Opinião

Direito angariou novo papel ao longo do tempo, mas cursos ainda não notaram

Autor

  • Tiago Bitencourt De David

    é juiz federal substituto da 3ª Região mestre em Direito (PUC-RS) especialista em Direito Processual Civil (UniRitter) especialista em Contratos e Responsabilidade Civil (Escola Verbo Jurídico) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM Toledo/Espanha).

16 de janeiro de 2016, 10h10

O perfil das lides há muito não mais se esgota nos tradicionais pleitos indenizatórios, reintegratórios, querelas sucessórias ou ações penais diversas. Igualmente, o juízo deixou de ser um jus dicere sobre se alguém devia para alguém e quanto, a quem caberia o quinhão e se fulano era o autor de determinado delito.

Atualmente, são comuns as demandas que postulam a limitação da atuação estatal, a reversão da omissão desse mesmo Estado e prestações de toda espécie, inclusive sem que se saiba de antemão a quê o cidadão tem direito, bastando pensar em casos de pedidos de medicamentos em geral e, mormente, na polêmica acerca do fornecimento de Fosfoetanolamina. Em nome de direitos fundamentais violados, é frequente o pleito de medidas até então impensáveis, tais como a construção de escolas, hospitais, presídios, etc., revelando a diferença do exercício da jurisdição hoje e antes.

O Direito Penal hoje tem que lidar com questões dificílimas do Direito Constitucional, bastando pensar no problema da criminalização da liberdade de expressão quando tem-se em vista algumas situações diante, por exemplo, do art. 208 do Código Penal[1] ou, ainda, a possibilidade de interrupção da gestação de feto anencefálico e resposta criminal ao consumo de drogas, algo que perpassa o problema sanitário brasileiro e seus escassos recursos.

Assim, igualmente modificou-se o julgamento em si, afastando-se de um reconhecimento simplista de um direito subjetivo[2] ao pagamento de algum débito ou do dolo de algum acusado, de forma que a complexidade decisória de hoje perpassa diversas dimensões, dentre elas a pluralidade de atores processuais (p. ex. intervenção de amicus curiae, audiências públicas, etc.) e extraprocessuais (críticas doutrinárias em tempo real via internet, acompanhamento das orientações jurisprudenciais que vão se formando e oscilando, observação da imprensa e consequentemente da população em geral, etc.), a atividade hermenêutica em si (texto, norma, princípio, regra, postulado(?), valores, ponderação, proporcionalidade, razoabilidade, concordância prática, ser contra o método/a favor de método (qual(ais) métodos (?)), de modo que a própria teoria do Direito não consegue abarcar bem, ao lado dos tradicionais direitos subjetivos, potestativos e garantias, os direitos fundamentais sociais e seu caráter prima facie. Afinal, o que é isto – o direito prima facie?

O Direito em si deixou de ser uma estrutura reativa de organização, prescrição, defesa de interesses e resolução de conflitos para tornar-se um sistema normativo de caráter promocional de um dado estado de coisas, não raro atuando antes mesmo do conflito, evitando-o ou, pelo menos, incentivando o comportamento probo[3]. A impossibilidade do uso do Direito para manutenção do atual estado de coisas é depreendido já, por exemplo, do art. 3º da CF/88.

A função promocional do Direito pode ser vista, ainda, nas regras de compliance[4] que incentivam uma conduta transparente e honesta dentro das organizações. A antecipação do Direito ao conflito é evidente na tutela inibitória, antecipando-se a prestação jurisdicional em face do risco do ilícito. Assim, não se pode mais ver o Direito como proteção jurídica do status quo existente.

A tal cenário de acentuada complexidade ainda deve ser acrescentado que até mesmo a lei aplicável é incerta, pois a suspeita da ocorrência de inconstitucionalidade é precaução necessária dada a precedência das principais codificações e das tantas vezes nas quais há dissonância entre a Constituição e o restante da legislação. Em última análise, julga-se o caso, julgando-se qual a lei aplicável, decidindo-se sobre a validade da lei em face da Constituição.

