Dinheiro fácil

Alguns estados dos EUA começam a frear a indústria do confisco civil

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2 de julho de 2016, 8h27

Desde o ano passado, alguns estados americanos começaram a desmontar uma máquina de fazer dinheiro fácil para seus departamentos de polícia e muito mais rentável do que o da indústria da multa de trânsito: suas leis de “confisco civil”.

New Hampshire se tornou, esta semana, o 11º estado a mexer em sua lei. Alguns estados o fizeram para reformá-la, outros para simplesmente eliminá-la de seu arcabouço jurídico. Afinal, o confisco civil é um dos procedimentos jurídicos mais estranhos — e certamente controvertidos — dos Estados Unidos.

A legislação do confisco civil, estadual e federal, autoriza os órgãos de “law enforcement” (entenda-se, todos os órgãos de execução da lei, seja a polícia civil, polícia militar, polícia federal, agentes de combate a narcóticos, investigadores da receita federal, o que seja) a confiscar bens de uma pessoa, sem que ela seja formalmente acusada de qualquer crime — muito menos condenada. Basta que haja uma suspeita.

No confisco criminal, a polícia e a promotoria precisam provar, acima de qualquer dúvida razoável, a ocorrência de um crime, para buscar a condenação. Se obtida, o passo seguinte é pedir o confisco de bens, como uma forma de punir economicamente o criminoso.

No confisco civil, basta a polícia alegar que há uma “preponderância” de provas de que ocorreu um crime ou delito, para se dar ao direito de confiscar bens (dinheiro e qualquer coisa que possa ser convertida em dinheiro, como carros, casas, aviões, barcos, joias, computadores, aparelhos eletrônicos, equipamentos, animais, safra agrícola etc.).

Ao contrário de uma ação criminal, em que o Estado disputa com um indivíduo (o réu), ou de uma ação civil, em que um indivíduo/organização disputa com outro indivíduo/organização, no confisco civil a disputa é entre o governo (em nome da “law enforcement”) e uma coisa (uma quantia em dinheiro, uma casa, etc.).

Coisa contra o estado
Tramitam pela Justiça dos EUA casos como “Estado do Texas versus Um Chevrolet Silverado 2014” ou “Estados Unidos versus Um Objeto Sólido do Ouro na Forma de um Galo”, de acordo com o relatório “Policing for Profit” (“Policiando por Lucro”), do Institute For Justice.

A coisa, na condição de “coisa” — e não de cidadã com seus direitos constitucionais — não tem direito a um advogado. E nem mesmo ao devido processo. Aliás, os governos nem abrem processos contra as “coisas” apreendidas. Quem tem de abrir um processo, no caso contra o Estado, é o proprietário da “coisa” confiscada, se quiser recuperá-la.

Se não mover uma ação, o que uma grande parte dos prejudicados não faz, o confisco civil se dá através de um processo administrativo — e bye, bye, propriedade. Se mover uma ação, o proprietário tem de provar que a “coisa” é inocente — ou seja, que ela não teve participação em qualquer crime ou delito — provando ou não a própria inocência.

Nesse caso, há uma inversão do ônus da prova. Cabe ao acusado provar a inocência e não à Promotoria provar a culpa. Segundo o relatório do Institute for Justice, o princípio da presunção de inocência vira um princípio de presunção de culpa, contra o qual o proprietário tem de lutar na Justiça, a suas próprias custas (se valer a pena).

A lógica por trás dessa evasão do sistema criminal se baseia na ficção jurídica de que a propriedade considerada suspeita de estar conectada a um crime alegado é considerada “culpada” de haver participado no cometimento de um crime ou delito, que pode ser qualquer um, até mesmo a promoção de uma rinha de galos, diz o relatório.

Arrecadação alta
É uma indústria multimilionária. Segundo o relatório, rende centenas de milhões de dólares por ano aos órgãos de “law enforcement”. Como exemplo, o relatório afirma que o confisco civil rendeu apenas à Polícia de Pensilvânia US$ 69 milhões, em um período de dez anos (sendo US$ 47 milhões em dinheiro, 1.200 casas, 3.400 veículos e outras tantas propriedades. Nesse mesmo período, só o Departamento de Justiça repassou a Departamentos de Polícias estaduais US$ 4,7 bilhões.

As leis estaduais preveem, de uma maneira geral, que os órgãos de “law enforcement” locais podem reter 45% da arrecadação do confisco civil. Outros 45% vão para o estado e 10% são depositados em uma conta do Departamento de Saúde. O estado de New Hampshire apurou US$ 1,1 milhão dessa maneira, em um período de 13 anos.

Mas a renda maior vem de um programa chamado “compartilhamento equitativo”, que deriva de operações conjuntas entre a polícia estadual e a polícia federal. Nesse caso, os órgãos federais destinam aos órgãos estaduais 80% da renda de confiscos civis. No período de 13 anos, New Hampshire faturou US$ 17,8 milhões.

Porém New Hampshire é um dos estados arrependidos do dinheiro fácil que apurou, muitas vezes à custa de pessoas inocentes. A nova lei do estado estabelece que os órgãos de segurança só podem confiscar bens de réus condenados pela Justiça, em um julgamento em que a Promotoria deve apresentar provas convincentes do “envolvimento” da propriedade no crime.

Três estados mantiveram o confisco civil, desde que o réu seja condenado, mas proibiram a destinação da receita à Polícia. O argumento é o de que a Polícia está deixando de buscar a Justiça para buscar o lucro. E três estados simplesmente eliminaram o confisco civil de sua legislação.

O confisco civil existiu desde sempre na commom law. Mas ganhou força na década de 1980, com os esforços do governo federal para combater o tráfico de drogas. Em 1989, o procurador-geral do governo Reagan, Richard Thrnburgh, anunciou: “Agora é possível que um traficante de drogas seja colocado em uma prisão financiada pelo confisco civil, depois de ser preso por agentes que dirigiam um carro apreendido em uma ação de confisco civil, em uma operação secreta financiada pelo confisco civil”.

Porém, a prática gerou muito dinheiro e desvirtuou seus propósitos originais. “O confisco civil se tornou um dos assaltos mais sérios ao devido processo e aos direitos à propriedade privada nos Estados Unidos”, disse à revista Forbes  o advogado do Institute for Justice Rob Peccola.

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