Opinião

Cobrança de ICMS sobre extração de petróleo e gás é inconstitucional

Autor

  • Ricardo Lodi Ribeiro

    é presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário (SBDT) professor adjunto de Direito Financeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e advogado sócio de Barroso Fontelles Barcellos Mendonça e Associados.

7 de janeiro de 2016, 5h39

No dia 30 de dezembro de 2015, foi publicada no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro a Lei estadual 7.183, de 29 de dezembro de 2015, que, de acordo com a sua ementa, dispõe sobre a alíquota do ICMS sobre a operação de circulação de petróleo. Ao contrário de sua epígrafe, o que temos, de fato, é uma nova tentativa do estado do Rio de Janeiro de instituir a incidência do imposto estadual sobre a extração de petróleo e gás, a exemplo do que fora efetivado pela Lei 4.117/03, a Lei Noel, atacada pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.019, ainda pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal e cuja eficácia havia sido suspensa por decreto da governadora Rosinha Garotinho, diante da polêmica quanto à legitimidade da medida e dos impactos negativos para o setor mais vital da economia fluminense.

No contexto atual de extrema fragilidade das finanças do estado do Rio de Janeiro, é compreensível que o governo busque novas fontes de receita.  Contudo, a necessidade de caixa não confere, de per si, a legitimidade necessária para fundamentar a criação de tributos, como a iniciativa da nova lei de instituir novamente a incidência do ICMS sobre a extração de petróleo e gás. 

A revogação da Lei Noel pela Lei 7.183/15 revela o objetivo de renovar a pretensão de cobrar ICMS na extração do petróleo, ainda que sob a nova roupagem de circulação entre o ponto de medição da produção e o estabelecimento da empresa produtora. 

Porém, a nova tentativa de tributar pelo ICMS na extração mineral, ou na “circulação” entre o ponto de medição e o estabelecimento da empresa exploradora, esbarra em velhos obstáculos há muito apontados pela doutrina e pela jurisprudência.

Como é sabido, o Superior Tribunal de Justiça sumulou o entendimento de que a ocorrência do fato gerador do ICMS pressupõe a transferência da propriedade da mercadoria, a partir de uma saída jurídica do bem[1]. No mesmo sentido tem se manifestado o Supremo Tribunal Federal[2]. Vale destacar que, mesmo entre aqueles que, como nós, são críticos em relação a esse entendimento jurisprudencial[3], há o reconhecimento de que o aludido posicionamento pretoriano não autoriza que a mera transmissão de domínio para caracterização do fato gerador do ICMS, que não dispensa, para a sua ocorrência, que a transferência da propriedade seja reveladora de uma circulação de mercadoria entre dois elos da cadeia econômica, o que não ocorre da movimentação do petróleo e do gás entre o ponto de mediação e o estabelecimento produtor, pertencentes ao mesmo titular.

Por outro lado, mesmo se fosse possível aceitar a tese de que a circulação de mercadorias se traduz na mera transmissão de domínio, o que só se admite para fins de argumentação, não há que se cogitar na incidência do ICMS nos casos em que a propriedade não é adquirida em razão de um negócio jurídico entre o adquirente e o alienante, mas de forma originária, como ocorre na extração mineral.

É que a aquisição originária da propriedade móvel ocorre em relação ao bem que nunca pertenceu a ninguém, não tendo sido objeto de uma transmissão de domínio. Porém, essa modalidade de aquisição da propriedade não ocorre, como se pode vulgarmente imaginar, apenas com base na ocupação de bens que foram perdidos (res derelicta) ou que desde os tempos imemoriais não possuem dono (res nullius), como na caça, na pesca, na invenção do bem perdido ou na descoberta do tesouro, mas também do desprendimento de coisas acessórias que anteriormente aderiam à coisa principal[4].

Em relação à extração de hidrocarbonetos das formações rochosas no fundo do mar, vale destacar que, antes da ação do produtor, não há divisibilidade entre as jazidas e os recursos minerais a elas agregados. Só há que se falar propriamente em petróleo e gás como produtos providos de status jurídico próprio, após a explotação quando o produtor injeta substâncias líquidas para que os hidrocarbonetos se desprendam das paredes rochosas, ganhando autonomia em relação a elas, passando a existir como bem jurídico diverso da jazida.  

Diante de tal fenômeno físico, não é difícil perceber que ocorre a aquisição originária na apropriação do bem acessório (hidrocarboneto) quando este perde a aderência em relação ao bem principal (jazida). 

