Podemos seguir a releitura da justa
causa apresentada por Divan?
15 de janeiro de 2016, 7h01

Por isso vale a pena conferir o livro Processo Penal e Política Criminal: uma reconfiguração da justa causa, publicado pela editora Elegantia Juris, decorrente da tese de doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e que leva o leitor a refletir sobre os vínculos ocultados entre a criminologia e a justa causa.
Como já disse Aury Lopes na apresentação do livro, Gabriel faz um interessante diálogo entre o Processo Penal e a Criminologia, buscando a construção de um conceito “conglobante” (a la Zaffaroni) de justa causa. Obviamente, para chegar nisso, ele nega – peremptoriamente – a matriz da Teoria Geral do Processo (TGP), pois é elementar que as condições da ação do processo civil são imprestáveis para o processo penal, especialmente pelo acoplamento alienado que se faz.
Justamente porque precisamos antes, entender quais são os limites e possibilidades de exercício da ação penal, cuja trajetória sempre se deu em face da legalidade e oficialidade, mas que diante da inserção de institutos como o da delação premiada e leniência, viraram objeto de disponibilidade. Há, assim, uma dupla sintonia inconciliável sobre a disponibilidade do objeto do caso penal e os controles jurisdicionais a se realizar. Desta forma, caminhamos na ambivalência dual entre duas maneiras de estruturar a teoria da acusação, incrementando o desafio de estabelecer quais, enfim, são os “requisitos de admissibilidade da acusação”.
Nessa perspectiva, o trabalho do Divan insere-se e contribuir para a estruturação. Percebe o autor que “a condição”, por excelência, para admitirmos uma acusação, é a justa causa. Para dar conta disso, ela precisa ser redesenhada, tomando como o ponto de partida a definição do que seja “política processual”. Não se trata de um resgate positivista entre produção e aplicação da norma jurídica, mas algo bem mais refinado em que a “política criminal” é invocada como antecedente lógico do modelo de Processo Penal a ser aplicado. Daí a importância da variável criminológica, tão relegada em nome da técnica.
Superada essa etapa, verticaliza para mostrar o que “não é” a justa causa, desconstruindo muito do que já foi escrito até então. Depois nivela o terreno e parte para edificar a tese. E ela brota entre os escombros, mas com uma base sólida, com ambição de tese. Enfim, é uma tese que vai colocar em cheque muito do saber sedimentado e, no mínimo, ao sacudir todo esse ‘sedimento’, vai turvar a água e gerar um salutar mal-estar. Eis sua grandeza: fomentar a recusa, pois todo saber começa por uma recusa. Por isso, dentre as conclusões do livro, vale destacar do livro:
“No fundo, o que se quer propor com a justa causa para a ação penal é uma ideia que, ironicamente (diante de muitas das proposituras expostas ao longo do texto) paga tributo, justamente, à leitura gramatical-literal do nomen juris exposto. Para além de outros fatores técnicos de inegável apreciação, é necessário, diante da consciência quanto a tudo de maléfico que advém da própria subtração das relações sociais, pelo sistema, questionar se há, de fato uma justa causa para que se corporifique uma ação penal. Ou – como dado futuro – se aquela imputação ou ato de polícia que tende a identificar uma relação social com a pecha da ‘infração penal’ tem mesmo o condão de se transformar em uma ação penal dotada de uma justa causa. A justa causa diz para com a existência de elementos que reclamem, para o caso disposto, a intervenção política em seu grau mais agudo (político-criminal) e diante dos instrumentos também mais agudos desse grau (o sistema jurídico-penal). E a análise dessa existência não apenas deve caminhar ao lado dos fatores jurídico-legais que conformam sua viabilidade e regularidade no esteio do estado democrático de direito, mas deve sobrepujar-lhes, por vezes. Afinal, tanto são características de um estado democrático (e constitucional) de direito a legitimidade punitiva (guardadas suas proporções e condições de implemento), uma índole de cunho garantista dessa atuação estatal, como também a verificação interminável e constante da qualidade interventiva que o mesmo proporciona.”
O trajeto eleito por Divan, talvez se fosse realizado por nós, teria outro caminho, especialmente no tocante ao discurso abolicionista, mas significa, de qualquer modo, uma crítica necessária dos nefastos efeitos e pífios resultados (do discurso que legitima) do sistema penal que, como tal, existe, para nós, com fundamento agnóstico (Zaffaroni).
Esse é o grande mérito do trabalho, a capacidade de fazer uma recusa muito bem fundada do que aí está, com ambição de preencher o espaço (mas não esqueçamos que a falta, o buraco, sempre existirá) com algo adequado ao processo penal, como um poderoso instrumento de filtro, de limite de poder. Ampliar as possibilidades e legitimar o controle constante da “justa Causa”, para além do mantra estelionatário do in dubio pro societate é o desafio. Recomendamos a leitura.
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