Observatório Constitucional

Supremo como guardião da narrativa do romance em cadeia da operação "lava jato"

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23 de janeiro de 2016, 7h01

Recentemente, foram publicados vários balanços acerca da quantidade de operações deflagradas pela Polícia Federal no ano de 2015. Somando esses dados com os dos cinco últimos anos, chega-se a uma média de mais de 350 operações policiais a cada ano[1].

Apesar da grande quantidade de operações policiais, nenhuma delas chegou perto de ter a atração midiática que recai hoje sobre a operação “lava jato”. Dados recentes apontam que essa operação é, sem sombra de dúvidas, a mais citada pela imprensa no ano de 2015, produzindo 20 vezes mais artigos do que a segunda colocada, a operação zelotes[2].

Operações da PF mais citadas na internet em 2015

Operação

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Média diária

“Lava jato”

545.528

1.495

2.067.773

5.665

Zelotes

24.878

68

284.479

779

Acrônimo

12.734

35

28.862

79

Fonte: Bites

O sucesso midiático da operação “lava jato” decorre não apenas das imputações formuladas a políticos, empresários, bancos e companhias, mas, principalmente, da dinâmica adotada pelo Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba na condução das investigações. Em quase dois anos, já foram mais de 20 operações deflagradas, com 62 prisões preventivas decretadas e 80 condenações[3]. Essa velocidade no tratamento de demandas altamente complexas decorre, entre outros fatores, de uma característica singular do magistrado, qual seja, a sua metodologia na elaboração de decisões.

Analisando os seus atos decisórios, é possível perceber que eles possuem uma espinha dorsal um tanto quanto intocável, especialmente nos casos de decretação de prisão preventiva. Conhecedor da jurisprudência afeta à matéria, o magistrado da 13ª Vara Federal de Curitiba parece ter encontrado um método de redação de suas decisões que lhe permite apreciar questões demasiadamente complexas com celeridade.

No que atine especificamente às decisões que decretaram as prisões preventivas na operação “lava jato”, é curioso notar que praticamente todas possuem extensas narrativas acerca do modus operandi delitivo. Não se trata de uma mera exposição do fumus commissi delicti, como praticamente todos os magistrados costumam fazer, mas de verdadeira descrição pormenorizada e reiterada de documentos produzidos pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal. Ao passo que os órgãos investigativos produzem um sem-número de dados obtidos de maneira esparsa voltados a justificar a ocorrência de lesões ao bem jurídico, o magistrado replica essas informações nos atos decisórios.

A importância desse primeiro ingrediente na elaboração de decisões reside não apenas em tentar cumprir um dos pressupostos para a prisão preventiva requisito elencado no artigo 312 do Código de Processo Penal, como também em construir argumento extrajurídico forte para dificultar a reforma de sua decisão pelas instâncias superiores.

O próximo passo de seu método decisório consiste na vinculação do alvo da segregação cautelar às narrativas delitivas feitas na primeira parte da decisão. Muitas vezes, o nome do alvo da medida só é introduzido nesse excerto do ato decisório. Curiosamente, na decisão em que foi decretada a prisão preventiva de Marcelo Odebrecht e de Otávio Azevedo, o nome de ambos foi mencionado apenas após 19 e 21 páginas, respectivamente, de reproduções de narrativas feitas pelo Parquet e pela Polícia Federal. O cuidado nessa etapa da receita é bastante grande, tanto que, na referida decisão, são os nomes das empresas Andrade Gutierrez e Construtora Norberto Odebrecht que constam como acusadas, e não os daqueles que foram alvos da prisão cautelar.

Especialmente nas ocasiões em que os alvos da prisão preventiva têm relações com empresas investigadas por alegado repasse de propina a agentes públicos, o magistrado busca estabelecer vínculo entre o cargo ocupado na companhia e os atos ilícitos descritos. A narrativa desse vínculo qualificado pode vir de mensagens recebidas de diretores e gerentes da Petrobras, movimentações bancárias, declarações obtidas a partir de colaborações premiadas e de outras fontes. Nem mesmo uma confissão parcial, como a ocorrida no caso de Ricardo Hoffmann, antigo Diretor-Geral da Borghi Lowe, impediu o magistrado de associar o cargo ocupado pelo empresário como parte de sua técnica de decretação de prisões preventivas. A ideia padrão, nessa etapa que se repete ao longo dos distintos decretos, é apontar que o cenário de criminalidade, geralmente caracterizado a partir da replicação exaustiva do material produzido pelos órgãos investigativos, possui alguns causadores específicos, que seriam os alvos da prisão preventiva.

