Opinião

Considerações sobre a Lei de Regularização de Ativos

Autor

  • Rogério Fernando Taffarello

    é advogado criminalista sócio de Mattos Filho Advogados professor de Direito Penal e Processo Penal da pós-graduação em Direito Penal Econômico da FGV-SP e mestre em Direito Penal e criminologia pela USP.

23 de janeiro de 2016, 17h17

Sancionada com vetos no último dia 13 de janeiro, a Lei de Regularização de Ativos (Lei 13.254/16) tem suscitado, como não poderia deixar de ser, questionamentos nos meios jurídicos e entre agentes econômicos, os quais merecem breve análise.

De início, cabe avaliar o mérito da nova lei e da intenção do legislador que a aprovou, os quais me parecem positivos. Desde a última década, muitos países aprovaram leis com semelhante teor, como a Alemanha, a Bélgica, o Chile, a Espanha, a Itália, o México e a Turquia. No caso brasileiro, especialmente nas três décadas finais do século passado o país atravessou instabilidades monetárias e macroeconômicas que fizeram que muitas pessoas físicas e jurídicas enviassem ou mantivessem ativos no exterior, não necessariamente cumprindo todos os requisitos legais exigidos. Em alguns casos, inclusive, os atuais proprietários receberam como herança bens ou valores no exterior que já não vinham sendo declarados havia anos, e tampouco lograram regularizá-los — em geral, o risco jurídico implicado nessa tarefa, principalmente no âmbito penal, era muito superior ao risco de manter as coisas como estavam.

Superado aquele cenário, cumpre ao Estado reconhecer que erros de política econômica do passado ampliaram esse passivo econômico e fiscal, o qual não convém ao país e tampouco aos cidadãos interessados em manter suas contas em ordem. Por isso mesmo, o Congresso Nacional, já desde meados do ano 2000, debateu a matéria em diferentes ocasiões, tendo chegado a adquirir certo relevo o PLS 354/09, então apresentado pelo senador Delcídio do Amaral, que acabou arquivado em 2014.

Nos últimos dez anos, porém, propostas do gênero tiveram dificuldades para encontrar apoio no governo e entre deputados de diferentes correntes partidárias, pois até hoje não se sabe ao certo qual a extensão do ingresso de divisas que a regularização implicará. E, em um contexto de entradas continuadas de moeda e de câmbio sobrevalorizado como o Brasil experienciou entre 2004 e 2014, entradas ainda maiores de valores teriam impacto extremamente nocivo à produção nacional, às exportações e à economia como um todo. Com a abrupta reversão da curva cambial, isso deixou de ser um problema em 2015, e, bem ao contrário, a crise econômica tornou bastante desejável o ingresso de moeda no país.

Adicionalmente, em âmbito internacional, diversos tratados têm sido negociados em âmbito bilateral e multilateral, sobretudo por iniciativa dos Estados Unidos e da União Europeia, com vistas a estabelecer mecanismos de trocas diretas de informações entre os fiscos dos diferentes países (de que é exemplo o já conhecido U. S. Foreign Account Tax Compliance ActFATCA), frequentemente obrigando instituições financeiras a abrir informações de depositantes que, até há pouco tempo, eram rigidamente protegidas por regras de sigilo bancário. Essas regras visam a prevenir e reprimir mais severamente a sonegação fiscal, tema que adquiriu especial relevo aos países desenvolvidos no contexto da crise financeira que desde 2008 assola, entre idas e vindas, a economia mundial.

Nos próximos anos, esses acordos entrarão em vigor. É verdade que, no Brasil, apresentarão problemas de compatibilização com as garantias de sigilo (bancário e fiscal) previstas em nossa ordem constitucional (artigo 5º, X e XII, CF), mas, de qualquer modo, já são uma realidade da política internacional e têm se tornado quase um imperativo da economia globalizada. Afigura-se, portanto, razoável que mudanças tão significativas no ordenamento jurídico, antes de virem a lume com seus rigorosos efeitos sancionatórios, concedam oportunidade para que, mediante o pagamento de tributo e multa aplicáveis, cidadãos possam optar por regularizar os valores não declarados que mantêm no exterior.

