Opinião

Supremo comete erro grave no julgamento do rito do impeachment

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2 de janeiro de 2016, 6h01

Nos dias 16 e 17 de dezembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 378, definiu o rito a ser aplicado ao processo de impeachment do presidente da República.

Quase todas as decisões do STF no âmbito desse processo são consistentes e revelam um caminho juridicamente possível entre alternativas emergentes da ordem jurídica. Nesse sentido, a discordância é viável, mas deve ser reconhecido que o Supremo Tribunal Federal atuou como guardião da Constituição, nos termos do artigo 102 do Texto Maior. É o caso da fixação dos papéis da Câmara e do Senado no processo de impeachment. Creio que a melhor inteligência do conjunto do Texto Maior aponta para a admissão da acusação pelos deputados e julgamento, sem renovação do juízo de admissibilidade, pelos senadores. Entretanto, a redação do artigo 52, inciso I, da atual Carta Magna, diversa da Constituição anterior, consagra como razoável e aceitável o entendimento majoritário do STF nessa questão.

Ocorre que existe um ponto em que as considerações acima não se aplicam. Trata-se da decisão relacionada com a composição da comissão especial de deputados que aprecia a denúncia popular recebida pelo presidente da Casa. Por sete votos a quatro, o Plenário do STF definiu que não pode ser lançada chapa avulsa para compor a referida comissão. Nesse sentido, votaram os ministros Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski. Contra o entendimento majoritário votaram os ministros Edson Fachin, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello.

Em função da separação dos poderes do Estado, um dos mais importantes fundamentos da República, inscrito no artigo 2o da Constituição, existem limites para a atuação do Judiciário, mesmo do STF, em relação ao Poder Legislativo (Câmara dos Deputados e Senado). São conhecidas como interna corporis as matérias decididas pelo Legislativo e inalcançáveis por manifestação judicial.

A Constituição, e só a Constituição, delimita as questões tidas como interna corporis. Afinal, as disposições constitucionais não podem ser desconsideradas ou afrontadas em função de um postulado também constitucional (a separação dos poderes). Assim, para resguardar a Constituição, mais precisamente a supremacia da Constituição, é válido, desejável e imperioso que o Judiciário atue, com energia e firmeza, contra os desvios constitucionais verificados no âmbito de atuação do Legislativo.

Por conseguinte, se a matéria ou questão não for constitucional, ou seja, estiver circunscrita ao plano interno, não será legítima a interferência do Poder Judiciário, mesmo por intermédio de sua voz mais autorizada representada pelo Supremo Tribunal Federal.

Segundo o ministro Roberto Barroso, definido como redator para o acórdão da deliberação colegiada referida, “é incompatível com o artigo 58 e parágrafo 1º da Constituição que os representantes dos partidos políticos ou blocos parlamentares deixem de ser indicados pelos líderes, na forma do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, para serem escolhidos de fora para dentro, pelo Plenário, em violação à autonomia partidária”.

Diz o artigo 58 do Texto Maior: “O Congresso Nacional e suas casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação./§ 1º Na constituição das mesas e de cada comissão, é assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa”.

Assim, por expressa disposição constitucional, a forma de constituição das comissões parlamentares é matéria claramente interna corporis, a ser efetivada pela via do regimento interno ou pelo ato de criação do colegiado. Existe um limite, de índole constitucional, a ser respeitado. Trata-se, tanto quanto possível, da representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares.

Nessa linha, a interferência do Poder Judiciário, por intermédio do Supremo Tribunal Federal, na formação das comissões parlamentares somente pode ser legitimamente feita para proteger a proporcionalidade da representação dos partidos ou blocos. As demais questões, especificamente a apresentação de candidaturas avulsas, resguardada a proporcionalidade, escapam do raio de ação do Poder Judiciário em homenagem ao princípio nuclear da separação dos poderes.

Esse raciocínio, ademais, prestigia a autocontenção como uma das formas de evitar o ativismo judicial indevido. Vale sublinhar que o ativismo judicial em si não é indesejável, notadamente porque significa a aplicação e realização dos valores e princípios constitucionais. O problema, aliás, o maior problema do constitucionalismo na atualidade, é justamente desenhar os limites da aplicação judicial da força normativa da Constituição. O papel da autocontenção é especialmente relevante quando impede intervenções judiciais em matérias politicamente controvertidas sem uma diretriz constitucional clara e amplamente reconhecida. Com efeito, não parece razoável, nessas circunstâncias, transformar o Poder Judiciário em espaço definidor daquilo que é, na essência, a luta política.

Por fim, deve ser lembrada a antiga lição de hermenêutica que aponta no sentido do abandono das soluções interpretativas evidentemente irrazoáveis ou absurdas. Nesse caso, a decisão do STF pela impossibilidade de candidaturas e chapas avulsas anuncia um impasse institucional denunciador de seu equívoco. Afinal, se o plenário da Câmara dos Deputados recusar a composição da comissão especial do impeachment indicada pelos líderes partidários, única solução admitida pelo STF, o processo ficaria literalmente paralisado.

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