Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, São Paulo, em 18 de abril de 1882. Por imposição do avô, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1900. O desinteresse de Monteiro Lobato pelo curso de Direito era total. Parece que Lobato admirou apenas um professor, Pedro Lessa, que lecionava Filosofia do Direito.
Literato até a medula, Lobato bacharelou-se pelas Arcadas, foi promotor, atuou como advogado. Em inúmeras passagens a desilusão de Monteiro Lobato para com o Direito, a Justiça, a profissão do homem de leis, é de todo evidente. Monteiro Lobato também simboliza o livro, foi dos maiores defensores do mercado editorial brasileiro. Escreveu, editou, traduziu. Sempre com um livro debaixo do braço, continuamente lendo, e escrevendo, Lobato nos conta que lia maquinalmente, delirantemente.
A rebeldia e o ceticismo marcaram firmemente suas oposições. Lobato tinha mesmo de ser contra o jurídico e contra todo o tipo de formalidades, afinal ele era mesmo um oposicionista de tudo que tem gosto oficial. Inclusive a ortodoxia dos gramáticos de muitas regras e poucas ideias não fora por ele poupada. É do que trato neste pequeno excerto.
No conto “O colocador de pronomes” essa posição é bem definida. É a estória de Aldrovando Cantagalo. Os pais de Aldrovando, inventou Lobato, se casaram por causa de um problema com o pronome “lhe”. Isto é, quando o pai de Aldrovando pediu ao avô do personagem uma das filhas em casamento, um uso equivocado do pronome fez com que o pai de Aldrovando se visse constrangido a se casar com a irmã que não queria. O problema estava na beleza, era uma questão de atração estética, ainda que sem a percepção moral e histórica de Jacó, entre Lia e Raquel, por quem por sete anos trabalhou para Labão, como se lê na passagem veterotestamentária.
Um problema estético e platônico que se resolveu negativamente nos planos da gramática, dos pronomes, retos, oblíquos (combinados ou não), reflexivos, de preposições justapostas, que não alcançam problemas de sintaxe e de estilo, e muito menos da órbita dos negócios práticos ou dos estímulos do amor. A mãe de Aldrovando caiu nos braços do pai, por um esbalho pronominal: o “lhe” no pedido de casamento teve como resultado a irmã mais próxima, em detrimento da irmã verdadeiramente desejada. Assim, pelo menos, foi o que decidiu o pai das moças. Nesse caso, não valeu a parêmia “Caesar non super grammaticos”, vale dizer, não se respeitou a suprema lei que nos dá conta de que mais vale a gramática do que a autoridade do chefe. O chefe aqui colocou os pronomes onde bem entendia. Acrescentou-se mais uma norma à regra fundamental das línguas, que é a lei do menor esforço.
Aldrovando viveu marcado com o problema do pronome, até porque um pronome mal colocado selou um casamento, e talvez por esse fato é que freudianamente passou a vida corrigindo erros de gramática, todas as horas, em todos os lugares, em relação a todas as placas e sinais de rua e de lojas, e quanto a tudo e a todos que ouvia. Antes de morrer pretendia deixar uma gramática definitiva, explicando todos os problemas da língua, com o que todos as questões sérias do idioma (e da vida) estariam enfrentadas e resolvidas. Aldrovando salvaria o mundo das impropriedades da língua escrita e falada. Cumpria uma missão. Dedicou sua vida à boa colocação dos pronomes e crases e acentos e desinências.
Já idoso, Aldrovando recebeu do editor os originais desse livro maravilhoso (e necessário) para corrigir; para seu desespero, verificou que todos os acentos estavam trocados, os pronomes equivocados e toda a ortografia não passava de um interminável engano, por descuido do corretor. O esforço todo resultara em nada. O susto e a desilusão apressaram seu fim.
A ironia de Lobato pode ser apreendida com a nota que ele acrescentou ao conto, na primeira edição. Apresentou o espólio do falecido Aldrovando, no qual havia numerosos originais, obras inéditas, de importância superlativa. Havia um estudo sobre o acento circunflexo, em três volumes. Aldrovando deixou um importantíssimo estudo sobre a vírgula no hebraico, que chegava a cinco volumes. Deixou também um valioso texto sobre a psicologia do til, em apenas dez volumes. Lobato registrou igualmente que Aldrovando deixou um estudo valioso sobre a crase, vazado em dez volumes. Muita cultura, muita erudição. Segundo Monteiro Lobato essa obra toda, importantíssima, pesava, “ por junto, 4 arrobas, que renderam, vendidos a 3 tostões o quilo, 18 mil réis. ”
Lobato recriminava o excesso de forma e o niilismo do conteúdo. Ao leitor, informou que não sabia do que Aldrovando morreu, e também não importava ao caso. Para Lobato, o que importava era proclamar aos “quatro ventos que com Aldrovando pereceu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes”, encomendando “paz à sua alma”.
O Aldrovando Cantagalo do Direito seria talvez o perseguidor de prescrições, o obcecado com decadências, o colecionador de naturezas jurídicas (inclusive o tópico problema da natureza jurídica do cadáver), o classificador incansável dos tipos de Constituições e de bens fungíveis e infungíveis que há, o farejador das dissemelhanças entre decisões constitutivas e declaratórias, entre normas de forma e de fundo, entre efeitos ex-tunc e ex-nunc, entre condições resolutivas, potestativas e suspensivas, erros substanciais, reais e obstativos, nulidades e anulabilidades, a par do relevantíssimo problema das exceções, especialmente de pré-executividade em matéria fiscal, no sentido de que seriam enfrentadas por recursos de apelação ou por agravos.
O Aldrovando Cantagalo do Direito viveria no nosso conturbado “imaginário dos juristas”, cujo cotidiano que vivemos é marcado por um paradoxo, substancialmente contraditório, no qual uma ideologia conservadora reafirmaria a harmonia no mundo, num contexto de contradições que seriam absolutamente periféricas, como alertado por Roberto de Aguiar, no mais lúcido texto de crítica de ideologia jurídica até hoje escrito[1].
O Aldrovando Cantagalo do Direito seria talvez o organizador de algumas questões de concurso, que ele mesmo corrigiria, cujos recursos julgaria e sobre cujas vidas decidiria, ou seria quem sabe algum causídico embalado no rubi, sempre contribuindo para a produção de tantos e quantos e muitos outros Aldrovandos Cantagalos que há, e que perambulam pelos fóruns, repartições e cátedras da vida, escolhendo quem vai para a cadeia, dando a cada um o que é seu, redigindo manifestos e pareceres e petições, ensinando os poucos autores estrangeiros que leu (e menos ainda os que compreendeu), dizendo que faculdades são boas ou não, e fazendo justiça, ainda que caia o mundo.
[1] Conferir, Roberto A. R. de Aguiar, O Imaginário dos Juristas, in Amilton B. de Carvalho (org.), Revista de Direito Alternativo, São Paulo: Acadêmica, 1993, pp. 18-27.