Opinião

Jusnaturalismo é instrumento para interpretação do Direito Tributário

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9 de julho de 2016, 7h41

Não há dúvida de que vivemos um momento disruptivo no Brasil, tanto na sociedade quanto na política. A amplitude dos impactos gerados pelos recentes acontecimentos, envolvendo principalmente a corrupção, está testando a solidez das instituições brasileiras, a sua capacidade de enfrentar e responder aos ataques à estabilidade política e social. Esse ciclone expande-se, inevitavelmente, até envolver também o Direito.

O paternalismo explícito verificado na política nacional, resgatando e aplicando na prática as lições de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Raymundo Faoro, sustenta-se, em grande medida, na tradição jurídica dogmática, positivista, que ainda é observada na administração do ordenamento jurídico brasileiro. A hierarquia normativa em vigor reflete, quase que perfeitamente, os diversos níveis do extrato social, incluindo o respeito e a observância exigidos pelos detentores de poder, qualquer que seja o seu tamanho. A inquestionável aceitação da letra da lei, que se imporia ao exercício dos poderes instituídos (Executivo, Judiciário e o próprio Legislativo), reforça o estamento estabelecido no Brasil.

Sob o argumento da manutenção e da defesa da segurança jurídica, colocam-se dúvidas sobre procedimentos judiciais que, de certa forma, são aplaudidos pelo senso comum, que percebe melhor a lesão a algo como um padrão moral do que a proteção do texto normativo. O efeito gerado é exatamente o oposto: a aplicação cega da lei, em detrimento de algum conteúdo moral, retira a legitimidade do Estado em procurar manter a ordem social. Começa a não ser mais aceita a aplicação do Direito de modo a amparar condutas imorais ou amorais, ainda que respeitadas as letras e os dispositivos normativos.

A interpretação e a aplicação dogmática do ordenamento jurídico já não respondem as necessidades e os anseios, em uma palavra, demandas, da sociedade. O positivismo jurídico privilegia a manutenção do poder em exercício, porque não aceita questionamentos de posições literais, questões essas que têm origem em outras fontes do Direito, que não são, necessariamente, formais. Os movimentos disruptivos atuais abriram frestas na sólida e, aparentemente indestrutível, vedação construída pelo positivismo jurídico, que isolou o direito de outras formas de comunicação social, inclusive normativas, nos termos apresentados por Tércio Sampaio Ferraz Júnior.

Os “donos do poder”, que governam no patrimonialismo brasileiro, estão sendo questionados e os métodos utilizados nesse desiderato pela banda oficial, inserida nos poderes instituídos, não encontram barreiras ou obstáculos no seio da sociedade, ainda que, por vezes, as medidas tomadas, mesmo sob o manto oficial, contrariem a ordem jurídica estabelecida e tradicionalmente assegurada. A ampla proteção concedida pela lei aos cidadãos, sejam eles inocentes ou corruptos, passa a ser selecionada, a ser perfurada em pontos específicos, para que as luzes de algo como um padrão moral possa adentrar à cidadela jurídica, iluminando e aquecendo o texto escuro e frio da lei. As vozes comunicativas de outras fontes do direito começam a ser ouvidas, sobressaindo ao discurso oficial e tradicional.

É imprescindível advertir que o patrimonialismo brasileiro não é exclusividade desta ou daquela ideologia, ou de que lado da Assembleia Nacional os partidários tomam assento. O atual momento brasileiro demonstra que a confusão entre público e privado tem apenas uma condicionante: o exercício do poder político, independentemente da cor da bandeira, da formação, da origem, da classe, da história ou da convicção do grupo que o exerce. Sendo assim, a tradição dogmática do direito serve, não a dois senhores, mas a qualquer um, desde que ele seja um senhor à luz da ordem estabelecida.

Com início no Direito Penal, a disrupção jurídica ganha outros campos e outras especialidades da aplicação do direito, como muito bem percebeu Joaquim Falcão. O legalismo se descortina e os rasgos no ordenamento jurídico, por vezes provocados por membros de poderes instituídos, passam a ser aceitos pela sociedade de uma maneira geral, até por causa de um certo instinto de proteção e de igualdade. A lei, na literalidade da sua construção gramatical, encontra exceções aceitas na sua aplicação, de modo a não servir como proteção àqueles que contrariem algo como um padrão moral.

 

Importante instrumento para responder e atender às demandas jurídicas contemporâneas é o direito natural, visto com o seu caráter racionalista. Como alternativa institucional para o ordenamento jurídico, poder-se-ia resgatar a doutrina jurídica do século XVII, particularmente as de Samuel Pufendorf e Jean Domat, revigorada com a defesa dos direitos humanos a partir do período pós-guerras, com especial referência à jurisprudência dos valores comentada por Karl Larenz. Com isso, seria buscada a reaproximação do direito com a moral.

A mencionada disrupção jurídica atinge, da mesma forma, o direito tributário, conquanto ele seja um ramo pautado pela legalidade. Para os efeitos no direito tributário serem bem compreendidos (ou na tentativa de relativamente bem explicá-los), há que se apresentar os seus fundamentos. Com essa finalidade, pede-se permissão para a digressão teórica a seguir.

