MP no Debate

Medida Provisória 703 é uma verdadeira aberração jurídica afrontosa à CF

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11 de janeiro de 2016, 10h40

Em 2010, o Brasil parecia se alinhar ao grupo de nações do mundo que sinalizava ao menos pretender cumprir os compromissos assumidos em 9 de dezembro de 2003 em Mérida. Encaminhou ao Congresso um projeto de Lei Anticorrupção empresarial.

Em 2013, quando apenas Argentina, Irlanda do Norte e Brasil ainda não tinham suas leis, logo após os movimentos de rua de junho, a Lei 12.846 foi aprovada, incluindo-se, aos 45 minutos do segundo tempo, sem ampla discussão como era necessário, o acordo de leniência que seria celebrado entre órgão de controle interno e empresa suspeita de corrupção, sem Ministério Público e ninguém fiscalizando.

Estes novos acordos poderiam permitir acesso a financiamentos do BNDES, atestado de idoneidade garantidor de participação em licitações e redução de multas, com as bênçãos do governo para a empresa (que inclusive poderia ter sido doadora de campanha para este mesmo governo).

Diante da temeridade, insegurança jurídica e carência de legitimidade destes acordos, negociados e estabelecidos sem sequer se saber o alcance dos objetos das investigações promovidas pelo MP, muitos controladores de todo o país, mesmo sem imposição legal, começaram logo a convidar o MP para intervir nas negociações.

Visando sanar a falha grave de arquitetura jurídica, o senador Ricardo Ferraço em fevereiro do ano passado, apresentou o PLS 105 com uma única proposição: exigir a homologação dos acordos de leniência pelo MP para terem validade.

No entanto, o que estava ruim, piorou. E muito. O Senado desfigurou a proposta original e criou cenário grave, que desrespeita os tratados internacionais anticorrupção dos quais o Brasil é signatário, criando impunidade ainda maior para a corrupção.

E isto tem sido justificado com o argumento de que é necessário proteger a economia, o que afronta o artigo 5º da Convenção da OCDE que expressamente prevê a impossibilidade do uso deste tipo de argumento para não punir a corrupção empresarial.

Sob o pretexto de supostamente legitimar o MP, o Senado ampliou o rol daqueles legitimados a celebrar os acordos de leniência, incluindo Advocacia-Geral da União (AGU) e o próprio MP. No entanto, mantém a possibilidade de Controladoria-Geral da União (CGU) e AGU celebrarem os acordos sem qualquer fiscalização.

É sempre bom lembrar que a CGU e a AGU são órgão de governo, e não de Estado. Que seus chefes são de confiança do presidente da República e demissíveis a qualquer tempo, não obstante haja servidores gabaritados nos quadros destes órgãos. E o mesmo se pode dizer dos controladores e corregedores estaduais e municipais.

Além disso, nenhum destes órgãos tem a necessária expertise em aquilatar estes danos ao patrimônio público, pois tal dinâmica não faz parte do rol de papéis que lhes cabe exercer no âmbito da Administração Pública.

Como se não bastasse, o Senado passou a admitir a não aplicação das punições da Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa) em hipóteses de acordo de leniência, registrando que a Lei 8.429 é o mais importante e mais utilizado instrumento jurídico de proteção ao patrimônio público pelo MP hoje no Brasil.

O Senado ainda enfraqueceu o Tribunal de Contas da União, aniquilando os efeitos de controle externo decorrentes de sua atuação, nas hipóteses de acordos de leniência.

Ou seja, o que o Senado aprovou piora de forma substancial a Lei Anticorrupção, em vigor desde 29 de janeiro de 2014, expondo o país a riscos gravíssimos, deturpando a essência da Lei 12.846, oriunda dos pactos globais anticorrupção. Na Câmara o PL tramita sob o número 3636 em Comissão Especial.

Mas o que era péssimo, atingiu as raias do absurdo. Pois, em afronta brutal ao democrático processo legislativo de discussão de um projeto de lei, o Governo Federal editou em 18 de dezembro, no apagar das luzes de 2015, a Medida Provisória 703, tendo praticamente a mesma redação do PL 3636.

