Opinião

Com denúncia-decência, mulher vitimizada fala em nome de quem silencia

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

7 de julho de 2016, 9h24

Quando o menino Bernardo Uglione Boldrini, de 11 anos, “chegou a procurar o Ministério Público, por conta própria, pedindo para não morar mais com o pai e a madrasta, indicando duas famílias com as quais gostaria de ficar” e expondo o cotidiano de omissões e carências, quatro meses antes de ser assassinado, sua denúncia operou um ato decente de recusa motivada de submissão ao poder familiar de ambos. A sua morte repercutiu nacionalmente.

O trágico familiar igualmente sucede, dia a dia, quando a mulher aprisionada em seu íntimo, por sucessivas violações silenciosas na indústria do tratamento algoz imposto pelo parceiro, coloca-se desumanizada por desconstruções verbais e por violências físicas e psicológicas praticadas contra si. À falta de uma denúncia imediata, nada repercute — salvo no largo espectro da violência doméstica que a degrada e a submete a danos existenciais.

Quando, porém, a denúncia-decência corta o silêncio, como o estilete da palavra corajosa rompe a pele dos infortúnios, a mulher vitimizada faz repercutir o drama que vai além de si mesma e fala em nome de muitas outras que silenciam.

O tema tem sua importância permanente e ganha visível atualidade, mais ainda quando, a propósito, celebridades também colocam e priorizam a decência moral da denúncia de serem vítimas, acima das (in)conveniências da fama e buscam a proteção da lei. Assim tem sido, agora, com maior frequência: abrem-se as cortinas do silêncio para o ingresso da lei e das soluções devidas.

De fato. Hematomas de agressões são marcas mais visíveis da violência e nelas aprofundam-se os abismos dos abusos. Elas pertencem a todas as mulheres vítimas, independente da classe social em que se coloquem.

Posta a questão, cumpre adiantar, à guisa de primeiras notas, que a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal aprovou, no último dia 29 de junho, o Projeto de Lei da Câmara 7/2016, que pretende acrescer dispositivos à Lei Maria da Penha, após dez anos de sua vigência.

Figura, dentre esses acréscimos, o polêmico artigo 12-B, dispondo no sentido de que ”a autoridade policial, preferencialmente da delegacia de proteção à mulher, poderá aplicar provisoriamente, até deliberação judicial, as medidas protetivas de urgência previstas no inciso III do art. 22 e nos incisos I e II do art. 23 desta Lei, intimando desde logo o ofensor”.

Importa registrar, de logo, tratar-se de um procedimento não jurisdicional, dito jurisdicionaliforme; de péssima experiência remotamente já conhecida, além de sua manifesta inconstitucionalidade, por substituir (e quebrar) a reserva de garantia da jurisdição por medidas administrativas precárias.

Bem de ver, a todo rigor, que violência contra a mulher não é caso de polícia; apresenta-se, por substancial, como caso de cidadania e de jurisdição inclusiva, por isso a exigir uma pronta ação judiciária, como garantia da dignidade humana, ao bom exemplo recente da apresentação de presos em audiências de custódia. O projeto de lei está com prazo em aberto, até esta quinta-feira (7/7), para recebimento de emendas perante a Mesa.

E merece melhores acréscimos, com medidas inibitórias à prática reiterada de violência familiar, agravando multas penais e impondo restrições outras. Melhor: estabelecendo uma tipologia penal pertinente e adequada. A tanto, registre-se, por relevante, que a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) não elenca tipos penais próprios, destinados à violência de gênero; apenas circunstâncias qualificadoras ou agravantes.  Significa dizer que é remetida essa violência de gênero aos crimes comuns, contemplados na ordem jurídico-penal ordinária. Curioso que assim seja, porque, desse modo, a lei se tornou, em seus fins, ela mesma hipossuficiente, tal a própria mulher vítima da violência doméstica.