O campo de atuação jurisdicional expandiu-se fortemente, mudando o tipo de atuação passível de cognição. Isso porque foi ultrapassada a era insindicabilidade do mérito administrativo[5] e das questões políticas[6]. Hoje, debate-se sobre a manutenção de um espaço de mobilidade do governante e do legislador, sem admitir-se que haja uma espécie de ato blindado ao controle judiciário ou, ainda, que em determinado âmbito prevalece o princípio do bel-prazer da autoridade competente, afrontando-se um padrão mínimo de razoabilidade, proporcionalidade e igualdade, descambando da discricionariedade ao arbítrio. Portanto, somente pode concordar-se com Luiz Fux e Carlos Eduardo Frazão[7] quando assim ensinam:

Sucede que tal concepção não parece a mais adequada. Em um Estado Democrático de Direito, como o é a República Federativa do Brasil (CF, art. 1.°, caput), é paradoxal conceber a existência de campos que estejam blindados contra a revisão jurisdicional, adstritos tão somente à alçada exclusiva do respectivo Poder. Insulamento de tal monta é capaz de comprometer a própria higidez do processo legislativo e, no limite, o adequado funcionamento das instituições democráticas.

Daí o tema da jurisdição constitucional emergir, atualmente, como um dos mais relevantes tópicos do Direito. Não foram poucos os que criticaram a possibilidade dos juízes declararem a invalidade das leis quando as mesmas se revelassem incompatíveis com a Constituição.

Hoje, são menos, mas ainda bradam o caráter antidemocrático da jurisdição constitucional, ora alegando a ausência de legitimidade de quem não foi eleito, ora aduzindo que a representação parlamentar haveria de prevalecer, cabendo ao magistrado apenas a aplicação das leis.

Entretanto, o tempo legitimou o controle judicial de constitucionalidade, mostrando que a aplicação das leis exige que se aplique a Lei Máxima antes de qualquer outra, independentemente de maiorias de ocasião e especialmente em face de tentativas odiosas da maioria esmagar a minoria, de onde emana a vocação contramajoritária da jurisdição constitucional.

Quando uma lei é feita para oprimir uma minoria, o Poder Judiciário é a voz dos que não foram ouvidos. Essa primeira função da jurisdição constitucional já alcançou razoável consenso entre aqueles que já compreenderam a necessidade do controle de constitucionalidade.

Por outro lado, cumpre reconhecer que nem sempre o controle de constitucionalidade é bem utilizado, podendo gerar resultados funestos, chamando-se atenção aqui para o infeliz caso Dred Scott no qual declarou-se inconstitucional lei abolicionista nos EUA, mantendo-se a escravidão por via judicial.

Por outro lado, existe uma outra função, menos conhecida, que tem se revelado promissora e que já apresenta excelentes frutos, a qual chamaremos de função promocional. Tal manifestação ocorre quando o Poder Judiciário promove melhor os interesses da população do que o Poder Legislativo ou de outro Poder que deveria normatizar a questão.

Em tais casos, o déficit de representatividade decorrente de alguma obstrução ilegítima da manifestação dos anseios sociais e em detrimento da normatização constitucional existente, somente pode ser suprida pelo Poder Judiciário. Daí a jurisdição constitucional não exercer uma função de bloqueio da normatização infraconstitucional, mas promotora da força normativa da Constituição em um ambiente no qual os canais habituais estejam, por quaisquer motivos (autoproteção, lobbies, desídia, etc.) obstruídos.

Como bem aponta Luís Roberto Barroso[8]: “Em curioso paradoxo, o fato é que em muitas situações juízes e tribunais se tornaram mais representativos dos anseios e demandas sociais do que as instâncias políticas tradicionais.”

Daí ser decorrente do exercício da jurisdição constitucional – e não da atividade política regular -, a vedação do nepotismo nos três Poderes, a legitimidade do CNJ, a exigência da fidelidade partidária, sob pena de perda do mandato, e a chancela do financiamento público de campanhas eleitorais foram decisões que deram voz ao anseio popular, realizando-se mudanças importantes e que encontravam forte resistência no Congresso Nacional.

Se dependesse do Poder Legislativo, como dependeu durante anos, nenhuma das importantes medidas reclamadas pela população seria implementada.[9] De igual modo, de acordo com a acertada observação de Luiz Fux e Carlos Eduardo Frazão[10]:

Contudo, e isso me parece estreme de dúvidas, na atual quadra histórica, certo é que a atuação desempenhada pelas Cortes Constitucionais não se restringe à atividade contramajoritária, de forma a invalidar atos dos Poderes Executivo e Legislativo editados em desconformidade com a Constituição. Enquanto órgão político, esses Tribunais de cúpula também são instâncias de representação popular, máxime quando o processo político majoritário não atende satisfatoriamente os anseios e reclames de determinado segmento da sociedade. É preciso, portanto, que a Corte Suprema esteja preparada sempre para enfrentar os desafios desse importante papel, sem incorrer em voluntarismos e em um (indesejável) arbítrio judicial.

