Opinião

Taxa sobre petróleo contém diversas inconstitucionalidades

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21 de janeiro de 2016, 15h12

Dias atrás, ao tratarmos da criação do ICMS sobre a extração de petróleo no Rio de Janeiro (leia aqui), comentamos que havia sido nosso sócio Jorge Alex Athias quem comentou que a Nota Fiscal deveria ser emitida por Deus, pois foi Ele quem colocou os minérios e o petróleo onde estão. Logo, só Ele poderia emitir esse documento fiscal. É necessário fazer uma correção histórica, muito bem observada por Jorge Alex. Isso foi dito originalmente por Valéria Barcelos, então advogada da Vale, e hoje nossa sócia, coordenando a unidade do Rio de Janeiro, em uma discussão muito antiga, quando o Estado do Pará pretendeu criar uma incidência semelhante, sobre a extração de minério de ferro. Bastou o comentário para que a ideia arrecadatória fosse descartada de plano. 

Ocorre que a “sanha arrecadatória” do(s) estado(s) brasileiro(s) não tem limites. No mesmo “pacote fiscal” trazido pelo Estado do Rio de Janeiro, promulgou-se também a Lei 7.182, que cria a Taxa de Controle, Monitoramento e Fiscalização Ambiental das Atividades de Pesquisa, Lavra, Exploração e Produção de Petróleo e Gás (TFPG).

Referida Taxa, vê-se pela redação de sua lei instituidora, é um híbrido.

Parece-se muito (nas atividades que estaria financiando, na base de cálculo e na previsão de arrecadação manifestamente desproporcional à finalidade) com as Taxas de Fiscalização de Recursos Minerais (TFRM) criadas pelos estados de Minas Gerais, Pará e Amapá, todas impugnadas pela Confederação Nacional de Indústria e que aguardam análise pelo Supremo Tribunal Federal (respectivamente: ADIs 4.785, 4.786 e 4.787; relatores ministros Edson Fachin, Celso de Mello e Luiz Fux).

Delas difere fundamentalmente em sua justificação, buscando amparo constitucional. Enquanto aquelas se fundavam no opaco inciso XI do artigo 23 da CF/88 (que, afinal, parece contrariar outros dispositivos constitucionais que colocam o dever de gerir a atividade minerária na União, mais indicando ser regra que admite a fiscalização dos Estados sobre as concessões e não sobre os concessionários), esta TFPG busca amparo no direito ambiental, fundada no inciso VI do mesmo artigo 23, regulamentado pela Lei Complementar 140 (regulamento este exigido pelo parágrafo primeiro do artigo 23).

Logo, conquanto no caso das Taxas Minerárias (TFRMs) é deveras duvidosa a competência estadual para fiscalizar a atividade de exploração mineral, no caso da TFPG é sugerida como sendo de sua competência a fiscalização ambiental estadual.

Daí também que a Lei 7.182, em atenção ao artigo 17-P da Lei federal 6.938/1981, permite que o valor pago de TFPG seja parcialmente compensado com o valor a pagar da TCFA exigida pela União.

Nada ilegal ou inconstitucional até aí. Outras características da norma, contudo, são claramente transgressoras do ordenamento.

Veja-se a base de cálculo: a quantidade de barris de petróleo (ou unidades de gás) extraído. Isto significa que quanto maior for o número de barris extraídos, maior será o valor a pagar (alíquota fixa). A pergunta que se deve fazer é: sendo a Taxa um tributo baseado na ideia de equivalência (entre o valor suportado pelo contribuinte e a atividade desenvolvida pelo Estado, no caso a de fiscalização), há uma correlação direta entre uma grandeza e outra? A resposta é claramente negativa.

Fiscalizar o cumprimento das normas de cunho ambiental não é atividade que se torna mais dispendiosa com o maior número de barris extraídos. Se a empresa X extrai 10 mil barris em um mês e a empresa Y extrai 20 mil, isto significa dizer que o Estado gastará duas vezes mais fiscalizando Y do que fiscalizando X? É claro que não. Justamente porque o objeto da fiscalização é: a observância da legislação ambiental. E nesse desiderato não há correlação direta entre uma coisa e outra.

Isto até poderia ser verdadeiro em outra escala: seria razoável afirmar que o Estado gastará mais fiscalizando o cumprimento das normas ambientais por uma empresa que produz 800 mil barris/mês do que fiscalizando outra, que produz 10 mil barris/mês. Há modos de regulação possíveis para que tal crescimento seja acompanhado. Mas é simplesmente extravagante argumentar que cada barril extraído seja acrescido R$ 2,71 no custo que o Estado arcará com a atividade fiscalizatória.

