Opinião

Código de Trânsito atinge a maioridade com velhos problemas e novas perspectivas

Autor

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

22 de janeiro de 2016, 5h29

Ao atingir a maioridade nesta sexta-feira (22/1), o Código de Trânsito Brasileiro carrega consigo velhas discussões e novas perspectivas. Dezoito anos se passaram desde a entrada em vigor do CTB, lapso temporal insuficiente para eliminar as polêmicas que gravitam em torno da norma.

A Lei 9.503/97 nasceu para nortear o trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres em condições seguras (artigo 1º do CTB), desiderato em consonância com o mandamento constitucional que tutela a segurança dos cidadãos (artigo 5º da CF), a qual abrange a incolumidade pública no trânsito. O propósito legislativo é louvável, especialmente ao se constatar que os acidentes de trânsito configuram hodiernamente uma das principais causas de morte no Brasil, verdadeira epidemia que mata mais de 35 mil pessoas por ano no trânsito do país[1].

Desde então, ocorreram diversas mudanças legislativas que, ao tentar adequar a resposta estatal aos anseios e reclames da sociedade, foram marcadas por uma série de falhas. Os equívocos supervenientes talvez decorram justamente dessa ânsia desenfreada do legislador em pretender combater o crime por meio da criação de leis. Nada obstante o Código de Trânsito Brasileiro não hospedar normas exclusivamente penais, vejamos as principais alterações e polêmicas acerca dos crimes de trânsito.

Originariamente, o CTB possibilitava a aplicação dos institutos despenalizadores da composição civil e transação penal não só para a lesão corporal culposa (artigo 303), mas também aos crimes de embriaguez ao volante (artigo 306) e racha (artigo 308), benesse essa revogada pela Lei 11.705/08. A lei modificadora passou a admitir a aplicação dos artigos 74 e 75 da Lei 9.099/95 (bem como o artigo 88, que exige representação da vítima) somente ao delito de lesão corporal culposa, e desde que o condutor não esteja sob influência de álcool ou outra droga, não participando de racha nem em excesso de velocidade. Nessas situações, deve ser instaurado inquérito policial (e não termo circunstanciado de ocorrência), admitindo-se a prisão em flagrante, ressalvada a hipótese do artigo 301 do Código de Trânsito Brasileiro.

Por falar em Juizado Especial Criminal, vale lembrar que os delitos de trânsito configuram, em sua esmagadora maioria[2], infrações penais de menor potencial ofensivo, porquanto a pena máxima não ultrapassa o patamar de dois anos, conforme se depreende do artigo 61 da Lei 9.099/95.

A Lei 11.705/08 também alterou o artigo 296, espancando qualquer dúvida sobre a obrigatoriedade de aplicação, ao réu reincidente na prática de crime de trânsito, da penalidade de suspensão da permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor.

A mesma lei promoveu, ainda, a primeira mudança no delito de embriaguez ao volante. A infração penal estampada no artigo 306 passou a exigir determinada concentração mínima de álcool no organismo, a pretexto reduzir a tolerância aos condutores alcoolizados, razão pela qual foi chamada de “Lei Seca”. Em vez de tornar mais eficaz a repressão, acabou gerando impunidade, face à combinação entre restrição da prova da materialidade do crime (somente exame de etilômetro ou sanguíneo) e a garantia da inexigibilidade de autoincriminação (nemo tenetur se detegere)[3].

O equívoco foi posteriormente corrigido pela Lei 12.760/12, também apelidada de “Lei Seca”, que passou a demandar no tipo penal apenas a alteração da capacidade psicomotora, ampliando a possibilidade probatória, que agora transcende o exame do bafômetro ou de sangue para englobar o exame clínico, de vídeo e prova testemunhal[4].

O crime de embriaguez ao volante, aliás, é um dos delitos sobre cuja classificação (crime de perigo concreto ou de perigo abstrato) repousa certa polêmica. E, como se sabe, a regra geral para delitos que acarretam dano potencial é de que ficam absorvidos quando ocorrer lesão efetiva, em razão da incidência do princípio da consunção[5].

De outro vértice, o perdão judicial albergado no artigo 300 do CTB foi suprimido, não por ulterior alteração legislativa, mas por veto presidencial. Contudo, como o fundamento consistiu no fato de o Código Penal (artigo 121, parágrafo 5º e artigo 129, parágrafo 8º) disciplinar o tema de forma mais abrangente, prevaleceu a possibilidade de sua aplicação também aos delitos da lei especial[6].

A Lei 12.971/14, que trouxe as últimas alterações (já que as leis 13.103/15 e 13.160/15 não interferem nos dispositivos criminais), alterou simultaneamente os delitos de homicídio culposo, lesão corporal culposa e racha, ensejando ainda mais controvérsias[7].

No tocante ao delito de homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor, inexistiu modificação na figura simples (artigo 302, caput). As causas de aumento de pena tampouco foram alteradas, tendo sido deslocadas do antigo parágrafo único para o parágrafo 1º. Com isso, foi aberto espaço para a qualificadora do parágrafo 2º, cuja precária redação compreende os casos em que o condutor mata alguém culposamente por estar embriagado ou sob efeito de outra droga, ou participando de racha.

