Retrospectiva 2015

Empresas e Justiça aprendem a lidar com propriedade intelectual e tecnologia

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2 de janeiro de 2016, 6h34

As decisões prolatadas em 2015 apontam no Brasil tanto avanços como retrocessos nos diversos segmentos da produção intelectual, e, por vezes, entre distintos atores sociais, as opiniões serão divergentes sobre o mesmo fato social.

Por exemplo, a suspensão do incentivo fiscal da chamada Lei do Bem, proposta pela Medida Provisória 269, foi aprovada com unanimidade pelo Senado Federal, contudo, tendo em vista o conturbado cenário político, não houve sequência à referida tramitação, assim, por hora, a Lei do Bem continua em vigência — o que é muito positivo para os empreendedores e para os consumidores.

No julgamento do REsp 1.272.897/PE, confirma-se o entendimento do STJ de que não cabe IRRF retido na fonte sobre valores referentes a serviços técnicos e de assistência técnica prestados por empresa estrangeira, sem a respectiva transferência de tecnologia; reconhecendo-se que a natureza dos rendimentos difere-se do conceito de lucro na forma do Acordo Internacional entre Brasil e Espanha para se evitar bitributação.

A decisão aplica a corrente doutrinária que defende a supremacia dos tratados tributários internacionais quando em confronto com a legislação interna nacional, sob os fundamentos de que a prevalência decorre em razão da especialidade e do comando do artigo 98 do Código Tributário Nacional (CTN), segundo o qual os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna.

Se houver uma enquete para se escolher qual o tema que levou toda a sociedade ao debate em 2015, naturalmente deixando de fora aqueles afeitos à política e futebol, acredita-se que a discussão acerca da privacidade na sociedade contemporânea fique em destaque. Todas as vezes que se clica positivamente em acessos “gratuitos”, em regra, há uma contrapartida do usuário. Algumas políticas de uso e privacidade são muito bem elaboradas, uma pena que ninguém as lê.

As difíceis discussões acerca da privacidade de dados remontam do ambiente analógico, portanto, muitas empresas estão enfrentando os riscos inerentes às políticas institucionais de proteção de dados coletados e/ou tratados. Trata-se de dados cadastrais realizados originalmente para uma determinada finalidade. O usuário concorda com o acesso de sua base de dados para a sincronização de informações. Realizada a sincronização, os dados armazenados em nuvem ou servidor, em regra, não poderiam ser disponibilizados pela empresa para outros projetos.

O Projeto de Lei de Proteção de Dados (PL 330/2013) fala em dados pessoais (“qualquer informação referente a pessoa natural identificável ou identificada”) e em dados pessoais sensíveis (“qualquer dado pessoal que revelem a orientação religiosa, política ou sexual, a convicção filosófica, a procedência nacional, a origem racial ou étnica, a participação em movimentos políticos ou sociais, informações de saúde, genéticas ou biométricas do titular dos dados”).

O tratamento dos dados essenciais de terceiros — no projeto de lei, definido no artigo 3º, IV — pode ser mais ou menos conservador, mais ou menos ousado. As políticas de uso e privacidade são criadas e atualizadas conforme o modelo de negócio, a estratégia empresarial e os valores de cada empresa.

As empresas estão acostumadas a lidar, de forma geral, com riscos em relação à produção, mas ainda é bastante novo o risco em face do tratamento de dados, que implicam informações privadas armazenadas sob a guarda e zelo da empresa, informações essas sobre a vida de pessoas físicas e pessoas jurídicas.

Os ataques terroristas ocorridos recentemente assombram a segurança coletiva dos eventos internacionais de grande repercussão, como os jogos olímpicos. Todos os aparatos de segurança serão utilizados, incluindo-se o monitoramento por câmeras de tudo que se mova dentro das arenas e por certo perímetro.

Na ponderação de valores fundamentais, tais como o direito à privacidade e o direito à vida e segurança da coletividade, sugere-se a mitigação das reservas das individualidades para a salvaguarda da coletividade.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 4.815, proposta pela Associação Nacional de Editores de Livros (Anel), a qual tinha por objeto a discussão das biografias não autorizadas, firmou o entendimento de que não admitirá qualquer tipo de censura que se pretenda exercer sob o argumento de proteção da privacidade.

