Retrospectiva 2015

Ano foi marcado por pressão e intimidação à imprensa

Autor

  • Alexandre Fidalgo

    é doutor em Direito pela USP mestre em Direito pela PUC-SP advogado e sócio do escritório Fidalgo Advogados. Integrante do conselho jurídico da Fiesp e do conselho de liberdade de expressão da OAB Federal.

3 de janeiro de 2016, 6h33

Recebi, nesses últimos dias do ano, de uma brilhante colega advogada, um cartão de boas festas, trazendo uma citação de Aristóteles, que dizia: “A esperança é o sonho de homem acordado”.

Tomo aqui emprestada a frase do filósofo grego para escrever pequenas lembranças a respeito da Liberdade de Expressão do ano que se encerra. E rememorar os acontecimentos do ano nessa matéria traz uma mistura de sentimentos.

No campo legislativo, foram muitas as tentativas de se tolher a atividade jornalística e, por conseguinte, a liberdade de expressão. O projeto 1.589, de 2015, de autoria da deputada Soraya Alencar dos Santos, do PMDB do Rio de Janeiro, propõe uma reforma no Marco Civil da Internet, ao sustentar que qualquer autoridade competente possa requerer acesso a dados de qualquer internauta, sem a necessidade de se utilizar da via judicial para tanto, podendo, também, ter acesso a todas as comunicações do usuário de internet (mensagens do Facebook, Twitter e WhatsApp).

Outra proposta legislativa que atenta à atividade de informação é a assinada pelo atual presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, também do PMDB do Rio de Janeiro. Seu projeto propõe a remoção de links dos mecanismos de busca da internet que façam referência a dados irrelevantes ou defasados sobre o envolvido.

Já tratamos a respeito do direito ao esquecimento na coluna que assino nessa revista eletrônica[1], e o que chama atenção no projeto do ilustre deputado é que a preocupação em tutelar o direito da intimidade parece alcançar interesses próprios, ou seja, o projeto cuida de viabilizar que informações públicas e de interesse público a respeito do homem público, incluindo político, poderiam ser facilmente excluídas da história da vida dessas pessoas, mantendo-se, apenas, os atos benfazejos que realizam. As alegadas ofensas a políticos, invariavelmente verdades ditas sobre eles, seriam expurgadas do conhecimento da sociedade.

Para registro final no campo legislativo, tivemos a promulgação da Lei 13.188 (Lei que disciplina o exercício do direito de resposta). O legislativo novamente buscou legislar em causa própria, obstaculizando a atividade jornalística com o procedimento jurisdicional adotado para o exercício do direito de resposta. Insistimos que o melhor caminho seria tutelar a resposta às questões objetivas veiculadas na imprensa, de modo que a resposta, lato sensu, recairia sobre inverdades e erronias, mas não sobre opinião[2]. Além disso, ao permitir a possibilidade de tutela antecipada satisfativa, sem possibilidade de reversão ao final do processo, pensamos, além de haver inconstitucionalidade nesse ponto, estar revelada a proposta legislativa de punir ou intimidar a imprensa. Outra severa crítica a ser feita, e que também está a revelar o propósito de punir a imprensa, diz respeito aos prazos de apresentação da chamada defesa prévia (24 horas) e da contestação (3 dias), além da impossibilidade de haver instrução probatória no processo. Sabemos que a prova da veracidade da informação veiculada nem sempre está na posse do veículo difusor ou de seus profissionais, daí a necessidade de haver, para uma correta distribuição da justiça, uma fase de instrução plena, em que se permita a colheita e a produção de provas.

O propósito da lei também ficou evidente ao se impor que as decisões havidas em primeiro grau fossem analisadas em duplo grau de jurisdição, somente por um órgão colegiado, o que acabou sendo corretamente afastado, com decisão liminar do ministro Dias Toffoli, em face da propositura da ADI 5.415 pela OAB Federal. Também a reforçar o propósito de intimidação à atividade de imprensa, a redação original da Lei 13.188 permitia que o efetivo exercício da resposta, junto aos veículos de radiodifusão, fosse realizado pelas alegadas vítimas da imprensa (autores das medidas), o que acabou não sendo sancionado pela Presidência da República. De boa ordem o veto presidencial, pois, na medida em que as bancadas dos veículos de comunicação fossem ocupadas por políticos para declararem suas respostas, teríamos, sem dúvida alguma, um novo palanque político, numa evidente invasão de autonomia e independência de conteúdo jornalístico.