O avanço legislativo de maior latitude ocorreu, apenas, com a Lei 13.104, de 9 de março de 2015, alterando o artigo 121 do Código Penal, para incluir como modalidade de homicídio qualificado, o feminicídio. Essa qualificadora ocorre quando é o crime praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, importando tais razões nas hipóteses de: a) violência doméstica e familiar; b) menosprezo ou discriminação à condição de mulher, e estabelecendo, por isso mesmo, causas de aumento de pena.

Em suma, feminicídio significando o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. Mas o Brasil é um dos últimos países da América Latina a enfrentar o tema, certo que o também chamado “femicídio” já figura nos diplomas penais dos demais países latino-americanos, a exemplo de sua previsão no artigo 80 do Código Penal argentino, que dispõe os delitos graves contra a vida, com pena de prisão e prisão perpétua. Foi introduzido, em seu parágrafo 11, a figura do feminicídio para punir o assassinato de “uma mulher quando o ato é cometido por um homem, mediante violência de gênero” (art. 2° da Lei argentina 26.791, de 14/12/2012).

Certo é que as motivações mais usuais da violência doméstica continuam sendo “o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre as mulheres, comuns em sociedades marcadas pela associação de papéis discriminatórios ao feminino, como é o caso brasileiro” (“Dossiê Violência contra as Mulheres”, 2015, Instituto Patrícia Galvão).

Revela-se, a tanto, que a cada sete minutos, uma denúncia de violência contra a mulher é registrada no país. Ao todo, nos dez primeiros meses de 2015, mais de 63 mil denúncias foram feitas; 85,85% como casos de violência doméstica. (Secretaria de Políticas para as Mulheres – Presidência da República – 2015).

Com uma taxa de 4,8 assassinatos em 100 mil mulheres, o Brasil está entre os países com maior índice de homicídios femininos: ocupa a quinta posição em um ranking de oitenta e três nações. (Mapa da violência 2015 – Celela/Flacso). Pois bem. Quando Nigella Lawson, jornalista de TV e escritora britânica, “chef” de cozinha famosa (e antes disso, honorável pelo título de nobreza da família), foi agredida pelo marido milionário em um restaurante de Londres (em 9 de junho de 2013) e teve o flagrante da violência sofrida, com esganamentos, em fotos imediatamente veiculadas pelo tabloide Sunday Mirror, toda a sociedade londrina em perplexidade acompanhou o drama íntimo e o desfecho. Ela, filha do Barão Lawson de Blaby, ex-chanceler do Tesouro e de Vanessa Salmon, com família proprietária do império J. Lyons and Co., aparecia nas fotos apenas como uma mulher indefesa, vulnerável e em crise de choro, simplesmente desafortunada.

No mês seguinte (em 31/7), a juíza Anne Aitken, da Alta Corte de Londres, indicou, em medida provisória, a aprovação pelo tribunal do pedido de divórcio fundado no “comportamento irracional e insensato” do marido Charles Saatchi. O episódio permitiu a dinâmica de um profundo debate sobre a violência doméstica no Reino Unido, antes pouco visível, e nomeadamente sobre a implementação de leis a favor da igualdade de gêneros.

Bem a propósito, celebridades reunidas, ano passado, em assinalando o Dia Internacional de Luta contra a Violência sobre a Mulher (25 de novembro), instituído, em 1999, pala Organização das Nações Unidas (ONU), emprestaram suas imagens, manipuladas pelo artista e ativista italiano Alexsandro Palombo, com a inserção plástica-visual de hematomas e marcas de violência, para denunciarem as agressões físicas cometidas contra a mulher no mundo inteiro. A campanha teve o slogan "A vida pode ser um conto de fadas se você quebrar o silêncio. Nenhuma mulher está imune à violência doméstica", acompanhado pela hashtag em inglês #StopViolenceAgainstWomen".

Antes, campanha nas redes sociais denunciou a violência familiar, quando mulheres famosas chamaram atenção na internet publicando em suas timelines frases como “foi a maçaneta da porta”, colocando em pauta o problema da violência física contra a mulher.

No dia 8 de março de  2016, protesto organizado, em Londres, pela Million Women Rise denunciou a alarmante estatística de 1,4 milhão de mulheres que sofreram violência doméstica no Reino Unido no ano passado e os planos do governo inglês por uma drástica redução do financiamento dos serviços de apoio às vítimas.