Seja no regime de concessão ou no de partilha de produção, a apropriação dos hidrocarbonetos pelo contratado não se confunde com uma alienação desses bens resultantes da extração mineral, pela União, proprietária da jazida, para a empresa produtora. Esta última apenas recebe o direito de, sob sua conta e risco, explorar e produzir petróleo e gás natural em áreas previamente determinadas, oferecidas ao mercado por meio de leilões[5].

Em consequência, não há transmissão da propriedade do petróleo e do gás natural na extração mineral, pois estes, quando ainda na jazida, não se traduzem em bens distintos desta, por faltar-lhes a autonomia física, que irá surgir apenas com as atividades feitas na extração, ocasião em que ocorre a separação entre os hidrocarbonetos e as rochas de onde são extraídos. Portanto, antes da extração, não há que se falar em propriedade do petróleo, pois este ainda não surgiu como bem separado da própria jazida.

A propriedade do produto da extração mineral apreendido da jazida está subordinada ao regime jurídico em que se desenvolvem as atividades materiais de extração do petróleo, no momento em que este surge no mundo jurídico de modo autônomo em relação à jazida. 

A partir da Emenda Constitucional 09/95, flexibilizou-se o monopólio da União, permitindo-se que esta contratasse, na forma da lei, empresas estatais ou privadas para exercer a exploração e produção de petróleo e gás natural, podendo a lei atribuir a propriedade da produção à empresa responsável pela lavra.

Com o novo modelo constitucional, a Lei 9.478/97 (Lei do Petróleo) estabeleceu o regime de concessão, atribuindo, em seu artigo 26, a propriedade do produto da lavra ao concessionário. Nesse modelo, a aquisição originária da propriedade pelo produtor se dá com a própria extração mineral, o que se quantifica e exterioriza no ponto de medição.

Porém, com a edição da Lei 12.351/10, foi alterado o modelo de contratação para as áreas do pré-sal e em áreas estratégicas, considerando-se o risco baixo para a atividade nesses locais e o grande volume dessas reservas, introduzindo-se, paralelamente ao regime de concessão, o regime de partilha de produção[6]. Segundo este, a atividade de exploração e produção é desenvolvida por um consórcio formado pela Petrobras, necessariamente a operadora do bloco, a empresa ou consórcio vencedor do leilão promovido pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis e pela PPSA, empresa pública criada pela União para representá-la no contrato de partilha de acordo com o artigo 20 da Lei 12.351/10.

De acordo com o artigo 2º, I a III, da Lei 12.351/10, o resultado da produção dos hidrocarbonetos é repartida da seguinte forma: a) óleo-custo: custos e  investimentos feitos pelo contratado; e b) óleo-lucro: parcela da produção a ser repartida entre a União e o contratado, segundo critérios definidos em contrato.

Se no regime de concessão o produto da lavra pertence ao concessionário desde a extração mineral, no regime de partilha não é diferente, havendo, para as empresas integrantes do consórcio, de forma indivisa, a aquisição originária da propriedade de todo o produto da lavra por ocasião da extração, quantificada desde o ponto de medição. 

Desse modo, não há circulação de mercadoria na extração mineral do solo ou do leito marinho, uma vez que se trata de uma aquisição originária, e não de uma circulação econômica de mercadoria. Embora as jazidas minerais pertençam à União, elas não se confundem com o produto da lavra, cuja propriedade já nasce para o concessionário a quem foi incumbida a exploração e produção. Inócua é a tentativa da Lei 7.183/15 de “adiar” a ocorrência do fato gerador da extração, como fora previsto na Lei Noel, para a medição, uma vez que esta nada mais representa do que a exteriorização quantitativa da primeira. Haverá incidência do imposto somente quando o concessionário, proprietário do produto da lavra, aliena tais mercadorias colocando-as em circulação no mercado.

Ainda que assim não fosse, que se pudesse vislumbrar a transmissão de domínio entre a União e os contratados, tal operação tampouco não ensejaria a incidência do ICMS, uma vez que esse negócio jurídico, cuja existência só por argumentação se admite, não poderia ser caracterizado como circulação de mercadoria, assim entendida como a evolução da mercadoria por entre unidades produtivas da cadeia econômica, já que tanto a União quando os contratados estariam desempenhando atividade relativa à mesma unidade produtiva[7].

Não seria outra a conclusão em relação à parcela denominada óleo-custo, uma vez que, ainda que fosse, por absurdo, considerada como objeto de transferência dominial entre a União e a contratada, jamais poderia ser caracterizada como resultado de uma operação de circulação de mercadorias entre duas unidades produtivas da cadeia econômica, por traduzir-se em atividade desenvolvida no âmbito do mesmo elo produtivo da cadeia econômica pelo consórcio.

