Senso Incomum

Enunciado self service, feito em workshop, virou fonte para preventiva

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14 de janeiro de 2016, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Concluindo os Comentários ao CPC que sairão pela Saraiva, que escrevo e organizo junto com Dierle Nunes, Leonardo Carneiro Cunha e Alexandre Freire, li e reli vários textos e livros sobre a common law e, a partir disso, como deverá ser a aplicação dos provimentos vinculantes de que trata o novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015).

Em um intervalo, meu ex-aluno Alexandre Nogueira me mandou a foto de uma decisão de decreto de preventiva lá do Piauí (veja aqui). O crime imputado: porte ilegal de arma, uma pistola Taurus 380 (ele teria dado dois disparos para o ar e tinha pouco mais de R$ 15 mil no bolso). Diz o magistrado: In casu, verifico evidenciados os pressupostos da prisão cautelar, os quais mitigam o princípio da presunção da inocência, ante as provas de autos e materialidade evidenciadas. O crime de posse/porte de arma de fogo de uso restrito tem pena máxima superior a 4 anos, podendo, assim, ser decretada a prisão. Depreende-se dos autos que o indiciado já responde por outros procedimentos criminais, o que faz presumir a sua periculosidade e personalidade voltada ao crime e, por isso, justifica a prisão para garantir a ordem pública. Para embalar o que disse, cita o enunciado n. 3 retirado do workshop de ciências criminais realizado em março de 2015:

Consiste em fundamentação idônea para a decretação da prisão preventiva por garantia da ordem pública a existência de inquéritos policiais em andamento, ação penal ou ação para apuração de ato infracional que evidenciem a reiteração criminosa por parte do réu.

Na sequência, diz que a gravidade abstrata do crime é motivo para a decretação da prisão. A seguir, cita “jurisprudência” (na verdade, um caso isolado, mas que pode até se constituir na jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, só que isso não está demonstrado; e, se tivesse, não mudaria nada, porque o julgado é equivocado) do TJ-MG:

Habeas Corpus. Prisão Preventiva. Roubo. Reiteração delitiva. Garantia da ordem pública. A decretação da preventiva se sustenta diante da comprovação da materialidade e dos indícios suficientes da autoria do crime, associados ao motivo legal da garantia da ordem pública, especificamente no que se refere a reiteração delitiva, atitude que abala e perturba a ordem social, exigindo a adoção de uma postura mais rígida por parte do Poder Judiciário no que diz respeito a liberdade dos acusados no processo penal (proc. N. 10000140105925000 – 8.5.2014).

E encerra a decisão, dizendo: enfim, evidenciada a periculosidade do acusado (sic), decreto a preventiva. Não preciso citar o nome do juiz. O que está aqui explicitado é a decisão no que importa para um exame. E o que ora escrevo tem o componente simbólico, porque trata da crise da dogmática jurídica de Pindorama. Esculpida em carrara!

Simples assim. Uma decisão tipo queijo suíço. Senão vejamos: em primeiro lugar, a decisão não diz quais seriam os procedimentos aos quais o “acusado” (não seria “indiciado”? — Já existe ação penal?) responderia ou teria respondido. A partir da construção de uma premissa (não demonstrada), o juiz constrói vários raciocínios ou teses (ele parte de uma espécie de juízo sintético a priori, se me entendem a ironia). E deduz que o fato de o indiciado estar respondendo procedimentos, faz presumir a sua periculosidade e, pior, que o indiciado tem personalidade voltada ao crime. Mas, se não há condenação (nada há na decisão sobre isso), como o indiciado poderia ter contra si uma “presunção de periculosidade”? E se tivesse condenação, isso geraria a tal presunção? Aliás, alguém já definiu na doutrina “o que é isto — a presunção de periculosidade”?

Mais: E de onde o magistrado tirou essa “coisa” de “personalidade voltada ao crime”? De que manual simplificado/facilitado de psicologia teria ele sacado que esses frágeis elementos — e bota frágeis nisso — seriam suficientes para extrair uma conclusão apta a sustentar uma prisão cautelar? Com um APF na mão, ele “deduziu” que tipo de personalidade tem o indiciado. Como assim?

A decisão desnuda um fenômeno que se multiplica em Pindorama: a fabricação de enunciados. Além do pamprincipiologismo, temos o pan-enunciadismo. Por que estou dizendo isso? Porque o juiz tirou da manga do colete o enunciado de n. 3, elaborado em um workshop (obviamente feito só por magistrados). Não conheço os demais enunciados, mas esse, o de n. 3, contraria, nada menos, do que a jurisprudência da Corte Suprema brasileira. Some-se ao tal enunciado a ementa do acórdão do TJ-MG citado para fundamentar o decisum. Enunciado + Acórdão = contrariedade à posição do STJ sobre a temática da prisão cautelar.