Assim, o perfil da judicatura atualmente é muito diferente daquele tradicionalmente conhecido e calcado em uma teoria jurídica assentada sobre alicerces civilistas – que, frise-se ainda tem seu valor em dado contexto, não se podendo abandonar ou desprezar – e nem sobre uma teoria tripartite de separação dos Poderes que nos foi legada por Montesquieu e que era aplicável em uma época cuja realidade era absolutamente diversa da atual – o que fulmina muitos dos livros de Direito Constitucional ainda utilizados nas faculdades brasileiras, pois muitos não se deram conta que foram escritos antes mesmo da CF/88 e que as poucas modificações não salvam um pensamento superado pela atual ordem constitucional.

Por outro lado, infelizmente, a troca de manuais ultrapassados vem sendo feita por meio da utilização massiva de livros preparatórios para exame da OAB e concursos públicos, fazendo da graduação a antessala dos cursinhos, resultando na formação lamentável levada a efeito no país.

 


[1] Cito aqui como exemplo a polêmica envolvendo o youtuber Daniel Fraga e seu vídeo “Religião é pior que crack” onde apresenta “Nossa Senhora do Crack” que seria da autoria de Zarella Neto.

[2] A impossibilidade de adoção das categorias tradicionais do Direito Civil no trato dos direitos fundamentais foi bem apontada por: GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos: direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

[3] Nesse sentido: BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito. Tradução de Daniela Becaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007.

[4] Veja-se a Lei Federal 12.846/2013 que em seu art; 7º leva em consideração a estruturação e motivação da empresa para fins de combate a atos ímprobos, que em seu art. 16 incentiva a admissão e cessação do ilícito mediante acordo de leniência. Nessa mesma linha, noticiam Fernanda Marinela, Fernando Paiva e Tatiany Ramalho (Lei Anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 121) que a CGU agrava a multa entre 1% e 2,5% no caso de tolerância da diretoria para com a realização do ilícito, atenua em 2% no caso de comunicação espontânea e entre 1% e 4% em face da existência de programa de integridade, ou seja, da adoção de um programa de compliance. Note-se que na Lei do CADE já havia previsão de acordo de leniência, inclusive com isenção da responsabilidade criminal daquele que noticia a prática ilícita (art. 87 da Lei Federal 12.529/2011).

[5] Aqui deve ser mencionada a grande contribuição do Professor Juarez Freitas a tal estado de coisas, destacando-se, dentre outras, as obras “Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública” e “O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais”. Igualmente, bem apontando a necessidade do administrador bem atuar, não abusando da discricionariedade que lhe foi atribuída, veja-se, ainda: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

[6] Note-se que a apreciação judicial de questões políticas foi expressamente proibida em ordens constitucionais anteriores: art. 68 da Constituição de 1934 (art 68 – É vedado ao Poder Judiciário conhecer de questões exclusivamente políticas.), o art. 94 da Constituição de 1937 (art 94 – É vedado ao Poder Judiciário conhecer de questões exclusivamente políticas.) assim como o art. 181 da Emenda Constitucional 01/69.

[7] FRAZÃO, Carlos Eduardo; FUX, Luiz. O STF na fronteira entre o Direito e a Política. In: SARMENTO, Daniel. (Coord.). Jurisdição Constitucional e Política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 57.

[8] BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In: SARMENTO, Daniel. (Coord.). Jurisdição Constitucional e Política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 23.

[9] BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In: SARMENTO, Daniel. (Coord.). Jurisdição Constitucional e Política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 27.

[10] FRAZÃO, Carlos Eduardo; FUX, Luiz. O STF na fronteira entre o Direito e a Política. In: SARMENTO, Daniel. (Coord.). Jurisdição Constitucional e Política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 71 e 72.

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    é juiz federal substituto da 3ª Região, mestre em Direito (PUC-RS), especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo/Espanha).

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