Tivemos também o assombroso atentado à redação do jornal francês Charlie Hebdo, que publicara, em suas páginas, caricaturas de Maomé. O atentado ao jornal envolveu motivações outras, mas representou também uma intimidação à palavra e aos valores democráticos, que pressupõem uma imprensa livre, inclusive sem barreiras para o humor[3]. Aqui no Brasil, houve quem buscasse também censurar programas humorísticos, como o Porta dos Fundos, que veiculou em suas páginas sátiras das passagens bíblicas relacionadas ao nascimento e à crucificação de Cristo.

Também políticos e partidos investiram judicialmente contra a imprensa. Inúmeras ações foram distribuídas contra veículos de comunicação e, sobretudo, contra jornalistas com o evidente propósito de intimidação. Ações penais e ações indenizatórias, sob a alegação de ofensa — que, como já se disse, na maioria das vezes, constitui meras verdades —, foram aos montes ajuizadas. O simples relato das campanhas eleitorais para a disputa presidencial de 2014, bem como a informação de que um ex-presidente ainda se tratava de uma doença terrível, para citarmos dois exemplos, motivaram algumas demandas judiciais nesse ano de 2015.

Destaque especial para ações penais contra jornalistas, advindas de toda sorte de político e de Partido Político. As ações penais contra jornalistas, em decorrência de sua atividade profissional, haviam diminuído bastante a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, momento em que efetivamente se reconheceu a possibilidade de indenização pela ofensa à dignidade.

O avanço em 2015 de uma quantidade grande de ações penais ajuizadas pelos políticos e seus partidos, em razão do exercício da crítica feita por profissionais da imprensa, revela, sem sombra de dúvida, que o ano foi marcado por uma pressão e uma intimidação à imprensa. E parece-nos que, tal como a obra de Homero, nuvens escuras se lançam sobre a planície, já que essa “estratégia” deve ser repetida em 2016, em razão de ser um ano eleitoral e também pelas operações policiais que tramitam no país, envolvendo nossos representantes parlamentares.

Mas não é só de intimidações que a imprensa viveu no ano de 2015. Há também o que comemorar. Tivemos novamente o Supremo Tribunal Federal a garantir a premissa de todo Estado que se propõe democrático.

Destaco o julgamento da ADI 4.815, que discutia a necessidade de autorização prévia do biografado — ou de seus legitimados — para a publicação de obra biográfica. A corte reiterou a mensagem já declarada na ADPF 130, que afastou do ordenamento jurídico a antiga Lei de Imprensa, ao interpretar que, no juízo de ponderação entre valores de direito fundamental hierarquicamente iguais, o direito à informação possui prevalência. A necessidade de autorização prévia para a publicação de obra biográfica constituiria uma forma de censura. Disse a ministra Cármen Lúcia, relatora da ADI 4.815: E entre a história de todos e a narrativa de um, opta-se pelo interesse de todos.

Como já pudemos escrever nesse espaço (A consagração da democracia pelo Supremo[4]), a corte constitucional mais uma vez sinalizou que o comportamento social esperado, no campo da democracia, é o prestígio à liberdade de expressão. Nesse sentido, vale citar trecho do ministro Barroso, que bem sintetiza o que defendemos: A liberdade de expressão não é uma garantia de verdade nem de Justiça; é garantia de democracia.

Também do Poder Judiciário temos outra notícia alvissareira. Finalmente um veículo de comunicação conseguiu acesso à caixa preta do BNDES. Ainda que alguns dados tenham sido protegidos pelo Supremo Tribunal Federal, é, todavia, de se comemorar a efetividade dos princípios republicanos e democráticos assegurados pelas decisões do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, na aplicação da chamada lei de transparência (Lei 12.527). A Folha de S.Paulo trava há alguns bons anos uma disputa judicial com o BNDES para ter acesso aos relatórios que justificam os empréstimos bilionários concedidos pela instituição. Em dezembro de 2015, conseguiu cumprir efetivamente a decisão liminar proferida pela Justiça Federal da 2ª Região. Trata-se de um grande feito para a atividade jornalística, que, espera-se, possa agora ter acesso completo aos dados e informações de interesse público evidente.

