Opinião

Supremo contrariou Constituição ao julgar prisão de Delcídio do Amaral

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18 de janeiro de 2016, 19h27

Dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil que, para assegurar o desimpedido exercício da função parlamentar, o membro do Congresso Nacional é inviolável, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões palavras e votos. É o que se lê no seu artigo 53, redação conferida pela EC 35/2001. Essa inviolabilidade ou imunidade material — irrenunciável — não consagra privilégio pessoal, mas corporifica garantia estabelecida em favor da independência e da liberdade de expressão do Parlamento e do equilíbrio dos Poderes. Em suma: sem liberdade de expressão do Congresso Nacional não há estado democrático de direito.  O instituto reafirma a soberania da nação, resumida nos representantes do povo — fonte de todo poder — eleitos pelo sufrágio universal, direto e secreto.

Ao lado dessa imunidade material, outras prerrogativas há, de natureza formal, que estruturam o plexo protetivo que envolve o livre exercício do mandato eletivo nos regimes de liberdade. A relativa ao foro especial em razão da função possivelmente seja a mais conhecida da opinião pública, que não a vê com bons olhos e impropriamente a denomina de “foro privilegiado”.

A democracia brasileira arma, ainda, o Congresso Nacional, com a invulnerabilidade da liberdade pessoal do congressista (as tiranias sempre encarceraram parlamentares críticos). Eis porque considera nossa Carta Política que a liberdade pessoal do membro do Congresso Nacional é pressuposto básico do exercício do munus decorrente do mandato, e assim somente autoriza sua prisão em caráter excepcionalíssimo e em hipóteses expressamente declinadas em seu corpo permanente (artigo 53, parágrafo 2º). É que sem liberdade corporal, não haverá, por suposto, liberdade de opinião e de voto. Logo, a regra é a de que não pode haver prisão processual de congressista, salvo em uma única hipótese, que se compõe de duas exigências: a) que haja prisão em flagrante por prática de crime; b) que esse crime seja inafiançável.

O texto é de desconcertante clareza.

Ora pois: no caso da prisão do senador Delcídio Amaral em pleno exercício do mandato, definitivamente não há como se sustentar a ocorrência da situação de flagrância nem de inafiançabilidade do crime. Nem mesmo com toda boa vontade, pese embora o respeito que se consagra à decisão da Suprema Corte.

Primeiramente, flagrante delito é situação fática que se não cria por decreto. Depois, onde houver mandado de prisão expedido por autoridade, situação de flagrância não pode ter havido. Ao cabo, negar-se fiança em caso de crime previsto como afiançável, por circunstâncias pessoais ou de outra ordem, não se confunde com definição legal, apriorística, de crime inafiançável…

Na espécie, os delitos elencados como inafiançáveis no texto do artigo 5º, incisos XLII e XLII, da Lei Maior ou em outras normas não foram imputados ao Senador… O “flagrante delito” foi considerado ao arrepio das normas de regência.

Não há se falar aqui em “crime permanente” porque um pretérito e gravado diálogo telefônico jamais induziria, pela sua exauriência factual, ao prolongamento temporal que marca, por exemplo, a especificidade cronológica do crime de sequestro, em que o refém é mantido em cativeiro, sendo a duração deste a medida da permanência criminosa… O elastério é decididamente artificial.

Menos significativa seria a anomalia interpretativa se a ordem de prisão não tivesse sido expedida pelo STF, o preso não fosse um senador no exercício do mandato e o texto maltratado não fosse a Constituição da República. É que quando outras variantes — que não a dicção constitucional — podem orientar decisões que afetam a liberdade humana, resta a sensação de insegurança, a dúvida quanto à eficácia plena do comando da Carta Política. Esta, e não outra, deve ser a matriz decisória, porque vontade geral da nação. O Texto Magno é a suprema referência e nenhuma autorreferência a ele pode se sobrepor.

Não se podem fechar estas linhas sem o triste epílogo: o Senado podia, mas acuado pela “voz das ruas”, abdicou de sua independência e preferiu não restaurar a ordem constitucional…

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