Opinião

Em nome da democracia, não podemos fragilizar o Direito no combate à corrupção

Autor

  • Guilherme Barcelos

    é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) mestre em Direito Público pela Unisinos-RS pós-graduado em Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Eleitoral (Verbo Jurídico) graduado em Direito pela Urcamp-RS membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF professor da pós-graduação em Direito Eleitoral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Membro do Conselho Editorial da Editora Juruá (Curitiba-PR) advogado e sócio fundador da Barcelos Alarcon Advogados (Brasília-DF).

24 de janeiro de 2016, 7h30

Há determinados males que, a despeito de existirem desde sempre, permanecem na penumbra, muitas vezes camuflados por outras ideologias sociais, e que somente afloram quando – e se – um raio de luz o projete. Eis o caso da corrupção em nosso país. Com efeito, a estridência dos recentes escândalos, de proporções inéditas, mas de contornos ainda desconhecidos, expôs, às escâncaras, a face mais perniciosa da indecência no trato do dinheiro público, permitindo que a corrupção se tornasse o inimigo da vez a ser duramente rebelado pela sociedade[1]

Nos últimos tempos, quando falamos sobre o problema da corrupção, conjugamos, neste contexto, também a figura da chamada corrupção eleitoral, que denota a realidade perniciosa que, porventura, pode vir a permear determinada(s) disputa(s) eleitoral(ais).

Tanto a corrupção pública, quanto à corrupção eleitoral propriamente dita são males que merecem ser combatidos, sem dúvidas. É chegada a hora de a comunidade política brasileira dar uma guinada em busca de um futuro melhor, afastando-se, pois bem, do gene corrupto que a assola desde o descobrimento do Brasil.

Em verdade, a corrupção, em si, não é privilégio de um governo ou de outro (não que alguns não sejam notáveis pela prática, reconhecemos), tampouco uma característica a ser atribuída isoladamente a determinado momento histórico. Trata-se, por estas bandas, de algo que nos acompanha desde a aurora da Nação, e que, além disso, se encontra disseminado no seio da sociedade, na “microfísica do poder” (Foucalt), não sendo, aliás, monopólio da classe política. E, quiçá, das campanhas eleitorais. O fato é que se trata de algo presente – marcadamente presente – no DNA do Estado e da sociedade brasileira, e que a todos rodeia, enquanto seres-no-mundo que somos. Logo, se quisermos, ali adiante, erguer, definitivamente, uma sociedade mais justa e solidária (tal e qual prevê a Constituição da República), deveremos, sim, combater esta praga incrustada desde há muito na esfera das instituições e comunidade brasileiras.

Por oportuno, no que se refere especificamente à seara eleitoral, pensamos que tal atenção deve, também, ser dispensada quanto ao curso das campanhas eleitorais, até mesmo para objetivar o controle de eventuais condutas ilícitas que, porventura, possam vir a ser praticadas no decorrer das disputas, de modo a desvirtuarem a liberdade de voto do eleitorado, a igualdade de oportunidades entre os concorrentes, a normalidade, a lisura e a legitimidade dos escrutínios.

Logo, nesse desiderato, tanto o marco regulatório da prática eleitoral neste recanto, quanto à Justiça Eleitoral brasileira no exercício das suas diversas competências constitucionais e legais, têm papéis salutares nesse controle. E bem assim, por relevante, não é diferente no que tange à atuação do Ministério Público Eleitoral, da Polícia Federal, da Ordem dos Advogados do Brasil (que deve estar alinhada aos preceitos da Constituição, vale sempre lembrar, até mesmo porque esta máxima tem sido recentemente esquecida pelo órgão de classe, assim como por algumas instituições do Estado), da sociedade civil, dos partidos políticos, coligações e candidatos e, igualmente, do corpo eleitoral.

Penso, dessa maneira, que as iniciativas em prol de uma Administração Pública mais transparente e eficiente, bem como as investidas para fazer com que os processos eleitorais sejam cada vez mais democráticos e permeados pelo respeito à lei, devem ser louvadas. Sincera e respeitosamente louvadas e, aliás, republicanamente apoiadas.

Porém, a questão a ser perquirida não é a ação nesse sentido, mas sim como ela se dá. Noutras palavras, o ponto de estofo não é o agir, mas o como agir. E aí reside o grande problema. Ou o busílis da matéria.

Sobretudo nos tempos marcados por grande comoção social, justificável ou não, não é raro que surjam medidas que, apesar de bem intencionadas, são construídas de maneira demasiado questionáveis (a nós, um exemplo clarividente desse fenômeno é a chamada Lei da “Ficha Limpa”). Muitas dessas medidas podem ser erguidas em detrimento da própria principiologia constitucional, materializadas por um viés eminentemente populista que, a despeito de defender o país dos malfeitos à coisa pública ou aos processos eleitorais, avançam, direta e inexoravelmente, contra a Constituição da República. Também, não raramente, figuras das mais diversas se arvoram da condição de justiceiros e, com lastro em posturas absolutamente ativistas, acabam por fazer tabula rasa de direitos e garantias consagrados como produtos de um salto civilizatório dado ao longo da história.