Note-se que tal base imponível é muito diferente daquela trazida pela TCFA estadual do próprio Estado do Rio de Janeiro (Lei 5.438/2009) que, seguindo a norma federal (Lei 6.938/1981, com alterações), considera, para alcançar o valor a recolher, (i) o potencial poluidor da atividade e seu grau de utilização dos recursos naturais, em conjunto com o (ii) porte da empresa. Nesse caso, há efetivamente uma busca por critérios razoáveis de equivalência entre o valor a pagar e o custo (ainda que estimado, aproximado, razoavelmente suposto) da fiscalização. O STF já teve a oportunidade de afirmar a constitucionalidade desses critérios[i], após ter rejeitado a feição anterior da Taxa federal, que tinha valores uniformes por classe de contribuintes[ii].

A inadequação da base de cálculo se torna mais eloquente quando observada sob outro prisma: o do total arrecadado (hoje, tão somente previsto) em comparação com o que se prevê gastar para o exercício da fiscalização. Reitere-se: em se tratando de Taxa (e não Imposto), sua matriz constitucional permite apenas o uso do tributo como maneira de custear uma atividade realizada pelo Estado em prol especificamente de um determinado contribuinte e cuja fruição por ele seja divisível. Fala-se que a pretensão é de arrecadar, com a TFPG, algo em torno de R$ 1,8 bilhão.

No exercício de 2014, o Instituto Estadual do Ambiental do Rio de Janeiro (Inea), em todas as suas atribuições, gastou R$ 415 milhões[iii]. Isso importa dizer que apenas para a atividade de fiscalização (dentre todas as desenvolvidas pelo Inea) e apenas em relação à atividade de exploração de petróleo (dentre todos os setores produtivos), a Taxa financiaria, em um ano, mais de quatro anos de trabalho de todo o mencionado órgão.

No exercício de 2014, a arrecadação total da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental do Estado do Rio de Janeiro foi de R$ 6,4 milhões[iv]. Isso significa que em 2014 todos os setores produtivos do Estado foram fiscalizados, para fins ambientais, com o custo de R$ 6,4 milhões. E ainda assim quer-se arrecadar com a TFPG o valor de R$ 1,8 bilhão. É dizer: em 2014 todas as atividades, inclusive a petrolífera, foram fiscalizadas com o custo de apenas 0,355% do que se espera receber nesta Taxa — que, repita-se, deve apenas remunerar o custo da fiscalização ambiental da atividade de exploração de petróleo.

Essas comparações conduzem a uma conclusão óbvia: a afirmação de que a TFPG se presta a financiar a atividade estatal de fiscalização ambiental é tão somente retórica. Sequer é de boa retórica. É flagrante a dissociação entre o que anuncia como fundamento e o que propõe como tributação. Representa o Estado contando uma inverdade aos seus cidadãos[v]. É de suscitar ser este caso, como apreciado pelo STF na ADI 2.178/MC, não de taxar pelo serviço prestado pelo Estado, mas sim de taxar a atividade desenvolvida pelo particular, o que não é juridicamente admissível nessa figura.

Não fosse suficiente, bastaria olhar o teor do artigo 2º da Lei instituidora da TFPG. A norma afirma que o poder de polícia estatal (fiscalização ambiental) será exercido mediante uma série de “ações específicas”. Mas tais “ações específicas”, lá enumeradas, são (1) apresentadas em platitudes, com termos genéricos e sem sentido real — é o caso dos incisos IV, V e VII; ou (2) são ações que contradizem totalmente sua premissa porque pura e simplesmente não são ações de “fiscalização ambiental” — caso dos incisos I (que quer regulamentar ações setoriais de utilização do petróleo), II (que quer fiscalizar as outorgas estatais oriundas da ANP, e não a relação do concessionário com o ambiente), III (que quer fiscalizar a exploração em si, e não a relação do concessionário com o ambiente), VI (que quer identificar os recursos naturais, e não fiscalizar a ação ambiental do concessionário, ademais violando totalmente os critérios de divisibilidade e especificidade exigidos pela espécie Taxa) e VIII (que quer promover políticas públicas socioambientais, o que é totalmente diferente de fiscalizar, além de ser tarefa da receita de impostos, violando totalmente os critérios de divisibilidade e especificidade exigidos pela espécie Taxa).