No derradeiro momento do método, que, em boa medida, é o responsável pelo chamariz midiático da operação “lava jato”, o magistrado consigna que os vários indícios delitivos apontados pelos órgãos investigativos e a associação existente entre eles e o acusado indicariam a ocorrência da lacônica “violação da ordem pública”. Dessa maneira, ao final de um procedimento que se repete, fica, na visão do magistrado, demonstrado o cabimento da prisão preventiva.

Contudo, apesar de a receita para decretação de prisões preventivas por parte do Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba ser sempre a mesma, os critérios utilizados pela Procuradoria Geral da República (PGR) para opinar acerca da legalidade das segregações cautelares não têm se mostrado lineares. A análise dos processos da operação “lava jato” mostra que casos idênticos, elaborados a partir do mesmo procedimento adotado pelo magistrado da 13ª Vara Federal de Curitiba, são apreciados pelo órgão ministerial de formas díspares.

Durante este recesso forense, o noticiário divulgou amplamente que Ricardo Hoffmann, que, assim como tantos outros representantes de empresas privadas, teve sua prisão preventiva decretada pelo Magistrado da 13ª Vara Federal de Curitiba, foi solto por decisão monocrática do ministro presidente do STF a partir de manifestação favorável da PGR. Nesse mesmo clipping de notícias, constava a informação de que Marcelo Odebrecht e Otávio Azevedo não obtiveram a mesma graça da PGR, razão pela qual, em um juízo preambular feito em regime plantonista pelo STF, foram mantidos cautelarmente segregados. É natural que as referidas decisões, proferidas pelo ministro Ricardo Lewandowski, tenham buscado amparo nas opiniões da PGR, já que o juízo exercido em regime de recesso é precário e o exame mais aprofundado do tema certamente virá por ocasião do julgamento por parte da 2ª Turma do STF.

Contudo, a análise das imputações que justificariam a prisão preventiva de Marcelo Odebrecht, Otávio Azevedo e Ricardo Hoffmann revela que não é possível verificar qualquer diferença substancial entre os casos a ponto de ocasionar radical disparidade de tratamento entre eles por parte da PGR.

No decreto prisional de Ricardo Hoffmann, foi apontado que “os valores pagos pela Borghierh Lowe (sic), por intermédio dos prestadores de serviços, a André Vargas, consistiram em propina paga pela agência de publicidade a André Vargas por contratos com a Administração Pública Federal”. Assim, o primeiro ingrediente da decisão que decretou a prisão preventiva de Ricardo Hoffmann foi a exposição de ocasiões em que a empresa, que era por ele controlada – segunda etapa do método científico –, teria realizado o pagamento de propina por meio de sua agência de publicidade.

De modo similar, nas primeiras 33 páginas dos decretos prisionais de Marcelo Odebrecht e Otávio Azevedo, foi realizada a descrição do modo como as empresas por eles administradas alegadamente realizariam o pagamento de vantagens ilícitas a agentes públicos. Seguindo o seu método decisório, o qual também foi minuciosamente observado no caso de Hoffmann, o magistrado da 13ª Vara Federal de Curitiba apontou que haveria “prova suficiente do pagamento de propina pela Odebrecht a dirigentes da Petrobras” e que “pelas provas até o momento colhidas, a Andrade Gutierrez pagaria propina aos dirigentes da Petrobras”. Na segunda etapa de sua receita, o magistrado apontou que, considerando “o valor milionário das propinas pagas aos dirigentes da Petrobrás, parece inviável que ele fosse desconhecido dos Presidentes das duas empreiteiras, Marcelo Bahia Odebrecht e Otávio Marques Azevedo”.

Fica claro, assim, que não há qualquer diferença substancial entre as circunstâncias fáticas e jurídicas retratadas nos casos Hoffmann, Odebrecht e Azevedo aptas a justificar uma manifestação favorável da PGR à soltura daquele, e não destes. Isso fica ainda mais evidente quando se constata que todos os três abandonaram seus cargos diretivos nas companhias que dirigiam após a decretação da prisão preventiva.

É exatamente em contextos como o narrado acima que cabe ao STF corrigir o desvio opinativo da PGR e julgar os casos com base em argumentos de princípio, com o escopo de conferir integridade ao direito que vem sendo aplicado à operação “lava jato”. A esse respeito, é importante rememorar a lição dworkiniana que aponta a importância de que os magistrados internalizem a consciência histórica das decisões já proferidas antes da exteriorização de sua posição em um caso concreto. Diz Dworkin que os juízes devem agir como se estivessem construindo um romance em cadeia escrito a várias mãos, no qual “cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante”[4], tentando, sempre, “criar o melhor romance possível como se fosse obra de um único autor, e não (…) como produto de muitas mãos diferentes”[5]. Desse modo, antes de expor a sua opinião em um caso concreto, os magistrados devem verificar as possibilidades de criação que o romance já escrito lhe confere, de modo a adequar o seu posicionamento à narrativa já construída[6], garantindo, assim, a integridade do direito.