A Medida Provisória invadiu matéria vedada a essa via legislativa, pois, ao promover alterações na Lei de Improbidade Administrativa, adentrou na seara do direito processual civil, violando expressamente a proibição constante do artigo 62, parágrafo 1º, inciso I, alínea ‘b’ da CF.

A matéria processual civil e penal, nos termos das Constituição Federal, é de competência legislativa federal, do Congresso Nacional, caracterizando-se desrespeito ao princípio basilar da separação dos poderes a edição desta Medida Provisória pela Presidência da República.

A Medida Provisória 703 estabelece que a celebração de acordos de leniência implicará a extinção de processos de improbidade administrativa em curso e a impossibilidade de futuras ações de improbidade, a par de revogar o parágrafo 1º do artigo 17 da referida lei, que vedava transação ou acordo em sede de ação de improbidade, tornando, em tese, possíveis tais transações, alterando pois a legislação processual.

Outra grave inconstitucionalidade reside na pretensão contida na norma de limitar a atuação dos Tribunais de Contas apenas ao momento posterior à celebração dos acordos, como se o Poder Executivo pudesse estabelecer a forma como o controle externo pode exercer suas competências, como se não cumprisse ao próprio controle externo decidir o melhor momento para atuar na defesa do erário.

Bem de ver que o Supremo Tribunal Federal reconhece ao Tribunal de Contas da União o poder geral de cautela, que lhe permite coarctar qualquer ilegalidade ainda em curso, inaudita altera parte.

Por fim, o novel artigo 17-A pretende determinar a suspensão de qualquer processo administrativo em curso em qualquer órgão que tenha como objeto as licitações e contratos envolvidos no acordo de leniência, o que alcançaria também os tribunais de contas do país.

Não cabe a edição por Medida Provisória de qualquer norma limitativa das competências do controle externo, outorgadas ao Tribunal de Contas da União diretamente pela Constituição Federal e regulamentadas em sua Lei Orgânica, que não pode ser alterada por Medida Provisória.

Em conclusão, as pretendidas repercussões processuais cíveis e na esfera do controle externo, decorrentes de acordos de leniência e previstas em dispositivos dessa Medida Provisória 703, afiguram-se flagrantemente inconstitucionais.

Como se já não fossem bastantes os argumentos já mencionados, a justificativa de apresentação da Medida Provisória 703 para destravar a economia, permitindo que empresas suspeitas de corrupção tenham acesso a financiamentos públicos e fiquem impunes com anulação da multa prevista na Lei 12.846 danifica o princípio da livre concorrência e nega princípios universais esculpidos no pactos internacionais anticorrupção — especialmente da OCDE (1997) e Mérida (2003).

Além disso, não há a urgência exigida no artigo 62 da Constituição Federal, cujo sentido não pode ser banalizado nem vulgarizado, razões que levaram o Instituto Não Aceito Corrupção e Associação Nacional do Ministério Público de Contas (AMPCON) a oficiar ao PGR para que propusesse com estes fundamentos Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Punir as empresas e combater a corrupção melhora a economia, permitindo que novos empreendedores se estabeleçam por sua competência, empresas reduzam seus custos, o país possa ter mais e melhor infraestrutura, mais empregos e renda sejam gerados. Salvar as empresas envolvidas não só é ilegal e imoral, como mantém o país na vanguarda do atraso.

Estas situações relembram o coronelismo, de triste memória no Brasil, e têm sido rechaçadas e devem continuar sendo em nome da prevalência do bem comum, dos princípios republicanos, da democracia e do princípio da isonomia.

Não se pode permitir que alguns empreendedores desonestos comprem, protegidos pelo manto legal, a impunidade pelos acordos de leniência. É inadmissível levá-los à conclusão que vale a pena violar a lei para depois se acertar com o governo e se livrar de sanções graves.

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    é promotor de Justiça em São Paulo e doutor em Direito pela USP. Atua na Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos, é membro do MPD e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção.

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    é procurador de contas, atua perante o TCU, é membro do MPD e vice-presidente da Associação do Ministério Público de Contas (AMPCON).

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