A disposição topográfica das majorantes em relação à qualificadora recebeu críticas doutrinárias por supostamente impedir a existência da figura majorada qualificada[8], em que pese entendimento diverso da jurisprudência em discussão semelhante quanto ao crime de furto circunstanciado qualificado (artigo 155, parágrafos 1º e 4º do CP)[9].

Pois bem. O condutor homicida que se encontra sob efeito de álcool ou outra substância entorpecente, ou que esteja disputando pega, de fato merece uma reprimenda mais severa em razão do elevado desvalor de sua conduta e do resultado gerado, desprezando a necessidade de um mínimo de segurança viária e ignorando a exigência de paz no trânsito. Todavia, em vez de estabelecer um patamar de pena superior ao crime em sua forma simples (de 2 a 4 anos), o legislador limitou-se a alterar a modalidade de pena privativa de liberdade de detenção para reclusão, em situação totalmente sui generis.

Apenar o homicídio culposo de trânsito qualificado com a mesma sanção penal da modalidade simples fere as mais comezinhas regras de bom senso, chegando a configurar violação ao postulado da proporcionalidade, em seu aspecto de proibição de proteção deficiente[10]. Como se sabe, a teor do artigo 33 do CP, a diferença entre a detenção e reclusão limita-se à determinação do regime inicial do cumprimento de pena. Esse detalhe perde relevância ao considerarmos que o condenado não reincidente cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos poderá desde o início cumpri-la em regime aberto (artigo 33, parágrafo 2º, c do CP). Ademais, a previsão de pena de reclusão não impede que o juiz promova a substituição por penas restritivas de direitos, que pode ocorrer independentemente da quantidade da pena nos crimes culposos (artigo 44, I, do CP).

Vozes surgiram no sentido de que o parágrafo 2º do artigo 302 teria afastado a aplicação do dolo eventual e permitido a revisão criminal daqueles condenados por homicídio com dolo alternativo[11], posição que não encontrou amparo na corte suprema[12].  

Outra decisão não se esperava do tribunal constitucional, porquanto não se pode apartar ex lege a possibilidade de o julgador decidir pela culpa consciente ou dolo eventual com fulcro nas circunstâncias objetivas do caso concreto (ante a impossibilidade de penetrar-se na mente do agente). Talvez o estabelecimento de uma sanção penal intermediária para o homicida de trânsito que ignora as regras de conduta, pela embriaguez ou de outra forma acintosa, resolva de uma vez por todas essa infindável discussão.

Além isso, essa qualificadora decorrente de o condutor se apresentar embriagado ou sob efeito de outra droga acarreta reflexos na discussão acerca do concurso de crimes entre homicídio culposo de trânsito (artigo 302) e embriaguez ao volante (artigo 306).

Antes dessa alteração legislativa, a conduta do motorista ébrio que causava morte culposa poderia ser encaixada no concurso material ou formal entre homicídio culposo de trânsito e embriaguez ao volante. Essa possibilidade foi aberta quando a Lei 11.705/08 revogou a majorante de homicídio praticado por condutor embriagado (artigo 302, parágrafo 1º, V), permitindo o concurso de crimes ante a inexistência de causa de aumento de pena específica. Entretanto, parcela considerável da doutrina e jurisprudência repelia o concurso de crimes, em razão da absorção do crime de perigo pelo crime de dano. Segundo esse entendimento, em razão do princípio da subsidiariedade, não se admite a punição de crime de perigo, existente para evitar a concretização do delito de dano, quando o dano já se efetivou[13].

A contenda perdeu força quando novamente o legislador tornou inviável a incidência do concurso de crimes, uma vez que a embriaguez qualifica o delito de homicídio culposo de trânsito e impede a incidência de concurso de crimes entre os artigos 302 e 306 do CTB, sob pena de bis in idem.

A Lei 12.971/14 prosseguiu com mudanças ao alterar o tipo objetivo estampado no artigo 308 do Código de Trânsito Brasileiro. O crime consiste em participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente. A lei penal continua exigindo que o condutor, ao participar de racha, gere perigo à coletividade, rebaixando o nível da segurança viária, pois as expressões “dano potencial” e “situação de risco” possuem o mesmo valor semântico. A corrente majoritária[14], seguida pelas cortes superiores[15], segue esse entendimento de que o artigo 308 traduz crime de perigo concreto, exigindo a demonstração da potencialidade lesiva.

Em adição, houve a majoração da pena em abstrato máxima da figura simples do racha, que saltou de 2 para 3 anos. Isso significa dizer que o crime de racha não mais se enquadra como infração de menor potencial ofensivo (artigo 61 da Lei 9.099/95),

Ainda no artigo 308, ocorreu a inclusão duas modalidades qualificadas de racha, consistentes em situações nas quais ocorre o resultado lesão corporal grave ou morte.