Nesse contexto, o que nos preocupa “[…] (e deveria também preocupar todos os que compartilham do mesmo ideal de construção de uma sociedade mais justa e democrática) é a maneira pela qual se pretende enfrentar esse mal da corrupção”[2]. Em outras palavras, o elogiado ideal de eliminação da corrupção, em vez de levar ao aperfeiçoamento do sistema público de administração e de justiça, pode implicar um retrocesso legal, que até pode se prestar a saciar em parte os anseios momentâneos, mas que, paradoxalmente, corre o risco de se relevar em um próprio incremento do mal combatido[3]. Ou seja, combater à corrupção (eleitoral ou não) sob o ataque de direitos fundamentais e garantias individuais, além de algo antidemocrático e inconstitucional, nada mais faz do que alimentar a própria corrupção do sistema eleitoral. Simples assim. Além disso, apostar, tardia e acriticamente, em uma espécie de protagonismo judicial desenfreado na arena político-eleitoral nada mais é do que relegar a um segundo plano a soberania e o protagonismo do povo na escolha dos seus representantes, também em ataques diretos ao princípio democrático. Logo, é missão de todos aqueles preocupados com a manutenção e consolidação do Estado Democrático de Direito (ao contrário dos demagógicos e dos populistas que surgem como messias nesses cenários de revolta popular) o rechace absoluto a estes desrespeitos solenes à Constituição. Isso, a toda evidência, não podemos e não vamos tolerar, em qualquer circunstância (!)[4].

Na dicção de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, se se tem no Brasil “uma ‘Constituição Cidadã’ e que aponta na direção da civilidade, tudo que venha de encontro a ela aponta na direção da barbárie porque, como se sabe, tende a suprimir direitos e garantias constitucionais que não são de alguns, mas de todos”[5]. Logo, “[…] ninguém é a favor ou pode ser a favor da corrupção; mas ninguém está autorizado a passar por cima da Constituição da República e demais leis e, antes, pelos seus fundamentos, seja lá por que for; e em nome de quem for, por mais nobre que possa parecer o motivo e ainda que ele seja o combate à corrupção. A corrupção, enfim, combate-se com os meios democráticos que se têm à mão; e nunca fora deles”[6]

Assim, é sempre bom lembrar: em Direito, os fins não justificam os meios. São os meios que legitimam os fins! Dessa forma, a Constituição é o esquadro e o compasso da ordem jurídica, de tal maneira que qualquer que seja o fim, ela deve, necessariamente, ser respeitada, sob pena de instalar-se, logo ali, a verdadeira barbárie.

Sem embargo, não é assim que as coisas vêm caminhando na esfera do Direito Eleitoral (e Processual Eleitoral). Cada vez mais o direito de voto e o direito de ser votado estão sendo diminuídos. A liberdade nos processos eleitorais vem sendo sistematicamente cerceada. A despeito de moralizar a política brasileira, leis e dispositivos legais têm sido sancionados (e o pior, reconhecidos como constitucionais), mesmo que em detrimento direto de princípios constitucionais (como a presunção de inocência). Já no âmbito dos litígios judiciais eleitorais, cada vez mais não há espaço para os direitos e garantias individuais, e as formas e ritos processuais, juntamente com as garantias fundamentais, são vistas, mais e mais, como meros engodos.

O cenário é demasiado periclitante, portanto. Combatê-lo, ao fim e ao cabo, é missão daqueles preocupados, verdadeiramente, com a efetivação e consolidação do regime democrático. Democracia se aperfeiçoa com mais democracia. Logo, contrapor (pretensamente) um mal criando outro ainda maior não é o caminho. Sejamos vigilantes!


[1] IBCRIM. Boletim. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Ano 23 – 277 – Dezembro/2015, p. 01.

[2]IBCRIM. Boletim. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Ano 23 – 277 – Dezembro/2015, p. 01.

[3] IBCRIM. Boletim. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Ano 23 – 277 – Dezembro/2015, p. 01.

[4] Lembremo-nos do famigerado “pacote anticorrupção” (sic) apresentado pelo MPF em pleno contexto de operação “lava jato”. Sobre ele, então, basta lembrar as palavras do jurista e ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes, que, indagado sobre o tal projeto, disse o seguinte: “Só esqueceram de combinar com a Constituição”. Nesse contexto, o mais temerário é que esta investida antidemocrática acabou patrocinada, justa e paradoxalmente, por uma instituição que se intitula “fiscal da lei”. Logo, se realmente são “fiscais da lei”, deveriam, necessariamente, zelar pela “Lei das Leis”, o que não é o caso. É de pesar, definitivamente.

[5] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. MPF: As 10 medidas contra a corrupção são só ousadas? IBCRIM. Boletim. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Ano 23 – 277 – Dezembro/2015, pp. 02-03.  

[6] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. MPF: As 10 medidas contra a corrupção são só ousadas? IBCRIM. Boletim. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Ano 23 – 277 – Dezembro/2015, pp. 02-03.  

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!