Opinião

Intervenção estatal deve analisar essencialidade do bem

Autor

  • Tiago Bitencourt De David

    é juiz federal substituto da 3ª Região mestre em Direito (PUC-RS) especialista em Direito Processual Civil (UniRitter) especialista em Contratos e Responsabilidade Civil (Escola Verbo Jurídico) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM Toledo/Espanha).

4 de janeiro de 2016, 5h40

Qual deve ser o tamanho do Estado? Quando, onde e como o mesmo deve intervir? O que deve ser deixado ao sabor do Mercado? Tais questões são, em apertada síntese, representativas do modelo econômico-jurídico que se deseja adotar.

Em dois pontos extremos, o Anarcocapitalismo sustenta que o Estado não deve existir, que o único direito real é a liberdade e dela derivariam a propriedade (privada) e a autonomia privada, de outro lado, o Socialismo e sua fase posterior, o Comunismo, defendem a completa estatização, de modo que haveria ao fim do processo uma absorção da Sociedade pelo Estado. A distinção Sociedade x Estado desaparece em ambos cenários, mas enquanto no primeiro o último é suprimido, no segundo é a primeira que é incorporada pelo último.

Entre os arquétipos-limite, há um largo espectro de possibilidades que começam na Minarquia (Estado restrito a pouquíssimas funções, basicamente de Defesa e Justiça), passando pelo Liberalismo Econômico (laissez-fare), Estado de Bem-estar Social (welfare state) até chegar-se ao Socialismo.

O tipo de intervenção estatal pode variar muito, desde a garantia das liberdades clássicas, tutelando a vida, a incolumidade física e a propriedade tradicional, até a produção de toda espécie de bem e prestação de serviço. Entre um pólo e outro, a atuação do Estado pode se dar normativamente, sem destinar recursos materiais, apenas igualando juridicamente os envolvidos e restringindo-se a autonomia privada, tal como deu-se por meio da CLT e do CDC, ou pode ser feita de diversos outros modos que envolvem mais intensa presença estatal, dentre os quais a realização de obras e serviços públicos com o escopo de aquecer a economia (Keynesianismo), prestação de serviços de proteção contra incapacidades, doenças, miséria e outros riscos sociais (Seguridade Social), inclusive com prestações em dinheiro, até chegar-se ao ponto do Estado ter empresas que produzem bens e serviços, atuando como verdadeiros agentes econômicos.

Enfim, a forma de atuação do Estado é tão variado quanto o leque de possibilidades de ser do próprio Estado, sendo muito raro ver-se um modelo teórico ser implantado em estado puro, sempre havendo variações determinadas pela realidade em geral e daquele lugar em específico. Quando se pensa no tamanho que o Estado deve ter, não se pode olvidar que ainda deve ser debatida a função que o mesmo deve assumir, havendo um largo rol de tipos de intervenção possíveis, de diversas naturezas, meramente normativa ou até mesmo de âmbito econômico a ensejar a produção estatal de bens e serviços a serem ofertados no Mercado ou entregues diretamente às pessoas.

Feita essa breve introdução ao tema, gostaríamos de apontar o papel que desempenham as ideias de eficiência e precificação que se constituem em importante dimensão do problema do Estado e de sua relação com o Mercado, começando por dificuldades gerais de precificação e culminando com o debate sobre a noção de eficiência em si mesma considerada.

Em breve suma, quem defende a diminuição ou até mesmo a inexistência do Estado, advoga que o Mercado é o melhor lugar para que se produza e comercialize tudo quanto é produzido pela mão humana. Diz-se que no Mercado a oferta e a demanda tendem a um equilíbrio, prestigiando-se quem produz melhor e mais barato, oferecendo-se aos adquirentes bens melhores e com menor custo.

No Mercado ocorre a precificação das coisas por meio do exercício da autonomia privada, de forma que o preço decorreria naturalmente da sucessão de trocas voluntárias, aproximando-se os conceitos de preço e valor. Já quando a produção dá-se pelo Estado, há um problema de precificação, pois o preço é estipulado fora do ambiente de trocas, de forma a tornar-se artificial e gerar um desequilíbrio entre oferta e demanda.

Há, ainda, a questão do interesse próprio na produção e consumo. A tendência é o dono cuidar melhor de sua empresa do que outrem faria se a administrasse e da mesma forma quem melhor sabe o que precisa ou gostaria de adquirir é o próprio adquirente — e não terceiro. Assim, a oferta e consumo devem ocorrer dentro do Mercado — e não dentro do Estado.