Nesse sentido, vejamos o HC 99.832 (STF), em que a 2ª Turma concedeu à unanimidade writ em favor de uma pessoa presa em flagrante por tráfico de drogas [o caso do TJ-MG era de roubo e o do Piauí de porte de arma — vejam as diferenças!] e que teve a prisão mantida [pelo TJ-MG] com base na gravidade abstrata do crime. O STF disse: a gravidade do delito não basta para justificar a prisão. Veja-se também o HC 126.003. Quem quiser comparar mesmo os fatos, sua proporcionalidade e o que foi decidido pelo STF em relação à decisão do Piauí que se fundou na decisão do TJ-MG leia o HC 118.580. Também os maus antecedentes não se prestam para justificar a prisão (por exemplo, HC 60.077/TRF-3 claro, sempre o acórdão deve ser lido na totalidade). Há ainda o brilhante voto do ministro Celso de Melo no HC 96.618-7. Sim, sei que o STF está discutindo se inquéritos em curso ou ações penais podem ser utilizados… mas é para a dosimetria da pena. Para a prisão, não basta a gravidade do crime e tampouco a menção a inquéritos (ou procedimentos) em andamento, porque a prisão necessita de argumentação empírica, como exige o CPP. E mesmo que se venha a dizer que antecedentes podem ser utilizados para o decreto prisional, é óbvio que, em distinguish, deve ser perscrutado o tipo de antecedentes. O sujeito pode ter antecedentes por crime culposo… Isso parece elementar.

Portanto: workshop não é fonte de direito. Workshop não é parlamento. Workshop não é Supremo Tribunal. E tampouco decisões isoladas se configuram em jurisprudência.

Veja-se até que ponto chega o caos do decisionismo de Pindorama. Juízes se reúnem para elaborar conceitos abstratos (conceitos metafísicos) que podem ser aplicados à maneira self service. Sem dúvida, o caso em liça denota claramente que, com esse teor do enunciado, pode ser dada qualquer decisão. Mas qualquer mesmo.

Fico pensando que o novo CPC apostou em uma espécie de commonlização. Sempre critiquei isso. Tanto é que tentei  e consegui colocar uma espécie de salvaguarda ou blindagem contra esse tipo de aplicação descontextualizada, introduzindo o artigo 926 no Código, estabelecendo que a jurisprudência deve ter, além da estabilidade, coerência e integridade.

Vamos falar claro: Ninguém mais aguenta essa fragmentação das decisões. Vivemos um estado de natureza hermenêutico: no campo criminal, cada um solta se quer. Sempre encontrará um julgado para servir de fundamento ad hoc. Inclusive, se procurar bem, encontrará julgados isolados até do STF. O processo penal se transformou em um “sistema consequencialista”, em contrariedade ao que devia ser — um “sistema garantidor de liberdades”. Mas dar nome aos bois e bois aos nomes!

Mas o pior de tudo — e aqui está o elo que liga esta coluna ao livro Comentários ao CPC do qual falei no início — é o uso que o magistrado faz de um “precedente” ou seja lá o nome que se dê a uma decisão isolada desse jaez. Se a magistratura brasileira aplicar desse modo os provimentos vinculantes (entre os quais se inclui o precedente, as súmulas, etc), então podemos dizer: tudo vai piorar.

Aliás, o tipo de citação feita pelo juiz e pelo tribunal de Minas Gerais é próprio de uma jurisprudencialização que cresce dia a dia. E, a essa jurisprudencialização, juízes e membros do MP se ligam ideologicamente, isto é, a partir dos mais variados componentes, escolhem, dessa “neodoutrina”, o que querem. Por que chamo a isso de vinculação ideológica? Simples. Porque é um tipo de decisão que busca qualquer ementa para sustentar o decidido. Decisões teleológicas-consequencialistas são dadas desse modo: o juiz primeiro decide o que quer fazer e depois manda o estagiário buscar um acordão, uma ementa, um enunciado feito em workshop… como foi o caso de nosso magistrado do Piauí.

Assim, por exemplo, pode-se fazer qualquer coisa em termos de decisão. Sempre haverá algum acordão perdido no meio de milhares que conformarão a decisão tomada. Observe-se que nem o fato “bate” entre as “citações”: no caso do Piauí, em uma prisão por porte de arma utilizou-se de um “precedente” (sic) de prisão por roubo.

Mas isso apenas mostra o quanto estamos atrasados e o quanto precisamos de uma teoria da decisão e/ou de uma criteriologia para decidir. Ora, parece obrigação institucional que uma decisão siga a jurisprudência dominante na Suprema Corte. E busque, minimamente, estabelecer o DNA entre os casos. Não dá para fundamentar uma prisão estando em jogo fatos e circunstâncias diferentes (ah: está em jogo também uma coisa prosaica — a liberdade!). Aliás, é bem provável que, mesmo sendo condenado, o indiciado do Piauí nem cumpra pena.

