Opinião

Desobediência civil por melhor educação é justa e merece respeito

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9 de julho de 2016, 8h27

1961, Greensboro, Carolina do Norte, EUA
Na década de 1960, jovens negros norte americanos, cansados do tratamento discriminatórios que vinham sofrendo durante gerações, iniciaram um movimento denominado “sit in”. As leis e regulamentos de alguns estados sulistas nos Estados Unidos não lhes permitia que se sentassem em lugares reservados aos brancos em bares e restaurantes. Passaram, então, pacífica e maciçamente, a desobedecer esta lei que julgavam injusta, e ocuparam — sentando-se — nos lugares de bares e restaurantes cujo acesso lhes era vedado por lei. Usaram as únicas armas de que dispunham: seus corpos. Foram duramente reprimidos pelo aparato policial estatal. No entanto, seu movimento, sob a liderança de Martin Luther King e Malcom X, resultou na superação destas leis estaduais anacrônicas e iniciou um novo entendimento acerca dos direitos civis nos Estados Unidos da América.

2016, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e outras diversas cidades do Brasil
Grupos de estudantes ocupam as escolas públicas estaduais, em vários Estados do Brasil, dentre os quais, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Em alguns casos, ocupam outros prédios públicos, como o plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo, a Secretaria da Educação do Rio de Janeiro e a Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul.

Cansados do descaso destinado à escolas que frequentam, resolveram denunciar as cotidianas violações ao “direito fundamental à educação”: salas de aula com goteiras, sem climatização, ausência de equipamentos de informática, professores mal remunerados ou simplesmente não contratados, falta de segurança para o acesso e permanência no recinto escolar, assédio por traficantes, em casos mais agudos, falta de vestimentas adequadas para o aprendizado (estudantes com sandálias de dedo em cidades do Sul, cujas temperaturas no outono chegaram próximo a zero grau), falta de mobilidade e transporte escolar adequado, falta de material didático, censura a conteúdos didáticos por razões ideológicas dentre outras inúmeras violações ao direito de aprender e tornar-se um cidadão qualificado para o convívio democrático. Usaram as armas que tinham à sua disposição: seus corpos, suas vozes, sua juventude e seu poder criativo.

Neste contexto, após longas negociações, a maior parte dos estudantes decide encerrar o movimento. No entanto, um pequeno grupo de estudantes dissidentes, no Rio Grande do Sul, resolve ocupar a Secretaria da Fazenda do estado, pedindo uma audiência com o governador. Resultado: são brutalmente reprimidos pela Brigada Militar com uso de gás de pimenta e retirada compulsória das instalações, com uso desproporcional da força física. Os menores são autuados por ato infracional e os maiores de dezoito anos são presos em flagrantes, direcionados aos presídios e autuados pela autoridade policial de plantão por corrupção de menores, dano ao patrimônio público e associação criminosa.

O que estas duas situações descritas tem em comum? Ambos são movimentos coletivos, não violentos, conscientes, de natureza política, direcionados à finalidade de chamar a atenção para uma situação de injustiça, decorrente de uma lei iníqua (no caso dos negros do “sit in”) ou má execução ou ausência de políticas governamentais (no caso dos estudantes brasileiros). Em outras palavras, são atos de desobediência civil, na definição seguida por John Rawls em seu ensaio Uma Teoria da Justiça (2ª edição. Editora Martins Fontes, São Paulo, 2002, p. 404).

Vários são os exemplos, ao longo da história, de movimentos de desobediência civil cujo resultado trouxe mudanças sociais de grande repercussão, tais como o movimento de não violência liderado por Gandhi, na independência da Índia e do Paquistão no início do século XX e o movimento Anti-Guerra do Vietnã, também nos Estados Unidos. A literatura ainda aponta os exemplos de Sócrates, em Atenas e Henri Thoreau, em Concord como precursores da desobediência civil.

