Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo chinês (parte 49)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

6 de julho de 2016, 19h50

Spacca
Encerra-se hoje a série sobre o modelo chinês de formação jurídica. Os principais aspectos sobre as universidades, os professores, as carreiras jurídicas e a representação social da docência foram examinados nas colunas precedentes, às quais se remete o leitor.

Nesta última coluna, cuidar-se-á dos seguintes  aspectos: a influência da tradição jurídica de civil law, as matrizes curriculares e  os métodos de ensino.  No fecho, apresentar-se-á uma visão geral do modelo chinês.

O Direito chinês e a tradição jurídica de civil law
O Direito chinês foi profundamente modificado após a queda da dinastia Quing em 1911. Adotou-se uma constituição ao estilo norte-americano e, no intervalo de 1912 a 1931, elaboraram-se seis códigos (Organização Judiciária, Comercial, Civil, Penal, Processo Civil e Processo Penal) no modelo de civil law e em coerência com a ideologia nacionalista do Kuomintang, que buscava ocidentalizar o país. No entanto, esse movimento foi socialmente pouco eficaz. A maior parte da população permaneceu ignorante ou alheia a esses novos códigos e seguiu observando a tradição confucionista, de caráter jusnaturalista. Independentemente desse insucesso fático, é inegável que 6 códigos causaram uma ruptura na tradição jurídica chinesa. Para se ficar apenas com o Código Civil, ele se inspirou nas codificações suíça e alemã, com a recepção de conceitos como negócio jurídico e o método de estudo típico dessa matéria no final do século XIX na Alemanha.[1]

Após a queda do regime nacionalista em 1949, a China ingressou (brevemente) sobre a influência da União Soviética. Foi a época das codificações de inspiração soviética até a ruptura ocorrida em 1957, quando o líder chinês Mao Tsé-Tung resolveu conduzir o país a um caminho próprio, deixando de lado o alinhamento internacional das nações socialistas com Moscou. Esse processo durou até 1966, quando se instalou na China a famigerada Revolução Cultural. Foi um período de destruição das tradições jurídicas, de eliminação da advocacia como atividade profissional, do fechamento de faculdades de Direito e da eliminação dos valores jurídicos soviéticos ou mesmo da incipiente influência das codificações ocidentais.[2]

Nos últimos anos de vida de Mao Tsé-Tung, o poder real na China foi compartilhado com o Bando dos Quatro, um grupo formado Jiang Qing (mulher do líder chinês), Zhang Chunqiao, Wang Hongwen e Yao Wenyua, que controlou politicamente o país até 1976, quando Mao veio a falecer. Nesse ano, o Bando dos Quatro foi alijado de suas funções, muitas delas informais, e uma nova “revolução” teve início na China, que a levou aos patamares atuais de desenvolvimento econômico, a ponto de muitos não mais qualificarem o país como comunista e sim como um exemplo de “capitalismo de Estado” controlado por um partido único.

Em 1982, com a nova constituição da China, foram reconhecidos novos (ou velhos) Direitos, como os direitos de sucessões, minerário, de propriedade intelectual, de falências, eleitoral, contratual, econômico e internacional privado.[3]  No âmbito do Direito Civil, em 1986, editou-se a Lei de Princípios Gerais de Direito Civil, que não se compara a um Código Civil, mas que contempla normas de caráter geral sobre personalidade, negócio jurídico e sua coexistência com a ordem jurídica comunista.[4]

Contemporaneamente, a China passa por turbulências quanto a essa fidelidade às tradições de civil law, confuciana e, mais recentemente, com o aumento da influência de institutos jurídicos norte-americanos, de common law. Em relação a esta última tradição, o fenômeno ainda espera por uma maior sedimentação, até para que se possa apreciá-lo de modo adequado. A presença de estudantes chineses em número cada vez mais crescente em universidades dos Estados Unidos poderá implicar mudanças significativas nesse quadro a médio prazo.

Matrizes curriculares
Compreendida essa realidade complexa do Direito chinês, passa-se ao exame de algumas matrizes curriculares de instituições universitárias do país ou de suas regiões administrativas especiais.

A Faculdade de Direito da Universidade de Macau possui a seguinte estrutura de matriz curricular: [5]

a) Primeiro ano: Introdução ao Direito; História do Direito, Direito Constitucional,  Lei Fundamental de Macau, Direito Internacional Público, disciplinas de Língua Portuguesa e uma disciplina de Educação Geral, que se pode constituir em matérias como Prática Desportiva, Artes Visuais, Artes Dramáticas ou Música.

b) Segundo ano: Teoria Geral do Direito Civil I, Teoria Geral do Direito Civil II,  Direito das Obrigações I, Direito Administrativo I,  Direito Administrativo II, Direito de Família, Direito de Família e Direito Patrimonial Sucessório, Economia e disciplinas de Língua Portuguesa.

c) Terceiro ano: Direito das Obrigações II,  Direito do Trabalho, Direito das Coisas, Direito Comercial I, Direito Comercial II, Direito Penal I, Direito Penal II,  Direito Administrativo III,  Direito Processual Civil I e 1 disciplina optativa.

d) Quarto ano: Direito Internacional Privado, Direito Comercial III, Direito Processual Penal I, Direito Processual Civil II, Direito Processual III, Ciência Política, Pesquisa e Estágio Curricular, além de uma disciplina optativa.

