Opinião

Habeas Corpus é coisa séria e não
comporta nenhum tipo de deboche

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7 de julho de 2016, 6h47

O artigo dos procuradores da República representantes da operação “lava jato” publicado na Folha de S.Paulo, em 3 de junho, extrapola a arrogância e a prepotência que tem conduzido alguns membros do MPF (Ministério Público Federal) na persecução penal. Em nome da fúria punitiva e de uma suposta e imaginária “confiança da população na Justiça”, os procuradores da República Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos tripudiam com o instituto do Habeas Corpus e afrontam a mais alta Corte do país, notadamente, o ministro Dias Toffoli, por ter ele, constatando que a prisão do ex-ministro Paulo Bernardo foi decretada sem que houvesse necessidade — a prisão preventiva é medida extremada e de exceção — além de ser carecedora de fundamento legal, entendido, acertadamente, diante da flagrante ilegalidade, em conceder habeas corpus de ofício.

A prisão provisória não pode se constituir em antecipação da tutela penal (execução provisória da pena) também, não deve ter caráter de satisfatividade, o próprio STF assim já decidiu (RTJ 180/262-264, rel. min. Celso de Mello).

O magistrado e processualista Alexandre Morais da Rosa a partir da teoria dos jogos assevera que “as medidas cautelares podem se configurar como mecanismos de pressão cooperativa e/ou tática de aniquilamento (simbólico e real, dadas as condições em que são executadas). A mais violenta é a prisão cautelar. A prisão do indiciado/acusado é modalidade de guerra como ‘tática de aniquilação’, uma vez que os movimentos da defesa vinculados à soltura”.[1]

Não é despiciendo lembrar que a origem do Habeas Corpus data de 1215 quando da assinatura da Magna Carta na Inglaterra imposta ao despótico rei João Sem Terra pelos condes e barões, revoltados diante das arbitrariedades cometidas pelo monarca. Pontes de Miranda explica a origem e o significado do nome em latim:

Habeas corpus eram as palavras iniciais da fórmula do mandado que o Tribunal concedia, endereçado a quantos tivessem em seu poder, ou guarda, o corpo do detido. A ordem era do teor seguinte: ‘toma (literalmente: tome, no subjuntivo, habeas, de habeo, habere, ter, exibir, tomar, trazer, etc.) o corpo deste detido e vem submeter ao Tribunal o homem e o caso”.[2]

Entre nós, originalmente, em conformidade com a tradição inglesa, a ordem de Habeas Corpus não era como hoje, a decisão em favor da liberdade, mas uma ordem de apresentação do preso (paciente) ao juiz ou tribunal, com os motivos do constrangimento.

Em nosso Direito, o Habeas Corpus foi introduzido ainda no Império pelo Código de Processo Criminal de 1832 que em seu artigo 343 dispunha o seguinte: “A Ordem de habeas-corpus deve ser escrita por um escrivão, assinada pelo juiz ou presidente do tribunal, sem emolumento algum; e nela se deve explicitamente ordenar ao detentor ou carcereiro que dentro de certo tempo e em certo lugar venha apresentar, perante o juiz ou tribunal, o queixoso, e dar as razões do seu procedimento”.

Com o advento da República, a Constituição de 24 de fevereiro de 1891 elevou o Habeas Corpus à categoria de garantia constitucional. De acordo com o texto constitucional da época, “Dar-se-á Habeas Corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder” (art. 72 § 22).

A atual Constituição da República assevera: “conceder-se-á Habeas Corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (art. 5º, inc. LXVIII).

Sady Cardoso de Gusmão[3] observa que: “a restrição à liberdade de locomoção não implica rigorosa estreiteza do conceito. Antes de tudo o instituto protege o indivíduo em seu corpo, em projeção intrínseca: liberdade corporal, direitos corpóreos meros, compreendendo os casos de exames corporais, buscas pessoais, integridade física: injusta identificação, castigo corporal direto ou indireto, como supressão de alimentos, violência física etc. Ainda é suscetível e projeção extrínseca, a direitos imanentes, ou aderentes: habeas corpus para cessar a incomunicabilidade, transferência de prisão, contra medida de segurança não prevista em lei ou não regularmente aplicada, como a sujeição a liberdade vigiada fora dos casos legais”.

Além de ser uma garantia constitucional — um remédio heroico, como costuma ser chamado — o Habeas corpus tem um viés nitidamente processual penal em que assume, de acordo com o ensinamento de José Barcelos de Souza, “o papel de um grande recurso”. Algumas vezes o Habeas Corpus, diz o processualista de Minas, “supre a falta de um recurso próprio, como no caso de despacho de recebimento da denúncia ou queixa inepta; outras vezes, mesmo comportando a decisão recurso propriamente dito, ser como outra opção, visto que, em princípio, e em que pese a uma ou outra manifestação jurisprudencial em contrário, a existência de um recurso não exclui a possibilidade da impetração e da concessão do habeas corpus, se for caso dele”.

A grandeza do Habeas Corpus como remédio para fazer cessar o constrangimento ilegal ou evitar que ele se dê (preventivo) se revela na possibilidade do mesmo ser impetrado por qualquer pessoa, inclusive pelo próprio paciente, ser concedido de ofício, como, também, não se exigir qualquer formalidade ou rebusque na petição de impetração. Pode ser pedido por telegrama, e-mail, telefone ou qualquer outro meio hábil que vise obtenção da ordem.

Interessante salientar que os procuradores da República que se insurgem contra a liberdade de Paulo Bernardo e outros, se calam diante das ilegalidades e arbitrariedades cometidas no curso da operação “lava jato”. Não causou perplexidade aos signatários do citado artigo o fato do juiz federal condutor da operação em Curitiba ter gravado conversa da presidente da República Dilma Rousseff com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além de divulgar o seu conteúdo em rede nacional. Também, não causa assombro ao parquet  a invasão da residência de uma senadora da determinado por juiz incompetente. Os subscritores do combatido artigo não se agastam com o “duplo twist carpado” que é dado, constantemente, para driblar os direitos e garantias fundamentais insculpidos na Constituição.

No estado democrático de direito fundado, realmente, em bases democráticas (democracia material) deve prevalecer o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa. Repita-se, o status libertatis é a regra. A presunção é de inocência. A prisão cautelar como medida drástica somente deve ser decretada como ultima ratio. Por fim, que seja sempre evitada a prisão e que a liberdade sempre prevaleça, por mais que tentem nocauteá-la.


[1] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
[2] PONTES de MIRANDA. História e prática do habeas-corpus, 3ª ed., Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1955.
[3] Apud SOUZA, José Barcelos de. Doutrina e prática do habeas corpus. Belo Horizonte: Sigla, 2008.

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