Garantias do Consumo

Direito protege consumidor e livre concorrência de aumentos abusivos

Autor

  • Bruno Miragem

    é advogado e professor dos cursos de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

6 de janeiro de 2016, 7h00

Spacca
Com frequência são trazidos a conhecimento público situações nas quais fornecedores de produtos e serviços, considerando certas circunstâncias fáticas, elevam os preços que cobram de produtos e serviços que ofertam no mercado de consumo, gerando ampla reprovação social, sobretudo quando identificados propósitos egoísticos, ou ainda, certo oportunismo em vista da situação de dificuldade ou extrema necessidade dos consumidores pelo acesso a estes bens. Apenas para citar exemplos recentes, é o caso do comerciante de lonas e telhas, que em face do aumento da demanda causado por catástrofes naturais (temporais e vendavais), e os danos que provocam (especialmente o destelhamento de casas), multiplicam o preço destes produtos. Ou o de revendedores de combustíveis que, se antecipando à majoração de tributo que ainda não passou a incidir, aumentam o preço cobrado dos consumidores em percentual muito acima daquele que resulta da repercussão das novas alíquotas sobre o valor até então praticado. Nestas situações, e em outras tantas nas quais o aumento dos preços cobrados do consumidor não guardam relação de proporção com o aumento dos custos, surge sempre a pergunta sobre o regularidade ou não desta conduta frente ao Direito.

O exame do tema não é tão simples quanto possa parecer à primeira vista. Inicialmente, diga-se o óbvio: nosso sistema econômico é baseado na livre iniciativa, de modo que a intervenção do Estado no domínio econômico só pode ser dar em situações constitucionalmente autorizadas, observada a proporcionalidade. Necessário que se considere, pois, a racionalidade expressa pela conhecida lei econômica da relação entre oferta e demanda. Cuidado se tenha, contudo, para dela não se retirar conceito absoluto, a partir de interpretação liberal extremada, a condenar per se qualquer intervenção do Estado no mercado. No mais das vezes, o que se tem aí é mais expressão de um legítimo desejo político, do que propriamente o conteúdo do próprio Direito posto.  Qualquer abordagem sobre a questão deverá considerar tanto a intervenção constitucionalmente definida para a proteção do consumidor (artigo 5o, XXXII e artigo 170, V, da Constituição), quanto da livre concorrência (artigos 170, IV, e 173 da Constituição).

No rol das práticas abusivas estabelecidas no artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, chama cada vez mais atenção — em especial pela dificuldade de sua interpretação e aplicação — a prevista no inciso X,  que proíbe a conduta de “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”. A norma em questão não estava presente na redação original do Código. Foi introduzida pela antiga Lei de Defesa da Concorrência (art. 87 da Lei 8.884/1994), aliás, em longa tradição estabelecida no direito brasileiro de repressão ao denominado aumento arbitrário de lucros. O artigo 2o, inciso II, da Lei 4.371, de 11 de setembro de 1962, já estabelecia como forma de abuso de poder econômico “elevar sem justa causa os preços, no caso de monopólio natural ou de fato, com o objetivo de aumentar arbitrariamente os lucros sem aumentar a produção”. Associava as noções de elevação sem justa causa de preços e o exercício de posição monopolista, realizando o comando do artigo 148 da Constituição brasileira de 1946, que confiava à lei tarefa de reprimir todas as formas de abuso do poder econômico, inclusive as que tivessem por fim “aumentar arbitrariamente os lucros”. O mesmo esteve presente no artigo 157 da Constituição de 1967.

Já a Lei Delegada 4 de 26 de setembro de 1962, recepcionada pela Constituição de 1988,[1] conferiu ao Estado competência para fixação de preços máximos, visando a impedir lucros excessivos (artigo 6°, IV). A Lei 8.884/1994, de sua vez, teve introduzido o inciso XXIV ao seu artigo 21, definindo como infração à ordem econômica “impor preços excessivos, ou aumentar sem justa causa o preço de bem ou serviço.”

A Lei de Defesa da Concorrência atualmente em vigor (Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011), preferiu definir no seu artigo 36, inciso III, como infração à ordem econômica, pela qual os agentes econômicos respondem independentemente de culpa, os atos que tenham por objetivo, “aumentar arbitrariamente os lucros”, mesmo que estes efeitos não tenham sido alcançados.