Os ministros entenderam que nas hipóteses de conflito aparente de direitos fundamentais, como os direitos à liberdade de expressão e à privacidade (intimidade como gênero), justifica-se a mitigação da reserva da proteção individual em benefício do interesse coletivo, tal como informações da vida privada que sejam indispensáveis ao esclarecimento de fatos sociais (cultural, histórico ou científico).

O julgamento ocorreu mediante acalorado debate entre os ministros, em especial, acerca do sopesamento a ser adotado como regra geral. Algumas passagens do voto da ministra relatora Cármen Lúcia e do ministro Luís Roberto Barroso, votos provisórios publicados, demonstram uma tendência à patrimonialização dos direitos da personalidade e a restrição do uso das tutelas acautelatórias/inibitórias para a preservação da reserva da privacidade, conforme o caso concreto, o que é preocupante e visto como retrocesso. O acórdão definitivo ainda não foi publicado.

O caso Cicarelli x Google (REsp 1.492.947) foi julgado pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. A corte analisou o cálculo da multa em razão do descumprimento da ordem judicial para a retirada do vídeo pelo YouTube. O relator ministro Luis Felipe Salomão afirmou que o procedimento de liquidação seria ineficaz para o caso e, dessa forma, por unanimidade, decidiu-se que a quantia total de R$ 500 mil seria apta a sancionar o descumprimento da ordem judicial.

A discussão acerca do uso de tecnologia para o aperfeiçoamento da oferta de comodidades na prestação de serviços de transporte terrestre e individual de pessoas terminou o ano com a aprovação na Câmara dos Vereadores de São Paulo do PL 421/15, votado no dia 22/12 para a legalização do modelo de negócio da empresa norte-americana Uber.

Foi um ano onde muitos serviços passaram a ser oferecidos por aplicativos, não só os de transporte, mas também os de hospedagem (como o Airbnb), os de restaurantes (como o iFood). Seriam integrantes da economia compartilhada? Não. Simplesmente por não compartilharem os serviços, mas comercializarem os serviços. O compartilhamento, de fato, ocorre no caso dos aplicativos de carona, dentre os quais estão BlaBlaCar, Carona Brasil, TripDa e Caron.

Ainda tratando de regulação, ou melhor, da falta dela, paralelamente ao transporte terrestre iniciou-se um embate no universo de transmissão de dados por voz e dados entre as prestadoras de serviços de telefonia e a empresa WhatsApp. Discutiu-se a prática de concorrência desleal pela WhatsApp quando oferta serviços gratuitos a seus clientes, mediante a utilização da rede de dados das teles sem a devida remuneração.

O usuário-cliente de serviços considerados gratuitos não se atenta para o código de conduta ética do consumidor para com a sociedade como um todo. Ainda que esse cidadão não tenha os serviços públicos devidos pelo Estado e seus entes delegados, ele “lava as mãos” para continuar atirando pedras nos políticos e nos técnicos de futebol.

A 2ª Turma do Tribunal Regional Federal, em São Paulo, entendeu que o crime de quebra de segredo de Justiça somente pode ser aplicado àqueles que têm acesso legítimo e direto ao segredo (Habeas Corpus 0014097-92.2014.4.03.0000/MS). A veiculação de informações de inquérito policial sigiloso é acatada como legítimo exercício da liberdade de expressão no exercício do jornalismo investigativo. Essa decisão, assim como o posicionamento do Plenário do STF, acena com a priorização da liberdade de expressão nos casos de conflito de direitos fundamentais, justificando-se o relevo do interesse público quanto à informação veiculada, sem qualquer mácula a direitos da personalidade. Independentemente da atipicidade do crime no caso concreto, fica um questionamento sobre os limites éticos.