Segundo John Rawls, quando um grupo decide agir desta forma, está se dirigindo “ao senso de justiça da maioria da comunidade e declara que, em sua opinião ponderada, os princípios da cooperação social entre homens livres e iguais não estão sendo respeitados.” Prossegue o autor: “Presume-se que, num regime político razoavelmente democrático, haja uma concepção pública de justiça em referência à qual os cidadãos regulam suas atividades políticas e interpretam a constituição. A violação contínua e deliberada dos princípios básicos dessa concepção durante um largo período de tempo, especialmente a infração das liberdades básicas iguais, incita ou à submissão ou à resistência. Pela prática da desobediência civil, uma minoria força a maioria a considerar se ela deseja que seus atos sejam interpretados dessa maneira ou se, em vista do senso comum da justiça, ela deseja reconhecer as legítimas reivindicações da minoria.” (p. 405)

No caso do direito à educação, o consenso acerca de sua natureza de garantia fundamental advém da própria Constituição. O artigo 6º o enumera dentre os direitos sociais, expressamente, e o artigo 205 estabelece, sem deixar margem de dúvidas: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade.” A Constituição ainda elege como diretriz para a realização deste direito “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Daí advém a justiça das reivindicações por escolas públicas de qualidade. A longa situação de desrespeito a este direito, de atenção prioritária por força de norma constitucional, é uma clara incitação a atos de resistência e desobediência civil, uma vez que todas as tentativas de solução por outras vias já foram esgotadas.

Apesar disso, tal Direito não apenas continua  sendo negligenciado há décadas, como se vê nas condições materiais das instituições públicas (notadamente as do ensino fundamental e médio) como apresenta sinais de piora e decadência, com a crescente deterioração dos prédios dedicados ao ensino e a queda no nível de remuneração dos professores e demais profissionais da educação.

Muitas soluções seriam possíveis. A retórica da “reserva do possível” não pode ser levada a sério neste caso, pois não haveria maior prioridade para um país do que formar seus cidadãos para enfrentar os desafios do futuro. Ainda que os recursos públicos sejam escassos — o que aqui se admite apenas para argumentar — a aplicação destes em educação é prioridade máxima. Sem tirar as responsabilidades dos poderes públicos, alternativas poderiam ser pensadas em conjunto com a sociedade civil: concessão de incentivos fiscais para empresas que adotassem escolas públicas — mediante doação de material e mão de obra para sua adequada conservação e melhorias; dedução na base de cálculo do imposto de renda pessoa física àqueles que doassem livros relacionados aos conteúdos didáticos a ser desenvolvidos ou equipamentos de informática novos. Comunidades e famílias integrantes das camadas mais vulneráveis da população poderiam receber estímulos financeiros para manter seus filhos na escola e auxiliar, durante os finais de semana, na conservação e melhoria das escolas. Os filhos das classes mais abastadas, que estudam em boas escolas particulares, pagas muitas vezes com sacrifício por seus pais, exatamente por falta de boas escolas públicas, também poderiam ser estimulados a conviver com alunos de escolas públicas e auxiliar na conservação, manutenção e melhoria das  escolas públicas. As forças de segurança — policias militares e guardas municipais — poderiam formar guarnições especializadas na segurança do entorno dos equipamentos públicos de educação. Enfim, inúmeras iniciativas seriam possíveis, com a finalidade de engajar toda a sociedade no esforço de tornar o direito fundamental à educação uma realidade e não apenas um conjunto frustrante de palavras vazias.

Não apenas o governo, mas a própria sociedade civil deveria dedicar às escolas maior atenção, carinho e cuidado possíveis, pois nestes ambientes é que estamos moldando os brasileiros que guiarão os destinos deste país nos próximos anos. Todos deveríamos eleger a educação como  “prioridade zero”.