Os conceitos do direito da concorrência e do direito do consumidor se associam até certo ponto, em diversas situações fáticas nas quais incidem em comum, embora com as naturais dificuldades de demonstração no caso concreto.[2] A pergunta é se a definição prevista na legislação de proteção do consumidor conquistou autonomia em relação àquela que da evolução das normas concorrenciais.

Há importantes distinções que devem ser consideradas. No artigo 39, inciso X, do CDC, veda-se a elevação de preços sem justa causa. Sua aplicação corrente permite a proteção do consumidor da prática de preços elevados mesmo na ausência de contrato prévio entre as partes.[3] Distingue-se claramente do aumento arbitrário de lucros, cujas razões podem ser outras, que sequer signifiquem necessariamente lucro excessivo, lembrando-se que a empresa poderá, mesmo assim, ser ineficiente ou eliminar lucros por intermédio de outros recursos, como o planejamento fiscal.[4] Embora não se perca de vista uma possível ou provável relação de causa e consequência, não se pode afirmar peremptoriamente que em razão do aumento de preços sem justa causa haja o aumento arbitrário dos lucros.[5]

A elevação de preços sem justa causa não é conceito desconhecido no direito da concorrência. Ao contrário. A antiga Lei 8.884/94 dispunha, inclusive, de critérios bastante úteis para determinar a ocorrência da hipótese. O parágrafo único do seu artigo 21 definia entre os critérios para caracterizar a imposição de preços excessivos ou do aumento injustificado de preços, além de outras circunstâncias econômicas e mercadológicas relevantes: o comportamento do custo dos insumos ou a introdução de melhorias de qualidade; o preço anterior do produto, quando se tratasse de sucedâneo sem alterações substanciais; o preço de produtos e serviços similares ou sua evolução, em mercados competitivos comparáveis; e a existência de ajuste ou acordo que implicasse na majoração de preços ou de custos (cartel).

Trazia a lei nada mais do que lições elementares de economia. E da mesma forma, estabelecia uma distinção essencial, entre imposição de preços excessivos e aumento injustificado de preços. A imposição de preços excessivos era necessariamente espécie de concretização do exercício abusivo de posição dominante. Havia o poder de impor, em razão da posição dominante, e justamente o seu exercício caracterizava o abuso. Já o aumento injustificado de preços também pode ser associado à posição dominante de mercado, mas não apenas.

É a ausência desta distinção que faz com que muitos juristas só admitam, até hoje, o caráter infracional do aumento de preços sem justa causa, se praticado por titular de posição dominante, de modo a caracterizar seu exercício abusivo. Ou seja, não reconhecem a autonomia do tipo infracional da elevação sem justa causa de preços não só na legislação concorrencial, mas no próprio Código de Defesa do Consumidor. O exame do artigo 39, X, do CDC, contudo, permite uma distinção. Não se pode identificar como sinônimos as hipóteses de aumento excessivo e aquele sem justa causa. Há mercados regulados em que o aumento de preços se dá apenas nos limites em que as normas regulatórias permitem[6], mediante tabelamento ou fixação de preços máximos. Por outro lado, a evolução natural dos preços, em decorrência da conjuntura econômica, não será considerada elevação sem justa causa. A hipótese mais comum será a situação em que se verifique a elevação dos custos que compõem o preço. É natural que diante deste fato não se possa exigir do fornecedor que mantenha estável ou reduza seu lucro, o que só pode ser adotado, em limites racionais, de modo voluntário, como estratégia para atração de clientela.

A interpretação e aplicação do artigo 39, X, do CDC também deve conhecer as regras básicas da formação de preços, tais como  o reconhecimento dos custos de produção e a aplicação a estes, de índice ou percentual (mark up) que permita abranger os demais custos não considerados nos custos de produção, tais como os tributos, comissões, e o próprio lucro desejado, de modo a chegar-se a um preço referencial.[7] Da mesma forma, devem ser considerados os custos indiretos rateados por toda a produção, cujo impacto dependerá da escala em que são produzidos os produtos, de modo que se possa obter seu custo unitário, e os chamados custos não padronizados, como, por exemplo, no caso da loja que, ao aceitar vários cartões como meio de pagamento, remunera cada um deles com taxas distintas.