Reiterasse aqui que o controle da legitimidade da utilização dos recursos públicos se faz, também, pelo papel exercido democraticamente pela imprensa como difusora de informações de interesse público e fiscalizadora dos agentes do Estado (Imprensa controla a legitimidade da utilização de recursos públicos[5]), tal como fundamentou o desembargador Guilherme Calmon Nogueira da Gama, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que deferiu pedido de tutela antecipada recursal em agravo de instrumento interposto pela Folha de S.Paulo: sendo atividade dos órgãos de comunicação social também o levantamento de dados para permitir a maior transparência possível à população a respeito do uso dos recursos públicos.

O ano também foi marcado pela insistência na retirada de material jornalístico do mundo virtual, como se essa plataforma de comunicação permitisse uma flexibilização da garantia constitucional que impede qualquer espécie de censura aos veículos de comunicação e seus conteúdos. Retirar conteúdos jornalísticos de sites, impor correções em textos virtuais, simplesmente por serem virtuais, como se a Justiça estivesse a editar em conjunto com o veículo determinadas matérias, constitui também censura. E foram inúmeras nesse sentido, felizmente revertidas pelo Supremo Tribunal Federal[6], que continua a ser o esteio da atividade jornalística, assegurando os princípios democráticos por vezes violados nas instâncias inferiores.

A liberdade de expressão, sem dúvida alguma, foi, em 2015, exercida pelos cidadãos brasileiros, que, em continuidade “ao levante” de 2013, ocuparam as ruas para manifestarem desejos de mudanças, indignação com a política, com os políticos e seus partidos, dentre uma profusão de reivindicações. Em março de 2015, milhares de pessoas ocuparam as ruas do Brasil com pedidos que marcaram o ano. Dentre os pedidos, um chamou bastante a atenção: a volta do regime militar no Brasil. Condenamos, em artigo aqui escrito (“Gritar fora Dilma é fácil, difícil é gritar fora Castello Branco”[7]), essa manifestação, por entendermos absolutamente incompatível com o modelo democrático, que significa o governo formado pelos cidadãos, em que os representantes são escolhidos livremente pelo voto, ou seja, o Estado de Direito que impõe estruturas estatais pautadas pelos critérios do Direito, e não pelas da força, da prepotência ou do arbítrio. Nesse sentido, é sempre bom lembrar da frase de Winston Churchill de que a democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas.

Também na linha dos absurdos, que só no regime democrático tem convivência com um Estado de Direito, o ano foi marcado por declarações insólitas pela maior liderança do partido político que ocupa, há anos, o posto de mandatário da República. No V Congresso do Partido dos Trabalhadores, escutamos, atônitos, que a imprensa é um mal à democracia, debochando, inclusive, das inúmeras demissões de jornalistas acontecidas em 2015. Gostem ou não, políticos ou partidos, como já dizia Millôr Fernandes, a imprensa é a oposição. O resto é armazém de secos e molhados.

Por fim, fica aqui o registro impressionante da quantidade de profissionais da imprensa que morreu no exercício de suas atividades, na cobertura de guerras e conflitos pelo mundo em 2015. Evidente que esse dado, isolado, não significa um atentado à democracia, pois as áreas conflagradas, por si sós, constituem riscos eminentes. Mas o que assusta, da informação divulgada pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, é o número de profissionais que tiveram suas vidas interrompidas no Brasil, um total de sete, aí sim, fruto da violência de quem ainda não assimilou a forma política e de Estado que o Brasil vive e que a sociedade optou.

Daí não resta alternativa a não ser a esperança. Não aquela do verbo “esperar”, que pode significar inércia, acomodação; mas, sim, do verbo “esperançar”, de ir atrás, como uma força que nos torna resilientes, de buscar a realização de um país democraticamente melhor, com uma imprensa sem freios. Estejamos, portanto, acordados em 2016, posto que, como disse Aristóteles, a esperança é o sonho do homem acordado.

Uma ótima democracia, com uma imprensa atuante e livre, é a esperança para 2016!


1 Direito ao esquecimento não pode ir contra evolução trazida pela tecnologia, de 6 de maio de 2015

http://www.conjur.com.br/2015-mai-06/liberdade-expressao-direito-esquecimento-nao-ir-evolucao-tecnologia

Autores

  • Brave

    é sócio titular do escritório Fidalgo Advogados, doutorando em Direito Constitucional na USP; mestre em Processo Civil pela PUC-SP; especializado em Direito da Comunicação e Direito Penal.

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