Os indícios da tendência ao patrimonialismo dos direitos de personalidade, podem também ser observados nos casos de disputa de patronímicos, os nomes de pessoas usados como sinal distintivo de um produto ou serviço, ou seja, como marca. Se, por um lado, entende-se que o nome civil é um direito indisponível e, por isso, não pode ser objeto de ampla cessão, por outro, a 3ª Turma do STJ reconhece como válida a cessão do mesmo nome como marca registrada, em face da força da obrigação contratual. Essa mesma questão foi discutida entre a Universidade Hebraica de Jerusalém e o Hospital Albert Einsten. A Universidade não se opõe ao uso do nome do cientista na identificação do hospital, mas se opõe ao registro do nome como marca, o que parece ser coerente com a reserva dos direitos de personalidade de Albert Einsten.

A 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que o estilista Marcelo Sommer não pode usar o próprio nome no exercício de sua profissão, dada a venda de sua empresa. Os direitos fundamentais de identidade profissional e de autor de criações de moda são tratados com menoscabo, sobrepondo-se à prestação jurisdicional a literalidade da força do pacta sunt servanda sem qualquer ponderação de outros princípios e valores fundamentais do direito reafirmados pelo Código Civil de 2002.  Se vedada a comercialização do nome civil, haveria de se delimitar a transmissibilidade do nome civil como marca ao regime do licenciamento. A discussão limitou-se a uma análise sob a ótica do competitivo universo da moda, sem levar-se em conta o cerceamento imposto a pessoa humana do criador intelectual. Essa decisão pode ser aceitável do ponto de vista da Lei 9.279 de 1996, mas se apresenta imponderada quando proíbe um homem de usar o seu nome no exercício de seu ofício. Não se pode dissociar a criação do criador. No direito de autor, há o direito ao arrependimento, justamente em função da natureza dúplice da proteção afeita à criação intelectual. O estilista Tufi Duek foi também vítima de semelhante decisão.

O ano de 2015 foi intenso para as ações que discutiam a utilização de marcas e concorrência desleal. Entre as decisões notórias, o Superior Tribunal de Justiça julgou o caso das pastilhas Tic Tac e os biscoitos recheados de mesmo título. O STJ julgou o uso da marca pelos biscoitos recheados como violação da Lei de Propriedade Industrial, deste modo, reformando a decisão do TRF-3, a qual permitia a coexistência das duas marcas no mercado. Ainda na matéria de coexistência de marcas, em junho de 2015, o STJ aplicou o teste 360° para avaliação de conflito de marca, o que claramente será uma tendência nas demais cortes nesse tipo de conflito.

Outro tema abordado pelo STJ foi a questão de marca de alto renome. No caso Omega S.A. e a microempresa Omega Comércio e Indústria de Móveis Ltda., o STJ decidiu que a Lei 9.279/96 aboliu o registro de marca notória, passando a adotar a marca de alto renome na forma do artigo 125 da Lei. Para o ministro Villas Bôas Cuerva, se o INPI indeferiu o pedido de alto renome à marca “Omega”, não cabe ao Judiciário substituir a autarquia em sua função administrativa de avaliar os critérios necessários. Desta decisão, deduziu-se que a marca “Omega” deverá respeitar o princípio da especialidade. O princípio da especialidade é recorrente nas decisões a respeito de marca, basta analisar a decisão do TRF-3 que permitiu o uso não exclusivo da marca “Pestalozzi” em diferentes produtos. Pode-se citar a permissão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região para o registro e uso da marca Dois Corações (doces e salgados de confeitaria curitibana) em detrimento das teses e manifestações dos titulares da marca Três Corações (empresa de café). Por fim, outra tendência dos Tribunais Federais foi reconhecer que palavras e símbolos genéricos podem não ser registrados, conforme decisão do TRF-4  a respeito da marca Oceano Sports, de Joinville, Santa Cararina, processo 5000224-46.2011.4.04.7200.

