Processo Familiar

Transmissibilidade dos alimentos: a lei, a doutrina e STJ (parte 4)

Autor

  • José Fernando Simão

    é professor associado do departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP livre-docente doutor e mestre em Direito Civil pela mesma faculdade diretor do IBDCONT e vice-presidente do IBDFAMSP.

3 de julho de 2016, 8h01

Spacca
Conforme já expus anteriormente, pela disciplina do Código Civil, seguindo a orientação da Lei do Divórcio (6.515/77), a regra passa a ser a transmissibilidade da obrigação alimentar (sobre o tema ver coluna anterior) com a morte do devedor. Assim, temos que, de acordo com o art. 1700 do CC, “a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do art. 1.694.” Vale transcrever o artigo 1.694 do Código Civil para que haja clareza na compreensão do problema:

Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.

§ 1o Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.

§ 2o Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia”

Cabe, então, a análise do sujeito passivo da obrigação após a transmissão

Os herdeiros do devedor na forma da lei: quem paga e quanto se paga
A responsabilidade pelas dívidas do morto compete à herança ou espólio (herança objeto de inventário).

Isso significa que a responsabilidade será, em um primeiro momento, do espólio, pois a herança, antes da partilha é um todo uno e indiviso (art. 1.791.). O espólio reúne o patrimônio do falecido, logo responde pela obrigação alimentar nas exatas condições em que respondia o devedor.

O espólio paga integralmente os alimentos vencidos e vincendos. É o patrimônio do falecido que arca com suas dívidas.

Contudo, pode-se imaginar que o falecido vivia de seu salário e com ele pagava os alimentos devidos. Se com a morte há sensível redução patrimonial, o espólio tem legitimidade para pleitear, por ação revisional, a redução do valor dos alimentos, levando-se em conta a alteração de um dos polos do binômio: a possibilidade do devedor (art. 1.694, §1º).

Após a partilha, não há mais espólio, e os herdeiros recebem os bens do falecido. Nesse momento, cabe aos herdeiros pessoalmente o pagamento dos alimentos, já que por força do artigo 1700 a obrigação se transfere. Quanto ao tema é preciso esclarecer duas questões.

1. Herdeiro paga com bens próprios ou aqueles recebidos por herança?

É antiga a regra de direito das sucessões pela qual a responsabilidade do herdeiro, por dívidas do falecido, qualquer que seja a sua natureza, dá-se nas forças da herança. Nesse sentido:

Art. 1.792. O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demostrando o valor dos bens herdados”.

Isso significa que o herdeiro paga a prestação alimentar com os bens que recebeu do falecido, jamais com seus próprios bens. É regra pela qual o herdeiro não responde pelos encargos da sucessão, além dos que ela comporta intra vires hereditatis.[1]

A função do procedimento de inventário é exatamente evitar que se confundam os bens dos herdeiros com os bens do falecido recebidos pelos herdeiros.

Então cabe uma nota: se o falecido morre insolvente, sem bens para responderem por suas dívidas, os herdeiros não pagam alimentos ao credor do falecido com seus próprios bens. O credor nada receberá por impossibilidade de pagamento do devedor (art. 1.694, §1º).

Da mesma forma, se os bens herdados só forem suficientes para arcarem temporariamente com a obrigação alimentar. Se o falecido deixa bens que suportam a obrigação por certo período de tempo, findos os bens, a obrigação alimentar do falecido se extingue.

2. Como se procede a divisão da obrigação entre os herdeiros?
Partindo-se da premissa que houve a partilha e o espólio já não mais existe, os herdeiros respondem pela obrigação alimentar.

Considerando-se que a obrigação alimentar é pecuniária (dar dinheiro), temos que a obrigação é naturalmente divisível[2]. Então, como a obrigação foi transferida, havendo mais de um herdeiro esses passam a ser devedores em partes iguais. Nos termos do art. 257 do CC, aplica-se a regra concursu partes fiunt, ou seja, a obrigação presume-se dividida em partes iguais entre os devedores.

Trata-se de presunção simples (iuris tantum) que pode ser afastada por lei ou pelo contrato. Em se tratando de alimentos, os devedores poderão provar que suas possibilidades não são iguais e, portanto, podem pleitear a divisão em partes desiguais, com base na desigualdade da possibilidade de pagamento (art. 1694, §1º).

Cabe um esclarecimento. Como os herdeiros pagam os alimentos ao credor do falecido com os bens recebidos (não com seus próprios bens), a “possibilidade” é verificada de acordo com os bens recebidos pelo herdeiro (seu quinhão na herança) e não pela capacidade patrimonial do herdeiro, o que incluiria seus bens próprios, bem como os proventos de seu trabalho.