São disciplinas optativas, que o aluno poderá escolher ao longo do curso, a depender de certos pré-requisitos: Economia Pública, Direito Tributário, Sistemas Jurídicos Comparados, Direito Ambiental, Direito Registral e Notarial, Medicina Legal, Parte Especial do Direito Penal, Prática Forense, Teoria Geral do Direito Chinês, Teoria Geral do Direito Português, Português Jurídico, Introdução à Resolução Alternativa de Litígios e História do Direito de Macau.

Na Faculdade de Direito da Universidade Jiao Tong de Xangai, as disciplinas obrigatórias são Introdução ao Direito, Teoria Geral do Direito, Direito Constitucional, História do Direito Chinês, Princípios de Direito Administrativo, Processo Administrativo, Introdução ao Direito Civil, Direito dos Contratos, Direito das Coisas, Responsabilidade Civil, Direito Comercial, Direito Econômico, Direito da Propriedade Intelectual, Processo Civil, Direito Penal I, Direito Penal II, Processo Penal, Direito Internacional Público, Direito Internacional Privado, Direito Econômico Internacional e Direito da Proteção do Meio Ambiente e dos Recursos Minerais.[6] As principais disciplinas optativas, como Direito Societário, Direito Imobiliário, Direito dos Seguros, Direito Financeiro e Tributário, Direitos Humanos, Arbitragem e Mediação, Direito dos Servidores Públicos, Direito do Trabalho e Seguridade Social, Prática Jurídica, além de várias disciplinas de Direito Comparado.[7]

Essas duas matrizes permitem, ainda que de modo não controlável empiricamente, observar uma enorme simetria das estruturas curriculares com os padrões da Europa mediterrânea e com o Brasil.

Chega a ser surpreendente a quantidade de disciplinas de Direito Civil e Direito Comercial, quase todas obrigatórias, em um país comunista e com enorme grau de intervencionismo do Estado na economia.  Talvez seja porque os comunistas chineses sabem que não é possível compreender o capitalismo sem conhecer o que sejam os institutos fundamentais do Direito Privado (contrato, empresa, pessoa e propriedade). Notável também que praticamente não há disciplinas metadogmáticas,  metajurídicas ou matérias híbridas.

Métodos de ensino-aprendizagem
Na 46ª coluna, deixou-se evidenciado o caráter pragmático da formação jurídica chinesa: um país com mais de um bilhão de pessoas, uma enorme população jovem, uma ideologia de Estado igualitária e uma luta encarniçada, todos os anos, por um lugar na universidade. A tradição confucionista da hierarquia e do respeito à autoridade moral acomodou-se ao modelo de aulas magistrais, com provas escritas, avaliações obrigatórias e controles de aprendizagem. Há tentativas de adaptação do modelo à experiência de common law, como as clínicas de prática forense, as clínicas de direitos humanos e as moot corts.

As condicionantes históricas e sociais da China, no entanto, determinam a permanência em um modelo tradicional, que valoriza o estudo, a dedicação e não se importa muito com certas particularidades encontráveis em países ocidentais ricos.

Conclusão
O modelo de educação jurídica chinesa é de tal modo multifacetado e complexo que mereceu o maior número de colunas até agora de nossa série. O tamanho do país e de sua população podem ser indicados como fatores determinantes de uma estrutura educacional competitiva e que tem crescido em importância internacional nos últimos 20 anos.

Com dinheiro para investir em pesquisa, a China tem chamado de volta muitos de seus concidadãos e tentado se abrir para professores estrangeiros. Com o renascimento do Direito, após 1976, a educação jurídica tem assumido relevo crescente na sociedade. Os indicadores da participação de pessoas com formação em Direito nas instâncias de poder chinesas são um dado objetivo dessa mudança.

Os cursos jurídicos, salvo algumas exceções, são jovens e neles se acomodam o confucionismo, a tradição de civil law e a recente influência norte-americana. O ensino superior é um meio de ascensão social, embora se exija uma contraprestação dos alunos.  

As restrições do modelo político chinês e a preocupação em atender a padrões internacionais de segurança jurídica têm determinado mudanças na qualificação dos membros do Poder Judiciário, embora ainda haja percepção social de corrupção, além dos baixos padrões remuneratórios.

Os professores também são remunerados de maneira assimétrica. Não há transparência nesses dados e muitos deles são obrigados a encontrar formas alternativas de complementação de renda. Independentemente disso, há enorme respeito social pela figura do docente universitário.

De tudo, fica o exemplo de um país que, em menos de 40 anos, conseguiu superar indicadores educacionais vexatórios e hoje se apresenta ao mundo como um sério concorrente aos Estados Unidos e à Europa no campo universitário. Talvez tudo isso se explique também por uma humilde consciência de que o estudo sério e a compreensão de que cada um possui deveres para com a sociedade (e não tanto uma ideia de que se é credor universal de direitos). Esses fatores, ao menos para a China, são (e foram) verdadeiramente revolucionários.

 


[1] LUNEY JR., Percy R.  Traditions and foreign influences: Systems of law in China and Japan. Law and Contemporary Problems, v. 52, p.129-150, Spring, 1989. p.131.

[2] LUNEY JR., Percy R.  Op. cit. p.133-134.

[3] LUNEY JR., Percy R.  Op. cit. p.137.

[4] POLIDO, Fabricio Bertini Pasquot; RAMOS, Marcelo Maciel (Orgs). Direito Chinês contemporâneo. São Paulo: Almedina Brasil, 2015. p.208-211.

[6] Disponível em: http://law.sjtu.edu.cn/En/Article110402.aspx. Acesso em 5-7-2016.

[7] Disponível em: http://law.sjtu.edu.cn/En/Article110403.aspx. Acesso em 4-7-2016.

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    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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