A concessão da indicação geográfica agrega valor ao produto e conduz à melhora da qualidade da cadeia produtiva, valorizando a mão-de-obra do território e do know-how local. No ano de 2015 foram concedidos três selos pelo INPI. A região do Pantanal passou integrar a relação dos produtos nacionais a obter a indicação geográfica em virtude do mel produzido naquela região. Tal título foi concedido em virtude de diversas floradas das plantas silvestres daquela área. O mel da Ortigueira/PR recebeu o título de denominação de origem, baseado nas características físico-químicas e das condições botânicas da região. A cidade de Farroupilha, no Rio Grande do Sul, com sua tradicional produção de vinho, recebeu indicação de procedência para o vinho Moscatel. A tradicional linguiça do município de Maracaju, Mato Grosso do Sul, recebeu selo de indicação de procedência.

A propaganda comparativa autorizada pelo Conar, e reconhecida pela jurisprudência como uma importante ferramenta de informação ao consumidor, foi levada à discussão no STJ, por meio do REsp 1.377.911, Nestle x Danone. A 4ª Turma considerou legal a propaganda comparativa entre dois produtos, desde que não haja ofensa à marca do concorrente.

A Comissão Europeia traçou, no início de dezembro, a primeira proposta de concretização de sua estratégia de um Mercado Único Digital. Nesse sentido, formam-se duas linhas de ação: a primeira, visando a permitir a portabilidade transfronteiriça dos conteúdos em linha (por exemplo, difusão de filmes, emissões desportivas, música, livros eletrônicos ou jogos) – esse novo direito do consumidor deverá tornar-se tangível a partir de 2017, ano em que serão eliminadas as tarifas de itinerância (roaming) na EU –; e, a segunda, visando à adaptação das regras de direito de autor, vigentes na EU, à era digital – destaca-se, (i) que a Comissão pretende abordar as exceções-chave aos direitos de autor: permitir-se-ia a utilização, em circunstâncias definidas, de obras protegidas por direitos de autor sem autorização prévia dos titulares dos direitos, (ii) a facilitação, para os investigadores, da utilização de tecnologias de “prospecção de textos e de dados”, para analisar vastos conjuntos de dados.

Em 14 de dezembro, foi realizada audiência pública, convocada pelo STJ, a discutir a possibilidade de cobrança de direito autoral de músicas transmitidas na internet. Duas posições discrepantes foram as principais alegações. De um lado, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) defendeu a cobrança de direitos autorais, seja em webcasting (isto é, transmissão on demand que só se inicia no momento da conexão), seja em simulcasting (isto é, transmissão em tempo real, tanto pela rádio convencional quanto pela internet). Aqueles que seguiram essa posição, como o Ministério da Cultura, sustentaram-na com base, dentre outros argumentos, de que cada modalidade de transmissão exige autorização prévia dos autores; nesse sentido, a transmissão de músicas via internet deve ser licenciada. De outro lado, a Oi Móvel S.A., a qual teve seu argumento seguido pela Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI) entende que, havendo cobrança pela transmissão via internet, estar-se-ia incorrendo em dupla cobrança: uma vez que se pagam direitos autorais pelo produto, o qual é um só – qual seja, a música – cobrar-se também pelo meio em que tal produto será veiculado forçosamente implicará em cobrança dupla. De forma a ilustrar a cobrança indevida, foi dado o exemplo de rádios que, já tendo remunerado os autores para veicular suas músicas na programação normal, meramente repetem essa programação na internet.

A cada ano, obras literárias, artísticas e científicas entram em domínio público, momento em que o direito exclusivo de utilização do autor e/ou de seus sucessores perde a vigência, tornando-se inexigível qualquer tipo de autorização para utilizações de uma criação intelectual protegida pelo Direito Autoral, tais como traduções, adaptações e respectivas comercializações. Esse ano, por exemplo, entrou em domínio público O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. O mercado editorial estava na expectativa de que no dia 1° de janeiro de 2016 entraria em domínio público a obra Diário de Anne Frank. Entretanto, a Fundação Anne Frank Fonds alega que Otto Frank, pai de Anne Frank, seja co-autor da obra, negando assim que a contagem à entrada do domínio público haveria se iniciado em 1946, ano posterior ao falecimento de Anne. A tese defendida pela Fundação Anne Frank Fonds asseguraria o direito exclusivo de explorar economicamente o Diário de Anne Frank por pelo menos mais 36 anos, ou seja, até 2051.

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