O Direito Tributário tem dois alicerces principais: primeiro, trata-se de norma de superposição — conquanto não haja consenso sobre isso na doutrina —, no sentido de que o Direito Tributário não é norma de conduta, isto é, não permite, não proíbe e não obriga ninguém a fazer ou deixar de fazer nada, com exceção de transferir parte da riqueza gerada para os cofres públicos; segundo, é um direito eminentemente legal, quer dizer, decorre diretamente da lei e não prescinde da existência da lei, na medida em que os elementos essenciais do tributo (fato gerador, base de cálculo, alíquota, benefícios e penalidade) necessitam estar definidos em lei, proveniente do Estado (Poder Legislativo). No âmbito da disrupção jurídica, ambos os pilares do direito tributário aceitam a interpretação jusnaturalista. Embora não caiba ao direito natural, por exemplo, definir a alíquota do tributo ou o percentual da multa por sua inadimplência, ele pode informar a tributação, nos moldes que será comentado a seguir.

Pelo viés da legalidade tributária, o direito natural poderia informar a elaboração da lei, de modo a disciplinar a tributação justa e equânime, além de confiável e sem surpresas para o contribuinte — como pessoa física ou pessoa jurídica. Segue-se, então, as lições de Klaus Tipke e, entre nós, de Ricardo Lobo Torres, que professam uma espécie de jusnaturalismo no Direito Tributário. Complementa essa visão a teoria tridimensional de Miguel Reale, que impõe o entendimento do direito nos seus três vetores (fato, norma e valor), ampliando a interpretação e a aplicação do texto legal ao entendimento também quanto ao fato, mas, primordialmente, ao valor desse texto, dado pela experiência histórico-cultural da sociedade.

Ainda com relação ao pilar da legalidade, a interpretação jusnaturalista do direito tributário autoriza o Poder Judiciário a aplicar a moral racionalista do direito natural diretamente ao caso concreto, independentemente de haver expressa previsão na redação literal da lei. Com isso, em certa medida, adota-se a postura de Ives Gandra da Silva Martins, que, mirando a aplicação da Constituição, acaba por visar, na verdade, ao direito natural que protege o contribuinte acima e além da própria lei. Note-se que essa proteção é ao cidadão-contribuinte apenas imediatamente, pois, numa perspectiva mediata, protege-se a sociedade como um todo da arbitrariedade do governante de plantão, principalmente, quando ele exerce o poder de maneira patrimonialista ou populista.

Na verdade, a interpretação jusnaturalista talvez se faça mais presente na análise do outro pilar do Direito Tributário, qual seja, sua natureza de superposição. Nesse sentido, o direito tributário está subordinado aos conceitos e disciplinadas dados por outros ramos do direito, normalmente, do direito privado, que rege as relações jurídicas patrimoniais dos cidadãos e das empresas. Obviamente, os efeitos tributários são determinados pela lei tributária, mas a constatação quanto à geração de riqueza a ser tributada, na última e na mais profunda instância, cabe às normas jurídicas aplicadas ao patrimônio (considerado de maneira bastante ampla).

O tributo, ou melhor, a lei tributária somente pode ser aplicada nas relações jurídicas em que haja conteúdo patrimonial, econômico. Sendo o tributo uma receita pública derivada, que decorre da organização estatal e do funcionamento das instituições públicas, ele não pode tentar extrair riqueza de onde ela não existir para o contribuinte (pessoa física ou pessoa jurídica). De maneira abstrata, a lei não pode eleger como fato gerador situações que não comportem manifestação de riqueza, seja produzida, transferida ou poupada; de maneira concreta, a autoridade fiscal não pode exercer a subsunção da lei ao caso realizado (existente) de modo a querer cobrar crédito tributário na ausência da mesma riqueza.

A forma jurídica é indubitavelmente fundamental para a identificação do fato gerador, proporcionando segurança jurídica, quer dizer, confiabilidade ao contribuinte como querem Heleno Torres e Humberto Ávila. Acontece que também no âmbito desse formalismo está havendo disrupção jurídica, no sentido de a forma jurídica adotada pelo contribuinte ser desconsiderada pelas autoridades fiscais e por parte da jurisprudência tributária, tanto administrativa quando judicial, na busca da sua “real intenção”, o que provoca a cobrança de crédito tributário por outra forma jurídica, diversa daquela expressamente escolhida. Se é certo que a literalidade não pode servir de escudo do contribuinte à imposição tributária, tão certo quanto é a imprescindibilidade de que haja riqueza manifestada por esse mesmo contribuinte, respeitando-se a vontade da mesma forma manifesta.

A determinação da incidência tributária, posto que caracterizada como obrigação “ex lege”, comunica-se com outras vozes que transcendem, acima, abaixo e ao lado, as fronteiras do texto legal, com especial atenção ao idioma econômico. A interpretação e a aplicação da legislação tributária devem respeitar a “essência da forma jurídica” escolhida livremente pelo contribuinte, seja cidadão ou empresa, confirmando-a na respectiva manifestação de riqueza. Assim, nessa tarefa, o operador do Direito Tributário tem no direito natural o instrumento para a mencionada interpretação transcendente da literalidade do texto legal.

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    é doutor em Direito pela PUC-SP, coordenador do Núcleo de Direito Tributário do CEU-IICS Escola de Direito, professor da FGV Direito SP e sócio do Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados.

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