Opinião

O que o STF ainda não disse sobre a constitucionalidade do sistema de cotas

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29 de janeiro de 2016, 10h33

A identificação é também um fator poderoso na estratificação, uma de suas dimensões mais divisivas e fortemente diferenciadoras. Num dos pólos da hierarquia global emergente estão aqueles que constituem e desarticulam as suas identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-as no leque de ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência planetária. No outro polo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que não tem o direito de manifestar as suas preferências e que no final se vêem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros — identidades de que eles próprios se ressentem, mas não tem permissão de abandonar nem das quais conseguem se livrar. Identidades que estereotipam, humilham, desumanizam. estigmatizam.

Zygmunt Bauman

Em decisão recente que tomou conta do noticiário, o juiz da 8ª Vara do Trabalho de João Pessoa na Paraíba, jurisdição do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região, declarou incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei 12.990 de 2014, que reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

Na visão do juiz, a análise da constitucionalidade do diploma que instituiu as cotas para negros em concursos públicos passa por elementos que não foram enfrentados pelo Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, em 2012. Na ocasião, a Suprema Corte declarou, por unanimidade, a constitucionalidade das cotas raciais para o acesso ao ensino superior. Um dos fundamentos utilizados na decisão pressupõe que não é obrigação do Estado disponibilizar emprego público para todos os cidadãos e que a estipulação das cotas raciais seria medida inadequada para promover a igualdade e a inclusão social, uma vez que a raiz de todo o problema seria a Educação.

É cediço que um dos princípios basilares do ordenamento jurídico é o princípio do livre convencimento motivado do juiz, que permite ao magistrado apreciar livremente o conjunto fático-probatório coligido a um determinado processo e, com base nas normas legais e constitucionais vigentes, formar o seu convencimento. Na prática, significa dizer que qualquer juiz singular tem autonomia para decidir, até mesmo em sentido contrário à jurisprudência que emana dos tribunais e das cortes superiores.

Por seu turno, a decisão é fundamentada, pois o juiz considerou que a lei que instituiu as cotas raciais viola os artigos 3º, IV, 5º, caput, e 37, e II, da Constituição Federal, além de afrontar os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Todavia, a questão das cotas raciais nos concursos públicos não pode ser segregada da questão da destinação de cotas raciais no acesso à educação superior.

Antes, o bem jurídico tutelado parece o mesmo. Ou seja, conforme ficou bastante claro e bem assentado no julgamento da própria ADPF 186, o Estado é livre para “lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares”, sem  que isso viole o princípio da isonomia.

Dessa forma, adotadas as medidas processuais cabíveis pelos interessados, é bastante provável que tal decisão seja reformada, senão no âmbito da segunda instância, no próprio TRT da 13ª Região, seguramente no STF.

O fato de algumas pessoas ainda não se conformarem com estipulação das cotas raciais, quiçá, está a comprovar uma afirmação do então ministro Joaquim Barbosa, único negro a compor a Corte quando do julgamento do ADPF 186. Na ocasião, Barbosa asseverou que ações afirmativas são definidas como políticas públicas que buscam a neutralização dos efeitos deletérios da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem. Conclui que “essas medidas visam a combater não somente manifestações flagrantes de discriminação, mas a discriminação de fato, que é a absolutamente enraizada na sociedade e, de tão enraizada, as pessoas não a percebem. ” Ou será que, de fato, percebemos?

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