Tudo a evidenciar que a vitimização da mulher é um problema mundial, com índices crescentes também na União Europeia, a saber da Dinamarca, com mais da metade das mulheres (52%) já tendo sido vítimas de violência; Finlândia (47%), Suécia (46%), Holanda (45%) e com países do sul do continente registrando percentuais mais baixos, a exemplo da Espanha, Chipre e Malta (todos com 22%). Os índices mais baixos da UE estão na Áustria (20%) e Polônia (19%). Entretanto, a Convenção do Conselho da Europa para Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, designada por “Convenção de Istambul”, de 11.05.2011, continua tendo apenas como signatários a Áustria, a Itália e Portugal.

Segundo a jurista portuguesa Maria Clara Sottomayor, essa convenção “reflete um avanço ideológico e simbólico na teorização da violência contra as mulheres, ultrapassando-se a linguagem neutra em relação ao género, que tem sido adotada na legislação nacional (Lei 112/2009, de 16 de setembro), que não reconhece as mulheres como o principal grupo alvo de violência no seio da família”. Ponderou, assim, que “pelo contrário, a Convenção, reconhecendo que existe violência contra homens, afirma que os vários tipos de violência nela descritos atingem de forma desproporcionada as mulheres e concebe a violência contra as mulheres como violência de género, de caráter estrutural e epidémico em todas as sociedades, e que tem sido legitimada como «natural» e «inevitável» pela cultura. De fato.

Esse novo paradigma mundial, trazido pela Convenção, ainda afirma Sottomayor, é o de “se considerar como imperativo ético-jurídico, a criminalização na área da violência física e sexual, enquanto violência de gênero, quando se percebe que a lei penal tem sido insuficiente para proteger os direitos humanos das mulheres, nomeadamente a sua liberdade e autodeterminação sexual e integridade pessoal”.

É nesse contexto que brigas e agressões envolvendo celebridades, já não ficam sob o sigilo das conveniências pontuais do sucesso de cada uma delas. As reações legitimas das vítimas que privilegiam a apuração dos fatos, a criminalização e as reparações devidas, somam-se à consciência crítica da necessidade de uma denúncia por decência moral de não mais se permitirem vítimas por reiteração. Denúncias por elevado auto-respeito moral, que servem de justa repulsa ao incremento das agressões e consolidam a autoestima.

Pontuam-se inúmeros exemplos na casuística norte-americana: i) recentemente Amber Heard alegou ter sido agredida pelo consagrado ator Johnny Depp, abrindo processo de divórcio no dia 23 de maio; ii) a atriz Sarah Hyland conseguiu ordem de restrição contra o ator Matthew Prokop, a quem acusa de a ter tentado sufocar e ameaçado de morte; iii) Oksana Grigorieva, ex-namorada de Mel Gibson denunciou o ator para a polícia, quando teria a agredido e a ameaçado com uma arma; iv) Whitney Houston, falecida em 2012, também denunciou à polícia o seu marido Bobby Brow, por agressões sofridas; v)  a cantora Rihanna, por haver sido agredida violentamente pelo  companheiro Chris Brown, teve de cancelar a sua aparição na cerimónia de entrega dos Grammy, em 2009.

Ora bem. Consta que Amy Winehouse “costumava ser agredida pelo seu marido Blake Fielder Civil, porém influenciada pelo consumo de drogas, permanecia ao seu lado” e que a atriz Halle Berry, vítima de violência doméstica por parte do seu namorado, teve a perda de 80% da audição de um de seus ouvidos.

A par de tudo isso, a violência dominante em mulheres agredidas não representa ou poderá representar uma expressão permanente de dominação. Muito ao revés, serve constituir como fato indutor de suas libertações, culminando a violência por ser reprimida com as respostas jurídicas satisfatórias. A partir de quando, por denúncia-decência que lhes cumpre envidar, mulheres notáveis ou não, celebridades ou anônimas, todas elas precisem colocarem-se a salvo em sua dignidade e existência.

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    é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), onde coordena a Comissão de Magistratura de Família.

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