A falta de consciência histórica da PGR e a carência de dever de conferir integridade ao direito são ressaltadas quando se apura que os Habeas Corpus impetrados perante o STF em favor de Ricardo Hoffmann, Marcelo Odebrecht e Otávio Azevedo impugnavam acórdãos da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que possuíam o mesmo fundamento. Em todos os acórdãos objurgados[7], a prisão preventiva havia sido mantida em razão da alegada necessidade de garantir a ordem pública, na linha do que trilha o método decisório do Magistrado da 13ª Vara Federal de Curitiba.

Ainda que a aparente tentativa da PGR de turbar a escrita coerente do romance em cadeia pelo STF tenha logrado momentâneo êxito durante este recesso judiciário, é de se notar que, cada vez mais, a 2ª Turma da Suprema Corte tem endossado, de forma coerente, os precedentes já fixados ao longo da operação. Quando apreciado o Habeas Corpus 127.186[8], impetrado pela defesa de Ricardo Pessoa, a 2ª Turma do STF fixou, especialmente no âmbito da operação “lava jato”, balizas para a validade do decreto prisional preventivo de diretores de empresas privadas acusados de estarem envolvidos com o pagamento de vantagens ilícitas a servidores públicos.

O julgamento desse writ culminou não apenas na revogação da prisão do ex-diretor da UTC Engenharia, Ricardo Pessoa, como também de Agenor Franklin Medeiros, diretor OAS; Erton Medeiros Fonseca, diretor da Galvão Engenharia; João Ricardo Auler, presidente do Conselho de Administração da Camargo Corrêa; Sérgio Cunha Mendes, vice-presidente executivo da Mendes Júnior; Gerson Almada, vice-presidente da empreiteira Engevix; e José Aldemário Pinheiro Filho, presidente da OAS.

Os argumentos utilizados para reverter as decisões do magistrado da 13ª Vara Federal de Curitiba em todos esses casos foram (i) o de que o encerramento da instrução criminal esvazia a necessidade da prisão preventiva para assegurar a produção probatória, (ii) a posse de numerário no exterior não justifica a segregação cautelar com fulcro na necessidade de aplicação da lei penal e (iii) a reiteração delitiva não é presumível a partir da gravidade em concreto das condutas[9].

Esses alicerces argumentativos ajudam a entender a razão de a PGR ter opinado favoravelmente à soltura de Ricardo Hoffmann no plantão judiciário, mas tornam incompreensível a sua postura de solicitar a manutenção da medida cautelar extrema contra Marcelo Odebrecht e Otávio Azevedo.

Em termos de narrativa do romance em cadeia, o precedente firmado no caso do Habeas Corpus 127.186 foi reforçado com o pedido de extensão de vários acusados e recentemente endossado no writ que ensejou a soltura de Adir Assad[10]. Todavia, nos casos de Otávio Azevedo e Marcelo Odebrecht, a continuação da escrita do romance pelo STF sofre uma tentativa de intervenção inadequada da PGR, cabendo à 2ª Turma decidir entre reafirmar o standard já fixado ou romper com a integridade do direito.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Informação disponível no Blog de Fernando Rodrigues neste link. Acessado em 21/1/2016.
[2] Informação disponível no Blog de Fernando Rodrigues neste link. Acessado em 20/1/2016.
[3] Informação disponível neste link. Acessado em 20.01.2016.
[4] DWORKIN, Ronald. O império do Direito. – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 276.
[5] DWORKIN, Ronald. O império do Direito. – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 276.
[6] DWORKIN, Ronald. O império do Direito. – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 277.
[7] Os Habeas Corpus impetrados em favor de Ricardo Hoffmann, Marcelo Odebrecht e Otávio Azevedo foram tombados no STJ sob os seguintes números, respectivamente: 331.829, 339.037 e 332.586.
[8] A íntegra do acórdão está disponível aqui.
[9] Frise-se que não estamos afirmando que o julgamento do habeas corpus nº 127.186 pela 2ª Turma do STF é imune a críticas. Inclusive, nós já questionamos diversos pontos do acórdão nesta coluna.
[10] Trata-se do Habeas Corpus 130.636, cuja ordem foi concedida em 15/12/2015.

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