Tenho batido há muito nessa tecla. Por isso, insisti e consegui que colocassem no novo CPC a exigência de que a jurisprudência tenha, ao lado da estabilidade, coerência e integridade. Sim, porque não é possível que, por exemplo, o STJ diga que um pequeno atraso não é motivo para configuração de excesso de prazo e, logo depois, um tribunal use esse acórdão em um caso cujo atraso (prazo de preventiva) era… superior a um ano. Qual é o DNA dos casos? E assim por diante.

Não quero um sistema jurídico no qual os juízes sejam a boca da lei; não quero um sistema jurídico no qual os juízes sejam a boca do precedente ou dos provimentos vinculantes; não quero um sistema jurídico em que o juiz esteja proibido de interpretar. Mas não quero um sistema jurídico em que o juiz interprete como quer e solte o acusado quando quer. Só quero um mínimo de previsibilidade, que advém da aplicação do direito. E não da moral. Quem acha que a moral (por exemplo, a visão individual-moral do juiz “lhe dizendo” “— Esse cara não merece ser solto”) pode vir a corrigir o direito, deveria fazer o curso de filosofia moral. E assim por diante. Se a moral ou a política corrigem o direito, quem vai corrigir esses elementos exógenos? Eis o busílis da questão. Se simplesmente olhar o processo e tomar a decisão com base na percepção pessoal é “decisão jurídica”, então qualquer pessoa pode decidir. Aliás, contei em coluna um teste que fiz com o porteiro da Universidade (leia aqui).

Por isso venho apostando na construção de uma teoria da decisão. Antes de cada decisão devem ser respondidas algumas perguntas básicas. E então começa a decisão. Com critérios. Decisão por princípio. E não por política. Por moral. Claro que a moral faz parte do direito. Mas não como se fosse “corregedor” do direito. E isso vale para a economia, a política, a ética, a psicanálise, etc.

Uma historinha para ajudar a compreender isso tudo
A propósito, essa história de o julgador (ou o MP para requerer uma preventiva) lançar mão de qualquer julgado para “fundamentar” a tese, lembro de uma ementa que até hoje é utilizada no processo criminal, que sempre foi usada a favor e contra o réu. Diz(ia): legítima defesa não se mede milimetricamente (está na RT 604/327). Serve para justificar “faca contra pente”, “metralhadora contra revólver”, “armado contra desarmado” (e mais mil hipóteses).

Com um detalhe: ninguém foi buscar o caso concreto que gerou esse prêt-à-portêr. O caso (AP. 35.248-3-TJSP) foi este: O acusado, ao vislumbrar sua mulher conversando com outro homem, foi-lhes pedir explicações; disse o acusado “que fora ao local apenas para conversar com sua mulher, a quem segurou pelo braço e já atravessavam a rua, sendo que ele falava alto para a mulher que ela lhe deveria explicar o que estava ocorrendo. Aproximou-se o ofendido e disse-lhe inicialmente ‘cala a boca, não faça escândalo’. Discutiram e o ofendido deu-lhe um safanão e um empurrão, depois de chamá-lo de idiota e ‘cornudo’. Foi nesse momento que o réu reagiu descarregando sua arma contra a vítima, tendo um dos tiros atingido as costas da vítima”.

Pois desse julgado surgiu o enunciado “legítima defesa não se mede milimetricamente…” (sic). Preciso dizer mais alguma coisa? Preciso falar do perigo do sistema de precedentes [1] (prefiro dizer “provimentos vinculantes”) estabelecido pelo novo CPC? Preciso dizer algo mais para chamar a atenção para o caos que se transformou a dogmática jurídica? Como tudo é um “sistema”, nos fóruns e tribunais se repete aquilo que é ensinado na faculdade e decorado nos cursinhos de preparação. Como diria o velho Conselheiro Acácio, personagem de O Primo Basílio,

as consequências vem sempre depois”!

De minha parte, I rest my case!


1 Remeto o leitor ao livro de H. Theodoro Junior, D. Nunes, A.M.F.Bahia e F.Q.Pedron – Novo CPC – Fundamentos e Sistematização. Rio de Janeiro, Gen-Forense, 2015, especialmente à página .392, em que alertam para o perigo de um uso self service insano da jurisprudência. O caso do verbete “legítima defesa…” está em O Que é Isto – o precedente judicial e as Súmulas vinculantes?. 3ª. Ed., de Lenio Streck e Georges Abboud (Livraria do Advogado, 215).

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