não se pode executar a prisão privativa de liberdade porque falta-lhe a forma jurídica a permitir sua eficácia, como pode haver execução provisória sem o direito material enquanto ato jurídico perfeito e acabado? Eis exatamente a crítica à Teoria do ato jurídico: a inexistência do ato jurídico (penal definitiva), sempre que existente o documento (sentença penal sem trânsito em julgado), não impede a execução (provisória, in casu), mas o inverso não é verdadeiro, uma vez que inexistente o documento (sentença penal com trânsito em julgado), inexistente o ato (pena a ser executada, provisória ou definitivamente). Não se presta, também, a fundamentar a decisão ora em apreço.

Somente resta, portanto, a Teoria mista (Theodoro Junior e a maioria da doutrina brasileira) que afirma que o título executivo é ato (vontade do Estado de possibilitar aos particulares a atuação da sanção)-documento (título imprescindível à execução), pois não é o ato jurídico material (sentença penal sem trânsito em julgado que demonstra a vontade estatal momentânea) que enseja a oportunidade da execução, mas sim a sua forma em um documento que contenha os requisitos legais (ausência de recurso, seja por que não mais cabe, seja porque o cabível não foi interposto). Isto é, o título é documento que tem em seu bojo um ato de vontade, revestido de formalidades (dentre elas o trânsito em julgado na seara penal e processual penal) que lhe torna apto a possibilitar seu portador a utilizar a via da execução forçada para satisfazer seu crédito (execução da pena in casu). É, portanto, ato e documento. E documento aqui não existe, pois que ausente o trânsito em julgado da sentença penal. Mais uma vez não se sustenta a decisão do HC 126.292.

Desta feita, em apertada síntese, à luz das teorias do título executivo judicial, assim como nas já aventadas razões em diversos artigos e nas ADC referidas – como em outras não conhecidas por este subscritor -, tem-se também a ausência de fundamentação legal da decisão que causou, surpreendentemente, reviravolta no direito de ir e vir do cidadão brasileiro.

Conclui-se, tristemente, que essa atecnia suprema, além de violar a Constituição Federal e o art. 283, CPP, desrespeita as teorias que embasam o título executivo judicial que a decisão em voga diz existir em caráter provisório, hábil a permitir sua execução precária. Bem precária! 

Autores

  • Brave

    é advogado, sócio fundador do escritório Guimarães Parente Advogados. Especialista em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – FESMPDFT, pós-graduado em Direito Médico pelo Centro Brasileiro de Pós-Graduações – CENBRAP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!