Opinião

Advocacia criminal enfrenta prisões desnecessárias e imagem errônea

Autor

  • Daniel Leon Bialski

    é advogado criminalista mestre em Processo Penal pela PUC-SP sócio do escritório Bialski Advogados e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

10 de janeiro de 2016, 9h23

O ano de 2015 foi marcado não apenas pela crise econômica, pelo aumento do desemprego e pelo retorno da inflação. Essa adversidade, inclusive, transbordou o cenário socioeconômico, atingindo o cotidiano político-jurídico.

Diariamente, os órgãos de nossa imprensa, escrita e falada, trouxeram notícias do caso “lava Jato”. Nunca se viu neste país essa quantidade de detenções, apreensões e processos, envolvendo pessoas diversas, de empresários a políticos de alto e baixo escalão. Todavia, a grande pergunta que aparece e que fomenta a reflexão é: havia necessidade? Não houve certo exagero?

Olhando o problema sob o prisma da moralidade, a resposta é taxativa, simplória e cabal. Movimentos sociais, não governamentais e até instituições acertadamente promovem o combate incessante à corrupção, querendo eliminar essas práticas para se ter um país melhor para o presente e, especialmente, para o futuro. As ações investigativas que andam nesta direção hão de continuar, contudo, clamamos que caminhe sem excessos.

Dissimula-se uma redefinição da função do Estado, que se retira da arena econômica e afirma a necessidade de reduzir o seu papel socializador e de alargar, endurecendo-a, pela intervenção penal. O novo senso comum penal é a tradução e complemento, em matéria de Justiça, da ideologia econômica e social baseada no individualismo.

Controlar a criminalidade pressupõe observar as suas manifestações, estudar e investigar as suas causas. Multivariado e como se referiu, em constante mutação, o fenômeno crime permite diversas abordagens e plural enfoque.

Não basta tentar formular leis com penas mais rígidas, impeditivas de liberdade e outros benefícios. E, igualmente, não pode o subjetivismo – amparado no solo movediço do possível e do provável – servir de mola para se prender quem pode, poderia e poderá permanecer solto e nessa condição responder ao processo. Não é esse o objetivo precípuo do Direito Penal.  Ainda mais que, existindo medidas alternativas ao cárcere – como as diversas dispostas no artigo 319 da Lei Processual –, é incompreensível não se usar tais mecanismos legais para balancear os interesses individuais e coletivos.

 Alerta o professor e também desembargador Marco Antonio Marques da Silva na obra Acesso à Justiça Penal e Estado Democrático de Direito (São Paulo, Editora Juarez de Oliveira, 2001, 1ª Edição, p. 117):

“Na atualidade, é um fator mundial a denominada crise do direito penal, tanto da dogmática jurídico-penal, como na questão da política criminal. Esta crise, entretanto, decorre, de um lado, da impossibilidade de encontrar-se meios adequados à diminuição da criminalidade clássica, e de outro, do aparecimento de uma criminalidade moderna diferente daquela por atingir comunidades e o Estado, e não mais vítimas individuais ou específicas.”

José de Faria Costa, em seu artigo Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais – Visão Luso-Brasileira – A Criminalidade Em Um Mundo Globalizado: Ou Plaidoyer Por Um Direito Penal Não-Securitário (São Paulo, Editora Quartien Latin, p. 83):

“Que vivemos em um tempo de crise – de crise das instituições, da ética, do direito penal e da própria percepção da realidade – não resta qualquer dúvida. No entanto, neste tempo de fratura e de fragmentação de toda a realidade – sobretudo do real construído – emerge, em simultâneo, uma tendência devastadora de homogeneização, uma perigosa inclinação para se pensar de jeito liofilizado, para se aceitar, acriticamente, o absolutismo do global.”

E como bem lembram Luiz Flávio Gomes e Raul Cervini, na obra Crime Organizado (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 37):

“Verificar quais são os limites constitucionais que não podem ser ultrapassados de forma alguma nessa luta contra o crime torna-se assim, sumamente importante. A barreira intransponível máxima de toda política criminal é evidentemente o Estado Constitucional de Direito. Por mais que se acredite  na bondade de uma determinada medida de “combate” ao crime, se viola a Constituição deve ser  prontamente rechaçada. Ninguém pode ignorar que o Estado Constitucional de Direito criou um sistema de garantias que de modo algum pode ser quebrado.”

 Como muito bem ponderado – seja quem for o acusado ou independentemente do crime apurado – o pensamento não deve ser tão simplório, pensando apenas em atender à opinião pública, ultrapassando-se garantias e buscando-se falsa impressão de eficácia. Essa preocupação – da exceção se tornar a regra – afeta a segurança jurídica e avilta o direito à liberdade e a dignidade, tão defendido nas declarações americana e universal dos Direitos Humanos e nossa Constituição Federal.

A custódia cautelar jamais pode se transformar numa forma de antecipação de cumprimento de pena. Conquanto muitos fatos sejam graves, não pode se permitir essa transmutação. As acusações formuladas não podem nem poderiam servir de supedâneo à manutenção do sacrifício de liberdade. Infelizmente, se viu a inversão das presunções, a invocação nostálgica da custódia cautelar obrigatória para os crimes mais graves, em contraponto ao princípio da proibição do excesso e da excepcionalidade.

E nós, advogados, passamos a ter que lutar contra um poderoso inimigo invisível — a desconfiança popular. Nos táxis, bares e restaurantes, por exemplo, quase todos comentam, sempre indagando, se essa prisão está certa. Quando haverá menção e envolvimento do ex-presidente? Da atual chefe do Poder Executivo nacional? E se o impeachment vai sair ou não. Em todas essas rodas de bate papo, a figura do advogado é rotineiramente contestada como se fosse sinônimo de cumplicidade.

Os que criticam nossa classe esquecem que foram os advogados que mais combateram a ditadura. São os advogados que desafiam os abusos; são os advogados que não se envergam diante do excesso; são os advogados que não se calam quando se deparam com a violação de  garantias conquistadas com árdua luta.

Conseguintemente, as palavras de Rui Barbosa ecoam majestosas:

“Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos. Não desertar a justiça, nem cortejá-la. Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. Não transfugir da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia. Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra aqueles. Não servir sem independência à justiça, nem quebrar da verdade ante o poder. Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas. Onde for apurável um grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial. Não proceder, nas consultas, senão com a imparcialidade real do juiz nas sentenças. Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com caridade. Amar a pátria, estremecer o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e no bem.” (Oração aos moços, p. 78/79, Nova edição, 1956).

 Afirma-se que, sem o advogado, a balança da Justiça se desiquilibra. Ele é peça fundamental ao respeito do devido processo legal e, por isso, possui licença para combater o que considera arbítrio, conclamando nossos julgadores para que tenham olhos atentos.

Nesta medida, é somente o advogado que vocifera contra a marca, o sofrimento, a mácula, a humilhação daquele que foi indevida e irregularmente conduzido ao cárcere e neste mantido por tempo excessivo. Deflui-se assim logicamente que este tema relativo à constrição da liberdade, do Direito de ir e vir não pode ser relevado a um segundo plano apenas em razão do combate à criminalidade organizada.

No nosso Estado Democrático de Direito, não se pode aceitar a retomada do “primeiro se prende para depois investigar e julgar”. A liberdade não pode ser relevada a um segundo plano. E é por isso que temos fé e confiança nos nossos tribunais que saberão, no ano vindouro, julgar e trazer o verdadeiro equilíbrio na distribuição da Justiça e na soberania dos direitos e garantias individuais de cada um.

 

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