As premissas postas acima são, em regra, corretas e justificam plenamente o modo de produção capitalista. Isso porque na produção e oferta de bens a intervenção estatal não se revela benéfica na medida em que o preço de algo não pode ser atribuído burocraticamente, mas deve sim decorrer do equilíbrio entre a oferta e a demanda a ocorrer no seu ambiente próprio, a saber, o do Mercado.

Entretanto, há na realidade nuances que não podem ser simplesmente desconsideradas em nome da justificação acrítica do quanto exposto acima.

Em primeiro lugar, há bens comuns, coisas fora do comércio que não podem ser deixadas nas mãos dos particulares e cuja administração — e não a propriedade — deve ser deixada para o Estado. O Meio Ambiente é o exemplo mais elementar a afastar a apropriação e comercialização, sendo que não se mostra passível de produção [1] e cujo gozo é (quase [2]) sempre público. Nesse tipo de situação, crer na gestão autointeressada representaria a chancela de benefícios privados e de prejuízos públicos. [3]

Uma segunda restrição ao livre mercado consiste na situação na qual o número de agentes econômicos é muito reduzido e isso pode dar-se em razão da dificuldade de ingresso de novos players decorrente do elevado investimento para produção de determinados bens e serviços, detenção de patentes [4], tempo para início da produção em larga escala, etc. Afinal, o Mercado não consegue alocar de forma eficiente os recursos quando houver: falta de mobilidade (os agentes econômicos não agem tão rápido quanto deveriam), falta de transparência (assimetria de informações quando das contratações), concentração econômica (falta de um número competitivo de agentes econômicos e/ou concatenação das condutas para burlar a concorrência), externalidades (falta de incorporação no preço de danos e benefícios ocasionados à sociedade quando do consumo e da produção) e falta de incentivos para a valorização dos bens coletivos públicos [5].

Assim, não se pode vislumbrar uma livre concorrência quando há sérios óbices para a entrada de novas empresas em determinado segmento, de forma que ocorreria um oligopólio e até mesmo uma tendência para o monopólio em detrimento do consumidor, desequilibrando-se a oferta e a demanda em detrimento da parte mais fraca da relação. Desse modo, revela-se absolutamente legítima a atuação do Cade e da imposição da legislação antitruste.

À três, o Mercado não funciona bem quando há uma forte disparidade negocial, seja por razões econômicas (poder de barganha), seja informacionais ou, ainda, de ordem técnica, jurídica ou política. É óbvia a discrepância da liberdade de contratação de um trabalhador que procura emprego e de quem deseja contratar um empregado. Enquanto um tem pressa porque tem contas a pagar, o outro quer produzir, mas empreendendo já revela que tem as necessidades básicas supridas. É claro que se deve incentivar o empreendedorismo, mas não é razoável ter o empresário como alguém na mesma situação existencial do que o candidato a empregado. De igual modo, dá-se em sede de fornecedor-consumidor. A aquisição dos bens produzidos por terceiros é inevitável na quadra atual da história, mas não se concebe que o consumidor possa debater com o produtor os termos da contratação e é certo que o adquirente pouco conhece do modo de produção e dos riscos do consumo. Daí a importância da intervenção normativa (por exemplo CLT e CDC).

Em quarto lugar, ainda que se tenha como correta a premissa de que ninguém melhor do que o próprio dono para saber o que vai fazer com sua propriedade, revela-se certo que em dadas circunstâncias sua vontade deve ceder em nome de um interesse maior. O uso de imóveis com interesse meramente especulativo ou os maus-tratos aos animais são dois exemplos de desconsideração da função social das coisas a deslegitimar a propriedade. É claro que deve ser incentivado o uso adequado da coisa, antes de desapropriação e, salvo hipótese gravíssima (por exemplo cultivo de drogas em imóvel rural), mediante indenização justa e prévia.

Um quinto tópico a ser tido em conta diz respeito a presumir-se que quem tem maior interesse no bem estará disposto a pagar mais por ele, o que seria extremamente interessante, pois a eficiência do Mercado ensejaria a maximização do bem-estar dos indivíduos mediante a disponibilização para quem mais seria satisfeito com o bem. Tal presunção é adequada na maioria das vezes, mas nem sempre.

Isso porque, conforme exemplificado pelo mais feroz defensor da ideia de eficiência, a saber, Richard Posner [6], quando uma pessoa precisa pouco de algo e tem muito dinheiro e, ao mesmo tempo, há outra que muito necessita do mesmo bem e que não possui boa capacidade financeira, o Mercado acaba entregando o bem para quem puder pagar mais, ainda que precise menos.

