Opinião

A metade do X da vida e o Código Penal proposto pelo senador Sarney

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20 de janeiro de 2016, 7h59

Uma história que se passa no Oriente, narrada por Malba Tahan em seu primoroso O Homem que Calculava,[1] conta quando o protagonista, Beremiz Samir, foi chamado por um vizir a resolver um difícil problema matemático.

Na cidade de Bagdá, um incêndio havia tomado parte de uma prisão, causando intenso sofrimento aos presos. O califa soberano, diante de tanta dor e padecimento, decidiu reduzir à metade a pena de todos os condenados.

O comando estava sendo cumprido rigorosamente e todas as penas foram recalculadas. No entanto, havia entre os encarcerados um contrabandista, chamado Sanadique, preso há 4 anos e condenado à prisão perpétua.

O vizir, diante desta situação, não sabia como calcular a metade da pena do condenado pelo simples motivo de que não sabia o quanto ainda de vida o condenado teria pela frente. Se X fosse o período restante de vida, como calcular a metade do X da vida, ou a metade de uma prisão perpétua? Este foi o desafio levado ao calculista.

Essa passagem do livro é narrada em mais de um capítulo e não iremos trazer outros problemas matemáticos e passagens ricas deste trecho, como a delicadeza da descrição da visita à cela do preso nos subterrâneos da enxovia, mas fiquemos aqui com a fórmula empregada por Beremiz para decifrar o enigma proposto pelo vizir.

Algumas premissas foram estabelecidas: ao dividir-se o tempo X em vários períodos, importa dizer que a cada período de prisão deveria corresponder período igual de liberdade. Se já esteve preso há 4 anos, é certo que deverá ficar em liberdade por mais 4 anos, independentemente do valor de X (ou do tempo de vida que o Destino lhe reservara).

Passados os 4 anos, poderia ficar um ano preso, e um ano solto, repetidamente. Mas essa solução de conceder-lhe a liberdade, para depois prendê-lo novamente, só estaria certa se o condenado viesse a morrer no último dia de um de seus períodos de liberdade. Caso contrário, a determinação do soberano não seria cumprida: sua pena não seria reduzida à metade.

A fim de reduzir a margem de erro, o calculista chega a pensar em soluções semelhantes, como a alternância entre prisão e liberdade a cada mês, e mesmo a cada dia. Um dia preso, um dia em liberdade. E mesmo a cada hora. Mas ainda assim, matematicamente, essas soluções seriam falhas. Daria certo apenas se o condenado morresse no último minuto de uma hora de liberdade.

Assim, Beremiz expõe que a solução matematicamente correta seria prender o contrabandista durante um instante de tempo e soltá-lo no instante seguinte, sendo o tempo de prisão (o instante) infinitamente pequeno e, portanto, indivisível; o mesmo ocorrendo com o instante de liberdade.

Diante dessa impossibilidade de agir nessas frações infinitas de tempo, o matemático propõe que se coloque o contrabandista Sanadique em liberdade condicional, sob vigilância da lei. “É essa a única maneira de prender e soltar um homem ao mesmo tempo!”

Sob o ponto de vista da Análise Matemática, Malba Tahan explica no prefácio da obra que o problema não tinha solução possível. Cada período de tempo seria um dt, equivalente a menos que a décima parte do milionésimo de um segundo. No entanto, a fórmula mais humana e de acordo com a Justiça e a Bondade, foi a fórmula sugerida por Beremiz.

A liberdade condicional, ou livramento condicional (artigo 83 do Código Penal) é um instituto muito caro à Execução Penal. Lamentavelmente o Ministério da Justiça não possui estatísticas sobre o número de presos em liberdade condicional no Brasil. Ainda assim, legisladores planejam abolir o instituto (entre outros equívocos) como se prevê no excessivamente falho projeto de reforma do Código Penal proposto pelo senador José Sarney (projeto 236/2012).

O Estado do Rio de Janeiro, segundo dados do Conselho Penitenciário estadual, nos últimos 4 anos realizou cerca de 16 mil cerimônias de livramento condicional, em um panorama de 40 mil presos no estado.

Apesar das prisões brasileiras serem tão perniciosas quanto às de Bagdá e de não possuirmos estatísticas ou dados suficientes, na penumbra de informações nossos legisladores pretendem criar a luz ao eliminar um antigo e mundialmente disseminado [2] instituto sob o maná da inovação e na esteira dos inconsequentes discursos populistas legislando o pânico.

Nosso problema carcerário é sem solução,[3] como o problema matemático proposto pelo vizir. Não deveríamos abrir mão de uma das fórmulas de Justiça para atenuar a grave questão penitenciária, como o antigo instituto do livramento condicional, a última etapa do sistema progressivo penitenciário.


1 TAHAN, Malba. O homem que calculava. Rio de Janeiro: Record, 2013.

2 LYRA, Roberto. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense. 1955. vol. II. p. 498.

3 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 10. E à pergunta: alguém já conseguiu fazer prisão punitiva ser reformativa? ― a experiência penitenciária, de mais de cento e cinquenta anos, responde: não, em nenhuma época e em nenhum lugar.”

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