Opinião

Suspender ou adiar custeio de direitos fundamentais nem deveria ser cogitado

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3 de julho de 2016, 6h36

Em meio à penumbra dos números, querem nos fazer crer ser única escolha válida a iniciativa de pactuar um ajuste fiscal que torne excepcional o cumprimento da Constituição.

Muito embora o país esteja em tempos de paz e nenhuma perturbação social ou institucional o ameace estruturalmente, a solução recentemente posta em debate para a crise fiscal em muito se assemelha à suspensão de direitos fundamentais por prazo dito determinado, mas suficientemente longo para ser mais grave que a guerra e o estado de sítio que ela pode, em situações dramáticas, dar ensejo.

Regras ditas transitórias são criadas e perenizadas para constranger a relação de proporcionalidade entre receitas e despesas governamentais, para assegurar tanto a desvinculação parcial de receitas, quanto um teto igualmente parcial de despesas. Nesse sentido, é sintomático o fato de o país estar a debater a 8ª (oitava!) proposta de emenda à Constituição que visa à desvinculação de parte significativa das receitas federais, sempre por meio de um arremedo de brecha normativa inserida ou prorrogada no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Em vez de fazer a necessária reforma tributária e arcar com os difíceis impasses federativos e econômicos que ela encerra, a União, desde 1994, desvincula parcialmente suas receitas, mitiga a efetividade da fonte de custeio do Orçamento da Seguridade Social (onde estariam amparadas a saúde, a previdência e a assistência social) e se nega — direta ou indiretamente — ao dever de repartição desses recursos com os entes subnacionais.

Interessante notar como o discurso da transitoriedade e da inevitabilidade dos arranjos fiscais excepcionais aplica-se apenas a uma parcela do orçamento público. Talvez, precisamente por isso, a melhor definição da PEC do Novo Regime Fiscal (PEC 241/2016) seja a de que ela é uma tentativa de atirar na sombra do problema. Ao mirar os gastos primários (aqueles que não têm a ver com as despesas financeiras), o “novo” envelhece rapidamente. Pior, na manifesta incapacidade de voltar ao superávit primário de 3% do PIB da década passada, aparece mais como remendo do “velho” do que como algo “novo”.

Ocorre, contudo, que a sociedade brasileira é prisioneira da ausência de mínima capacidade de análise sobre as contas públicas, tampouco compreende o significado do Estado e dos direitos fundamentais, sobretudo à luz das incontornáveis balizas constitucionais. Assim, a opacidade dos periódicos ajustes fiscais se soma aos cotidianos e inúmeros conflitos distributivos que cercam o processo de elaboração e de execução dos orçamentos anualmente.

Alguns números pouco discutidos atestam que há muita coisa oculta na avaliação da presença do Estado em nossa economia. Comecemos pela Previdência Social e seu aventado déficit de R$ 98 bilhões em 2015. Caso sejam tomadas apenas as receitas e os benefícios urbanos, as contas do regime geral da previdência geraram pequeno superávit. O déficit concentra-se na parte rural, cujo assento constitucional se funda em premissa de solidariedade que refuta a estrita equação contributiva. Aliás, vale retomar aqui o próprio efeito da desvinculação de receitas e das renúncias fiscais concedidas de forma equivocada ao longo dos últimos anos sobre esse setor.

A conta de juros do governo federal, por outro lado, é muito maior. Em 2015, foram pagos R$ 428 bilhões aos detentores dos títulos públicos e aplicadores em operações compromissadas do Banco Central. Obrigações do devedor, alguns diriam. O custo, porém, é alto, alto demais para o país. Os dados do Banco Central indicam que a taxa implícita de juros sobre a dívida líquida do governo federal e Banco Central foi de 24,6% e 39,5% ao ano, em 2014 e 2015, respectivamente. No entanto, por que pagar tanto mais que a Selic, que já é uma das taxas básicas mais altas do mundo, para quem nem tem outra opção de investimento?

O montante pago como juros encobre, em 2015, R$ 90 bilhões gastos com os swaps cambiais, uma espécie de seguro oferecido pelo Banco Central contra a desvalorização do real frente ao dólar que beneficiou empresas endividadas em moeda estrangeira, aplicadores externos em títulos públicos e especuladores em geral. Aliás, os swaps cambiais podem ter feito tudo, menos propiciar algum tipo de estabilidade na gestão do câmbio. E a sociedade brasileira nem autorizou tal despesa, vez que não é previamente estimada na lei orçamentária. A fatura do resultado do Banco Central é tratada como uma dotação orçamentária ex post, totalmente livre de restrições ou limites normativos: há de ser paga independentemente da economicidade, legitimidade e legalidade das opções das políticas monetária e cambial.

A questão do endividamento é mais grave, porque nem os conceitos são compreendidos. Depois que os últimos anos de gestão federal destruíram a credibilidade do conceito de Dívida Líquida do Setor Público, o conceito de Dívida Bruta se impôs. Entre o final de 2014 e dezembro de 2015, a dívida bruta subiu de 55,2% para 66,5% do PIB. Os juros e o câmbio responderam por 9,2% do PIB dessa expansão da dívida. Ou seja, com uma economia estagnada e uma taxa de juros desse tamanho, o país pode cortar todos os gastos primários e sitiar o custeio de todos os direitos fundamentais em torno do teto (apenas correção inflacionária), que o governo não vai conseguir repor mínimas condições de sustentabilidade na evolução da dívida.

Hoje, o país sabe muito pouco sobre as receitas e as despesas federais. No campo das receitas, os números das renúncias fiscais, da sonegação, da dívida ativa não arrecadada, dos programas de parcelamento como o Refis e dos questionamentos aos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais são assustadores. Na seara da despesa, não há dúvida de que há, de um lado, grandes inchaços como a própria conta dos créditos subsidiados e, de outro, setores esquecidos, como a saúde e a educação básica de qualidade. Porém, vale lembrar que se o padrão de desvio de recursos na gestão de contratos da Petrobras tiver se estendido para o conjunto do orçamento geral da União, mesmo que de forma limitada, muito recurso será poupado em sua reversão.

O país não precisa de fórmulas prontas, mas carece de urgente recomposição de suas estruturas institucionais. O “novo” no Regime Fiscal talvez fosse colocar tudo às claras, respeitando os limites normativos estabelecidos como pacto fundante da vida em sociedade desde 1988, inclusive no que diz respeito ao teto já existente de gasto com pessoal e ao dever — ainda não cumprido — de edição de limites para as dívidas consolidada e mobiliária da União.

O fim da escuridão há de começar pelo debate franco e suficientemente forte do que é ou não prioridade orçamentária para o Estado brasileiro, bem como quais são os tetos fiscais já existentes no ordenamento brasileiro que têm sido descumpridos no trato exclusivamente referido à meta de resultado primário nas leis anuais de diretrizes orçamentárias.

Suspender ou adiar o custeio dos direitos fundamentais, sobretudo os amparados pelo dever de gasto mínimo como saúde e educação e os amparados por fonte vinculada de receita como a seguridade social — diante de tantas inconsistências nas contas públicas —, certamente deveria estar fora de cogitação. Eis a clareza pura e simples que falta ao tom dos debates: é isso, ou viveremos um estado de sítio fiscal, por óbvio, inconstitucional.

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    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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    é professor doutor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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