No que se refere à primeira qualificadora (racha seguido de lesão corporal grave), há quem defenda que o dispositivo é inaplicável, devendo incidir a lesão corporal culposa (artigo 303), em razão do princípio da proporcionalidade. Isso porque o racha seguido de lesão corporal grave atingiria pena mais grave (de 3 a 6 anos) do que o próprio homicídio culposo qualificado pelo racha (de 2 a 4 anos).

Quanto ao racha seguido de morte, outro problema surge quanto cotejado com o homicídio culposo qualificado (artigo 302, parágrafo 2º). A dificuldade aparece porque ambas as qualificadoras tratam da mesma situação fática, qual seja, racha doloso gerador de morte culposa. A bizarrice de o legislador ter catalogado duplamente o mesmo fato, com consequências jurídicas distintas, fez nascer uma antinomia no sistema.

Assim, a participação dolosa em disputa não autorizada pode caracterizar, em tese, tanto o racha qualificado (artigo 308, parágrafo 2º), com pena de reclusão de 5 a 10 anos, quanto o homicídio culposo qualificado (artigo 302, parágrafo 2º), com pena de reclusão de 2 a 4 anos. Cuida-se de situação teratológica de conflito aparente de leis penais dentro do mesmo documento legal.

Outras polêmicas exsurgem da Lei 9.503/97, ainda que não exclusivamente por inabilidade do legislador, podendo ser citadas a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato[16], a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância[17], a constitucionalidade do delito de fuga do local do acidente (artigo 305) quando confrontada com o privilégio contra a autoincriminação[18], a derrogação da contravenção penal do artigo 32 da LCP[19] e a configuração do crime do artigo 310 independentemente de perigo de dano[20].

Parece certo que a lei, quando mal elaborada e editada sob o falacioso pretexto de diminuir os índices de criminalidade e amenizar a guerra no trânsito, tem todo o potencial para gerar efeito contrário.

Não se discute a nobre intenção do legislador de manter determinado nível de segurança no trânsito, municiando o operador do Direito que lida com a persecução penal, a exemplo do delegado de polícia, do promotor de Justiça e do juiz de Direito, de instrumentos hábeis a preservar os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal.

No entanto, as alterações da parte criminal do Código de Trânsito Brasileiro pelo legislador têm se revelado, com o perdão do trocadilho, verdadeira barbeiragem que, na contramão das expectativas da população, não permite aos juristas traçar uma rota segura na interpretação dos dispositivos. Parece que o aniversário da Lei 9.503/97 não é motivo de tantas comemorações.


[1] Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Ano 8. 2014. Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
[2] À exceção dos crimes de homicídio culposo (artigo 302, caput e parágrafos 1º e 2º), lesão corporal culposa majorada (artigo 303, parágrafo único), embriaguez ao volante (artigo 306) e racha (artigo 308, caput e parágrafos 1º e 2º).
[3] STJ, REsp 1.111.566, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DP 04/09/2012.
[4] STJ, RHC 51.528, Rel. Min. Jorge Mussi, DP 13/11/2014.
[5] STF, HC 80.303, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 26/09/2000.
[6] STJ, HC 21.442, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DP 09/12/2002.
[7] Para uma análise mais completa, conferir: CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Influxos da Lei 12.971/14 nos delitos de homicídio culposo de trânsito, embriaguez ao volante e disputa automobilística não autorizada. Revista Ciências e Humanidades, Apucarana, v. 5, n. 2, p. 45-71, 2014.
[8] GRECO, Rogério. Os absurdos da Lei nº 12.971, de 9 de maio de 2014. 2014. Disponível em: <http://www.impetus.com.br/artigo/786/os-absurdos-da-lei-n-12971-de-9-de-maio-de-2014>. Acesso em: 17 out. 2014.
[9] STJ, HC 306.450, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DP 17/12/2014.
[10] FELDENS, Luciano. Deveres de proteção penal na perspectiva dos tribunais internacionais de direitos humanos. Direitos fundamentais e Justiça, n. 1, out./dez. 2007, p. 222.
[11] GRECO, Rogério. Os absurdos da Lei 12.971, de 9 de maio de 2014. 2014. Disponível em: <http://www.impetus.com.br/artigo/786/os-absurdos-da-lei-n-12971-de-9-de-maio-de-2014>. Acesso em: 17 out. 2014.
[12] STF, HC 127.774, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 01/12/2015.
[13] Por todos: NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 1253.
[14] Representando a maioria: PIRES, Ariosvaldo de Campos, SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de Trânsito na Lei 9.503/97. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 234.
[15] STF, HC 101698, Rel. Min. Luiz Fux, DP 30/11/2011; STJ, Resp 585.345, Rel. Min. Felix Fischer, DJU 16/02/2004.
[16] STF, HC 108.227, Rel. Min. Luiz Fuz, DJ 26/03/2013; STF, ADI 4.103, Rel. Min. Luiz Fux, pendente de julgamento.
[17] STF, HC 70.747, Rel. Min. Francisco Resek, DP 07/06/1996.
[18] STF, ADC 35, Rel. Min. Marco Aurélio, pendente de julgamento.
[19] STF, RE 319.556, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DP 12/04/2002.
[20] STJ, REsp 1.485.830, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJ 11/03/2015.

Autores

  • Brave

    é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!