No caso da formação do preço de serviços ainda há outros elementos a serem considerados, como a incerteza quanto ao tempo de execução, e os custos de mobilização e desmobilização de equipe, eventual desistência de clientes e os investimentos feitos para poder realizar a prestação. 

Isso não significa que o fornecedor deva ser mero repassador de custos. A rigor, seu propósito racional deverá ser sempre o de oferecer produtos e serviços de qualidade com preços competitivos, vale dizer, que tenha aptidão para atrair o consumidor.

Deste modo, o aumento de preços sem justa causa revela uma anormalidade. A noção de justa causa, neste caso, é decisiva. Pode a causa da elevação de preços ser o aumento da demanda? Em termos normais, é certo que sim. A pergunta, contudo, é se há um limite para essa elevação de preço em vista das razões que dão causa ao aumento da demanda. Retornando ao exemplo do vendedor de material de construção que se aproveita da ocorrência de um temporal de granizo para aumentar em 1.000% o preço das telhas, em vista da demanda dos que tiveram seu telhado avariado. O juízo ético-social tenderá a condenar espécie de “aproveitamento indevido” da situação. Um juízo estritamente econômico, considerará a oportunidade de maximização dos lucros com a atividade.

Será dito em oposição: mas o mercado se autorregula. Se um fornecedor aumentar os preços de modo excessivo, perderá consumidores. Em um mercado de concorrência perfeita é possível. A hipótese do artigo 39, X, do CDC não parece se aplicar a estas situações, mas àquelas em que o fornecedor eleva preços de modo excessivo, mantendo clientela, sobretudo em vista de sua catividade ou extrema necessidade. No caso da prestação de serviços, hipoteticamente considere-se contratos de longa duração, nos quais o consumidor enfrente certos obstáculos para migrar de um concorrente a outro, tais como prazo de carência para fruição dos serviços, cláusulas de fidelização, ou simplesmente entraves burocráticos comuns, como ligações intermináveis, ou série de providências sucessivas que devem ser adotadas para encerrar a contratação. É esta dependência ou catividade que fará com que parcela de consumidores, mesmo percebendo o aumento excessivo, mantenha-se vinculado ao contrato original.

Nos limites deste espaço confira-se o seguinte: o conceito de elevação sem justa causa de preços, prática abusiva prevista no artigo 39, X, do CDC, não se confunde com a de aumento arbitrário de lucros previsto na legislação concorrencial, nem pressupõe a existência de abuso de posição dominante como sustenta certa linha de interpretação no direito concorrencial. A elevação sem justa causa de preços é espécie de abuso no exercício da liberdade negocial do fornecedor, segundo a dogmática própria das práticas abusivas na legislação de defesa do consumidor. Isso não faz com que qualquer aumento de preços — mesmo se for para maximização dos lucros — seja per se abusivo. Afinal, se está em uma economia de mercado. Porém, há limites que deverão ser considerados, associados à boa-fé e à própria vulnerabilidade do consumidor em dada situação específica. Maior precisão sobre estes limites, pretendemos trazer em uma próxima coluna.


[1] STF, AI 268,857 – AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, 2a Turma, j, 20/02/2001, DJ 4/05/2001.
[2] STJ, REsp 1296281/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, 2a Turma, j. 14/05/2013, DJe 22/05/2013.
[3] MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 5a ed. São Paulo: RT, 2014, p. 296-297.
[4] SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial. As estruturas. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 86.
[5] TJRS, ApCiv e Reexame Necessário n. 70059453456, 17a Câmara Cível, Rel. Liege Puricelli Pires, j. 25/09/2014. No mesmo sentido:  Ap Civ n. 70062718671, 18a Câmara Cível, Rel. Pedro Celso Dal Pra, j. 26/02/2015.
[6] STF, RMS 28.487, Rel. Min. Dias Toffoli, 1a Turma, j. 26/02/2013, Dje 15/03/2013.
[7] MARTINS, Eliseu. Contabilidade de custos. 9. ed. São Paulo: ATLAS. 2003. BRUNI, Adriano Leal; FAMÁ, Rubens. Gestão de custos e formação de preços. 5. ed. São Paulo: ATLAS, 2009, p. 282.

Autores

  • Brave

    é doutor e mestre em Direito. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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