Finalmente, vale observar que a TFPG sofre de séria crise de isonomia. Através da Lei 7.182, a atividade de exploração petrolífera é apartada de toda e qualquer atividade econômica do Rio de Janeiro quanto à fiscalização ambiental. É dizer: todas as demais atividades pagarão TCFA. Apenas esta estará sujeita à TFPG. Questiona-se: há uma razão juridicamente relevante para este discrímen? Há razão para que se estabeleça uma taxação de exceção?

Não nos parece que assim seja. Para os fins almejados (proteção do meio ambiente; verificação de que os particulares estão obedecendo ao regramento ambiental), a atividade petrolífera é uma atividade particular como outra qualquer. Mesmo que seja considerada uma atividade especialmente passível de poluição, para isso a Taxa Ambiental Estadual, assim como a Federal, já tem resposta: indicar seu “potencial poluidor / grau de utilização” em nível alto e assim fazer com que recolha mais naquela Taxa já preexistente. Isto pode ocorrer (aliás, já ocorria). Mas ainda assim mantendo tal setor econômico dentro dos mesmos padrões das demais atividades. Não há razão qualquer para que este único setor econômico seja arbitrariamente separado dos demais. Não, ao menos, quando o fim é este: fiscalizar o cumprimento da legislação ambiental.

O fim que se quer atingir (melhor proteger o meio ambiente) não tem relação de pertinência com o discrímen eleito (setor produtivo, ou melhor: o setor petrolífero como distinto de todos os demais). A diferenciação é arbitrária. E sendo assim, a norma não respeita a isonomia.

Cabem ainda três breves observações:

Primeira. Como se procurou demonstrar, a exação não perfaz o tipo constitucional da espécie Taxa. Quer, isto sim, gerar receita desvinculada. E para isso se utilizam os impostos. Quando o Estado do Rio de Janeiro se vale de Taxa frustrando indevidamente a receita de Imposto, macula também os direitos e interesses dos Municípios: os Impostos seriam partilhados; as Taxas não serão.

Segunda. A conduta equívoca de se utilizar indevidamente da espécie Taxa não deve ter seu potencial nocivo subestimado. Se aceitas as premissas de criação da TFPG, também cada um dos municípios brasileiros (todos que participam da competência comum de fiscalizar o meio ambiente) poderá criar sua própria Taxa, fixando sua base de cálculo, estabelecendo seu discrímen. Em última instância, o sistema tributário já caótico se torna absolutamente insuportável, não só em termos de quantidade de tributo a pagar, mas em termos de segurança jurídica (são cerca de 5,5 mil municípios). A guerra fiscal ganhará novos contornos e o pacto federativo se fragilizará ainda mais, à custa das já sufocadas empresas, em especial, nos dias que correm, as do setor de extração de petróleo. Aliás, isso foi apontado desde 2012 com referência a três setores estratégicos: Mineração, petróleo e energia (leia aqui).

Terceira. Antes que se tente justificar exações juridicamente esdrúxulas com base em argumentos que apontem a queda recente da arrecadação dos Estados que sediam grandes empreendimentos petrolíferos, deve-se lembrar que a volatilidade dos preços é característica básica desse tipo de atividade. Esses Estados sabiam, ou deveriam saber, que os dias de alta não são eternos; que quedas fortes são frequentes e até esperadas. Deve-se lembrar também que por essa e outras razões (como a característica básica de não renovabilidade de tais recursos naturais) há mais de 20 anos estudiosos das receitas públicas decorrentes de recursos naturais não renováveis vêm recomendando prudência no uso de tais rendas públicas, especialmente indicando a necessidade de investimentos em diversificação produtiva (v. ampla literatura sobre a “a maldição dos recursos naturais” e sobre a “doença holandesa”). Será que os Estados que tem receitas decorrentes da exploração de recursos naturais não renováveis prestaram atenção a tais fatores?

A TFPG certamente enfrentará questionamentos sobre sua constitucionalidade, e existem fortes chances de ser derrubada pelo Judiciário.


[i] RE nº 416.601, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 10/08/2005.

[ii] ADI 2.178/MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 29/03/2000.

[v] Já tivemos a oportunidade de observar fenômeno similar no caso das TFRMs. Em: SCAFF, Fernando Facury; SILVEIRA, Alexandre Coutinho da. Taxas de fiscalização sobre a exploração de recursos minerais. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 210, mar. 2013.

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