Assim, quando o valor do bem e seu preço são altos, então o caso é, em regra, de produção no Mercado e aquisição pelo Estado para direcionamento para a população carente, mas, excepcionalmente, de produção pelo próprio Estado, quando a iniciativa privada não tiver se disposto a produzir determinados bens de alto valor social (p. ex. medicamentos para doenças raras).

De tudo quanto exposto emerge a necessidade de atribuição ao Mercado, em regra, da produção e circulação de bens e serviços, prevalecendo a vontade dos envolvidos, excepcionando-se sua atuação livre quando houver:

a) assimetria econômica, informacional, técnica, jurídica ou política;

b) bem cuja produção não seja privada e sua apropriação privada puder resultar em grave prejuízo à comunidade;

c) risco da produção concentrar-se de tal modo a ponto de deixar o consumidor em situação muito fragilizada, pois estaria ocorrendo um desequilíbrio entre oferta e demanda em razão da inviabilidade de outros agentes econômicos participarem do mercado daquele seguimento;

d) uso especulativo ou socialmente atípico do bem, violando-se, assim, sua função social;

e) o valor e o preço do bem sejam extremamente elevados, impossibilitando sua obtenção por quem não possui condições financeiras para tanto.

Em todas as hipóteses de intervenção estatal, deve ser analisada a essencialidade do bem, pois um medicamento ou uma cirurgia merecem um olhar diferenciado comparado a bens que não se mostrem essenciais [7]. De igual modo, a atuação do Estado deve ser a minimamente necessária, devendo ser analisada a adequação da espécie de intromissão estatal, não podendo o Estado fazer-se presente como agente econômico quando o correto seja a intervenção normativa a equalizar os interesses dos envolvidos, bem como a atuação normativa também não deve ocorrer quando o caso foi de outra espécie de manifestação estatal.

Daí não dever o Estado utilizar o Direito Privado para realizar redistribuição de riquezas, pois inadequado tal ramo jurídico que se revelará, aliás, muito menos eficiente do que a arrecadação via Direito Tributário e a prestação de caráter assistencial [8]. Uma intervenção equivocada (por exemplo declaração de inconstitucionalidade da autorização legal para desconto em na fonte para fins de pagamento de empréstimo consignado) pode ensejar um grave prejuízo a quem se almejou proteger por meio da intromissão (sem a possibilidade do desconto a oferta de crédito aos mais pobres diminui e encarece, dada a falta de garantias).


1 A intervenção humana pode ensejar a produção de bens naturais (p. ex. frutas, grãos, etc.), mas não pode criar a Natureza considerada por si só.

2 É claro que há exceções como a colheita e consumo de uma maçã que frutificou espontaneamente na Natureza.

3 Para uma análise detida do problema: SALOMÃO FILHO, Calixto. Reflexões sobra a disfunção dos mercados. In: FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes; ADAMEK, Marcelo Vieira von. Temas de Direito Empresarial e outros estudos em homenagem ao Professor Luiz Gastão Paes de Barros Leães. São Paulo: Malheiros, 2014, p.294-315. Também apontando sobre o problema da falta de incentivos para o cuidado com os bens públicos: NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: Introdução ao Direito Econômico. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 141-167.

4 Aqui vem a calhar o notório exemplo da quebra de patentes relativas aos medicamentos para tratamento da AIDS feita pelo Brasil.

5 NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: Introdução ao Direito Econômico. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 141-167.

6 Segundo Posner (Economic Analysis of Law. 6 ed. New York: Aspen Publishers, 2003, p. 10): “A poor family has a child who will be a dwarf if he does not get some of extract, but the family cannot afford the price and could not even if it could borrow against the child’s future earnings as a person of normal height, because the present value of those earnings net of consumption is less than the price of extract. A rich family has a child who will grow to normal height, but the extract will add a few inches more, and his parents decide to buy it for him. In the sense of value used in this book, the pituitary extract is more valuable to the rich than to the poor family, because value is measured by willingness to pay; but the extract would confer greater hapiness in the hands of the poor family than in the hands os the rich one.”

 

7 A questão da essencialidade foi bem apontada por: NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 379 ss.

8 Nesse sentido: TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover os direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Organizadores). Direitos Fundamentais, Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 55-68. TIMM, Luciano Benetti. O Novo Direito Civil: ensaios sobre o mercado, a reprivatização do direito civil e a privatização do direito público. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

 

Autores

  • é juiz federal substituto da 3ª Região, mestre em Direito (PUC-RS), especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo/Espanha).

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