Entendo apropriada a determinação pela lei da data-base no dia 31 de dezembro de 2014 (artigo 1º, §§ 1º, 3º e 4º; artigo 2º, I; artigo 3º; etc.), tendo em vista que, porquanto sua discussão iniciou-se em meados de 2015, era preciso impedir que, confiando que logo sobreviria uma anistia, pessoas enviassem dinheiro ao exterior com o propósito de evadir tributos impunemente. Essa escolha legislativa, porém, tem um lado ruim para as finanças públicas: a taxa de conversão cambial tornou-se desfavorável ao Fisco — o que, por outro lado, não deixa de ser um incentivo a mais ao particular que pretenda aderir ao regime especial.

A versão original do projeto, apresentada ao Senado Federal no ano passado pelo senador Randolfe Rodrigues (PLS 298/15), propunha um pagamento total de tributos em 35% do valor, a princípio mais proporcional com as demais previsões da legislação tributária brasileira. Durante a tramitação do segundo projeto (PL 2960/15), apresentado pelo governo federal e ao fim aprovado, esse número foi reduzido na Câmara dos Deputados para 30%, o qual não deixa de ser razoável se considerarmos que muitos outros países que adotaram a regularização na última década — incluindo todos os acima citados — estabeleceram taxas menores.

A nova lei não obriga qualquer pessoa a proceder à repatriação dos vens ou valores. Obriga, sim, à regularização, ou seja, à devida e adequada declaração e recolhimento dos tributos e multa cabíveis, podendo a repatriação efetivamente ocorrer ou não, pois se podem manter os recursos regularizados no exterior. E se a lei é de regularização e não necessariamente de repatriação, tampouco configura ampla anistia de passivos tributário e fiscal: não perdoará todo e qualquer caso do passado, mas, ao revés, apenas tencionou abrir uma justa janela de oportunidade antes que a regulação da matéria se torne ainda mais rigorosa.

Andou bem o legislador, a meu ver, ao impedir que os benefícios do regime especial sejam aplicáveis a “detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas”, bem como aos respectivos cônjuges e parentes consanguíneos ou afins até o segundo grau ou por adoção (artigo 11). Não se trata de violação à isonomia, creio-o, mas de tratamento desigual para circunstâncias desiguais, reconhecendo-se que o agente público em geral, notadamente aquele em posição de tomador de decisão, tem uma especial relação com o dever de probidade, mesmo em relação à gestão de seu patrimônio pessoal, razão por que houve a lei por não autorizar a ele o regime especial de regularização e anistia — ainda que limitada e condicionada — de ilícitos anteriores.

Especificamente quanto às implicações criminais da nova lei, acertou o legislador ao estatuir a extinção da punibilidade para os casos em que os valores relacionados tenham relação com: (i) sonegação fiscal; (ii) sonegação de contribuição previdenciária; (iii) falsidade ideológica e material e uso de documento falso praticados como crime-meio à consecução de crimes fiscais; (iv) evasão de divisas; (v) manutenção de depósitos não declarados no exterior; e (vi) lavagem de bens ou valores cuja origem ilícita provenha de um dos delitos anteriormente citados (art. 5º, § 1º, I a VII). Acertou também a presidente da República ao vetar outras hipóteses de delitos passíveis de extinção da punibilidade. Considero, todavia, que a extinção da punibilidade relativa aos crimes de falso, inscrita artigo 5º, § 1º, IV, também deveria incidir quando tenham sido praticados como meio para a evasão de divisas, e não somente para a sonegação — ainda que esta hipótese seja de mais frequente incidência, e, portanto, de maior relevo.