À vista dos fatos, conclui-se que as ocupações das escolas públicas, das Secretarias de Governo e, no caso do Estado de São Paulo, da Assembleia Legislativa, representam, em verdade, um pedido de socorro, vindo exatamente daquelas pessoas que todos nós (governantes e governados) deveríamos proteger: nossas crianças e adolescentes.

Contudo, apesar da intensidade dos movimentos de ocupação, ao invés do aprofundamento das discussões, do engajamento de amplos setores sociais para o enfrentamento ao problema, o que assistimos?

Apresentação de projetos de lei e emendas constitucionais tendendo a consideráveis retrocessos, como, no Rio Grande do Sul, o PL 44 e os diversos projetos de “desideologização” (como se isso fosse possível!), ofendendo o princípio constitucional da liberdade de aprendizagem e de ensino. Duríssima repressão policial e criminalização dos integrantes destes movimentos. Quando o aparato policial deveria ser utilizado para a proteção e promoção do direito fundamental à educação, o que assistimos é exatamente o contrário, seu uso “eficiente” contra aquelas mesmas minorias que deveria proteger, disseminando a ideia de que a única resposta à luta por direitos é a violência.

Os participantes dos movimentos de ocupação das escolas públicas, na qualidade de “desobedientes civis” deveriam, em verdade, ser vistos com respeito e admiração. Afinal, uma das diretrizes do direito fundamental à educação é a formação para o exercício da cidadania.

Graças aos movimentos, a situação dramática das escolas públicas do país foi — mais uma vez — retratada, documentada e amplamente divulgada pelos meios de comunicação de massa. Todavia, além de promessas vazias, receberam a repressão policial e, alguns deles, ainda, além de ser conduzidos a presídios, terão a necessidade de defender-se em razão da instauração de inquéritos policiais que – esperamos – não se convertam em ações penais, sob pena de clara inversão de valores e abuso de poder.

Como ensina Hannah Arendt, “o estabelecimento da desobediência civil entre nossas instituições políticas poderia ser o melhor remédio possível para a falha básica da revisão judicial. O primeiro passo seria obter o mesmo reconhecimento que é dado a inúmeros grupos de interesses especiais (grupos minoritários por definição) do país para as minorias contestadoras, e tratar os grupos de desobedientes civis do mesmo modo que os grupos de pressão os quais através de seus representantes, os olheiros registrados, podem influenciar e ‘auxiliar’ o Congresso por meio de persuasão, opinião qualificada e pelo número de seus constituintes. Estas minorias de opinião poderiam desta forma estabelecer-se como um poder que não fosse somente ‘visto de longe’ durante passeatas e outras dramatizações de seus pontos de vista, mas que estivesse sempre presente e fosse considerado nos negócios diários do governo.” (Crises da República, 3ª Ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2015, p. 89).

A maioria destes jovens, do ensino secundário e até primário, são menores de idade. Ainda não têm 18 anos. Apesar de sua tenra idade, já perceberam que não há esperanças de que seu direito fundamental venha a ser atendido caso se mantenha o mesmo estado de coisas. Sendo assim, não é de admirar que passem a buscar formas de manifestar-se e  resistir.

Nossas instituições democráticas deveriam acolhê-los e dar-lhes adequado tratamento diante deste autêntico grito de desespero vocalizado pelos movimentos de ocupação das escolas públicas e assumir sua responsabilidade de desenvolver ações concretas e efetivas para que as violações ao direito fundamental à educação cessem de uma vez por todas.

Este é, certamente, o anseio de todo cidadão justo.  E se é assim, faz sentido refletir sobre a célebre frase de Thoreau: “Num governo que encarcere quem quer que seja injustamente, o lugar certo para um homem justo será também a prisão”. Será a prisão o lugar para jovens que saem da apatia e exercem sua cidadania, lutando por seus direitos? Se este é o modelo de sociedade sobre o qual repousa nosso consenso, fica a pergunta: haverá vagas para tantos homens e mulheres que compartilham com a justiça das reivindicações de nossos estudantes?

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