Exemplos são necessários para se esclarecer a questão. Se o herdeiro é muito rico e renuncia à herança, para este herdeiro não há transmissão da obrigação alimentar. Os demais herdeiros (que receberam a quota do renunciante) responderão pela obrigação alimentar.

Da mesma forma, se por acordo entre os herdeiros ocorrer uma partilha em partes desiguais, aquele que ficar com a maior parte dos bens do falecido (a mais rendosa, por exemplo) terá maios possibilidade de pagamento e pagará parte maior dos alimentos.

A decisão do STJ (Resp. 1.354.693- SP – 26/11/2014)
A decisão em comento é da 2ª Seção do STJ, ou seja, representa o pensamento uniformizado das duas turmas que julgam temas de direito privado (3ª e 4ª Turma).

O resumo do julgamento é o seguinte: “observado que os alimentos pagos pelo de cujus à recorrida, ex-companheira, decorrem de acordo celebrado no momento do encerramento da união estável, a referida obrigação, de natureza personalíssima, extingue-se com o óbito do alimentante, cabendo ao espólio recolher, tão somente, eventuais débitos não quitados pelo devedor quando em vida”. O voto-divergente, de lavra da Ministra Isabel Galotti, parte das seguintes premissas:

i) A nova regra (transmissibilidade) aplica-se hoje à generalidade das hipóteses de obrigação legal de prestar alimentos (…)entre cônjuges, companheiros e parentes, não sendo mais pertinente a tese de que incidiria apenas no caso de pensões estabelecidas por ocasião da ruptura do vínculo conjugal como argumentava parte da doutrina com base no art. 23 da Lei do Divórcio;

ii) Quanto às demais correntes, rejeito a tese de que a transmissibilidade somente atingiria as obrigações vencidas quando da morte do devedor, conclusão que tornaria o antigo art. 23 da Lei do Divórcio e o atual 1.700 do Código Civil de 2002 absolutamente inócuos. Com efeito, as prestações vencidas são dívidas da herança, cobradas na forma do direito sucessório, como quaisquer outras;

iii) As necessidades do alimentado reconhecidas pela sentença existem desde o ajuizamento da ação ainda em vida do falecido. Se é certo que o necessitado sobreviveu durante os longos anos de tramitação da causa à custa de privações, compaixão alheia, favores de pessoas desobrigadas e/ou empréstimos, serviria de estímulo, à postergação do final do litígio, solução diversa da consagrada pela lei, pela doutrina e pela jurisprudência sumulada.

Já o voto-vencedor de autoria da ministra Nancy Andrighi é o seguinte:

i) A morte do alimentante traz consigo a extinção da personalíssima, obrigação alimentar, pois não se pode conceber que um vínculo alimentar decorrente de uma já desfeita solidariedade entre o falecido-alimentante e a alimentada, além de perdurar por cerca de quatro anos após o término do relacionamento, ainda lance seus efeitos para além da vida do alimentante, deitando garras no patrimônio dos herdeiros, filhos do de cujus;

ii) Não há vínculos entre os herdeiros do falecido e a ex-companheira que possibilite se protrair, indefinidamente, o pagamento dos alimentos a esta, fenecendo, assim, qualquer tentativa de transmitir a obrigação de prestação de alimentos, após a morte do alimentante;

iii) Qualquer interpretação diversa, apesar de gerar mais efetividade ao art. 1.700 do CC-02, vergaria de maneira inaceitável os princípios que regem a obrigação alimentar, dando ensejo à criação de situações teratológicas, como o de viúvas pagando alimentos para ex-companheiros do de cujus, ou verdadeiro digladiar entre alimentados que também são herdeiros, todos pedindo, reciprocamente, alimentos.

A conclusão que se chega da decisão é bastante simples: a decisão nega vigência ao artigo 1700 do Código Civil, nos dizeres da própria Ministra Isabel Galotti, A decisão nega toda a mudança que o instituto sofreu desde as Ordenações Filipinas (com base no Direito Romano).

A Lei do Divórcio, já em 1977, rompe com a noção de intransmissibilidade no que é seguida pelo Código Civil de 2002. A decisão do STJ é anacrônica, sem base legal e dada com base em lei já não vigente há 40 anos. Simples assim.


[1] Clóvis Beviláqua, Direito das Sucessões, Freitas Bastos, 1932, p. 47.

[2] Exceção se dá com relação ao credor idoso, cujos alimentos são devidos de maneira solidária (art. 12, Lei 10.741/03).

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