 

Concordo com os que criticam o veto presidencial ao artigo 1º, § 5º, inciso I da lei, sugerido pelo Ministério da Fazenda, que visou a impedir que pessoas com sentenças condenatórias recorríveis pelos delitos acima citados (arrolados no artigo 5º, § 1ª) adiram ao regime especial. A norma, aqui, cria um discrimen onde o direito penal não o faz e o direito constitucional não o aceita, visto que o cidadão contra quem haja sentença penal condenatória recorrível (ou recorrida) contra si é presumido inocente tanto quanto aquele jamais sentenciado. Melhor teria sido, aqui, a manutenção da redação aprovada no Congresso, a qual somente vedaria a adesão àqueles com condenações “transitadas em julgado”, com o que se preveniria indesejável insegurança jurídica e custosos questionamentos que certamente serão postos ao Poder Judiciário.

Dúvidas há, nesse mister, sobre se a previsão do artigo 5º, § 2º, inciso II exclui a determinação legal de que o acesso ao regime especial só possa ser dado a cidadãos não sentenciados em primeiro grau, na medida em que afirma que a extinção da punibilidade de que trata o parágrafo que lhe antecede “somente ocorrerá se o cumprimento das condições se der antes do trânsito em julgado da decisão criminal condenatória”. Se, de um lado, é possível considerar que esse dispositivo faria ceder o impedimento à adesão de condenados não definitivos, tornando inútil o veto ao artigo 1º, § 5º, I, de outro, é de se ver que referida previsão toca ao momento do “cumprimento [integral] das condições” pelo aderente — e, a depender da futura regulamentação da lei (artigo 7º; artigo 10), a ocasião do pagamento pode não vir a ser a mesma da apresentação da declaração (observo, entretanto, que a leitura do artigo 4º, caput, faz crer que o legislador tenha se orientado para que as condições sejam cumpridas simultaneamente, no ato de entrega da declaração). Penso, de todo modo, que do veto presidencial não exsurgiu uma inconstitucionalidade insuperável: poderá perfeitamente o Supremo Tribunal Federal, quando questionado a respeito — pois o será —, dar uma interpretação conforme à Constituição ao artigo 1º, § 5º da lei, por meio da qual o vocábulo “condenados” deva ser lido como “(definitivamente) condenados”.

Por fim, é de se ver que a lei estabelece que a declaração formalizada no ato de adesão ao regime especial não poderá acarretar a instauração de investigação criminal ou mesmo apuração administrativa de natureza tributária ou cambial contra o aderente, conforme expressamente disposto no artigo 4º, § 12, I e II. Não se exige apresentar prova documental cabal da origem dos bens ou valores (a qual em muitos casos já se perdeu, ante o passar de décadas), bastando-se declará-la mediante o cumprimento dos requisitos formais; não se exclui, contudo, o risco de haver uma investigação sobre essa origem, desde que baseada em outros elementos que não a mera declaração — até porque seria vedado à lei subtrair dos órgãos de investigação as suas atribuições constitucionais. Cumpre, pois, que o aderente reúna o máximo possível de elementos comprobatórios acerca da origem dos bens ou valores e os apresente no momento em que efetuar a declaração.

Em conclusão, cabe salientar que a lei é bem vinda e consubstancia uma política benéfica para o país e para cidadãos. A pessoas físicas e jurídicas potencialmente interessadas, tende a ser recomendável a adesão, com a elementar ressalva de que cada caso concreto deverá ser analisado com as devidas cautelas em relação às suas potenciais implicações jurídicas — assim como, igualmente, caberá aos advogados permanecerem atentos às possibilidades de que haja alguma alteração no texto legal, bem como à sua futura regulamentação normativa e à interpretação que o Poder Judiciário lhes dará.

Autores

  • Brave

    é advogado, mestre e doutorando em direito penal pela USP, especialista em fraudes fiscais e lavagem de dinheiro pela Universidad de Castilla – La Mancha; pós-graduado em direito penal econômico e europeu pela Universidade de Coimbra.

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