Vale reiterar que não existe circulação econômica com a mera saída física da mercadoria para outro estabelecimento do mesmo titular, se ainda não foi concluído o processo produtivo, mesmo que este seja efetivado por mais de um estabelecimento da mesma unidade produtiva, como reconheceu o STF quando considerou não haver circulação econômica na saída da cana-de-açúcar do estabelecimento agrícola produtor com destino ao estabelecimento industrial da mesma empresa[8]. No citado caso concreto, a legislação estadual considerava o sítio onde se produzia a cana um estabelecimento autônomo em relação à usina, por meio de ficção jurídica que não tem o condão de introduzir um novo elo na cadeia econômica. No julgado, o STF considerou que os dois estabelecimentos pertenciam à mesma unidade produtiva, não havendo circulação econômica na transferência do bem entre eles.

No caso agora em exame, as atividades de extração e movimentação do petróleo e gás estão também inseridas na mesma unidade produtiva, não havendo, para fins da incidência do ICMS, que se falar em operação de circulação que separe as duas fases, uma vez que o produto só é colocado na cadeia mercantil após o exaurimento da segunda. A partir do precedente do STF acima citado, deve ser reconhecida a possibilidade de uma unidade econômica ter suas atividades fracionadas em mais de um estabelecimento, desde que apenas um deles promova a colocação do bem no mercado, destinando-se os demais a fornecer elementos ao estabelecimento produtor[9].  Ou ainda, é possível que mais de uma pessoa jurídica, seja por meio de consórcio, seja por meio de outras avenças, desempenhem, de modo unificado, as atividades inerentes a uma mesma unidade produtiva.

Por fim, há que se reconhecer que a cobrança de ICMS por ocasião da medição da produção tem como objetivo minorar as perdas que o estado do Rio de Janeiro acumula em razão da imunidade das operações interestaduais com petróleo e gás, estabelecida pelo artigo 155, parágrafo 2º, X, b, da Constituição Federal, que atribuiu a cobrança do imposto ao estado de destino. Por mais que possamos nos solidarizar com a indignação fluminense diante do casuísmo constitucional que subverteu a regra geral da cobrança do imposto na origem, é forçoso reconhecer que a vontade do legislador estadual não tem o poder de driblar uma decisão do constituinte originário, ainda que não concordemos com ela. Por isso, só uma emenda constitucional teria o condão de promover a alteração da decisão de atribuir ao estado de destino o ICMS sobre o petróleo, sendo inócua a tentativa do legislador estadual de criar um elo artificial da cadeia produtiva antes da operação interestadual imune.

Com base nas premissas acima expedidas, (i) de que não há aquisição originária na extração de petróleo e gás; (ii) de que não há circulação de mercadoria na extração mineral; (iii) de que o deslocamento do petróleo e do gás do ponto de medição para o estabelecimento comercial não constitui fato gerador do ICMS; e (iv) de que não há como revogar a imunidade das operações interestaduais de petróleo e gás por lei ordinária, é inconstitucional, em sua integralidade, a Lei estadual 17.183/15.


[1] Súmula 166 do STJ: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para um outro estabelecimento do mesmo contribuinte”.
[2] STF, AI AgR 131.941, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 19/04/1991, p. 932. STF, 1ª Turma, AI no 693.714 – AgR/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 21/08/2009; 2ª Turma, RE no 593.983 – AgR/MT, Rel. Min. Eros Grau. DJe 29/05/2009.
[3] Para o exame da nossa posição a respeito, vide: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Tributos – Teoria Geral e Espécies. Niterói: Impetus, 2013, p. 243-246.
[4] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Vol. IV – Direitos Reais. 23. ed. Atualizada por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 98.
[5] GRECO, Marco Aurélio. ICMS – Exigência em relação à Extração do Petróleo, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 100.  São Paulo:Dialética, 2004, p. 137.
[6] Para um estudo mais detalhado do contrato de partilha de produção, vide: RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. Direito do Petróleo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 492-499.
[7] GRECO, Marco Aurélio. ICMS – Exigência em relação à Extração do Petróleo, p. 138.
[8] STF, Pleno, RP 1.355/PB, Rel. Oscar Corrêa, DJ 10/04/1987, p. 6417.
[9] Na citada RP 1.355, onde se reconheceu a impossibilidade de exigir-se o ICM sobre a transferência da cana produzida ao engenho, destacou com propriedade o relator, Min. Oscar Corrêa: “Se são estabelecimentos que se integram na mesma unidade econômica, como partes indistintas do mesmo processo de produção, e não extrapolam dessa atividade integrada, não há considerá-los estabelecimentos autônomos para fim de geração de atividade tributada pelo ICM”.

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    é presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário (SBDT), professor adjunto de Direito Financeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e advogado, sócio de Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça e Associados.

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