Direito Civil Atual

A crítica de Coelho Rodrigues é importante ainda hoje em dia (parte 2)

Autor

  • Venceslau Tavares Costa Filho

    é advogado doutor em Direito pela UFPE professor de direito civil da UPE Vice-Presidente da Associação de Direito de Família e Sucessores – Seção Pernambuco (ADFAS-PE) e Diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

29 de fevereiro de 2016, 8h00

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Coelho Rodrigues obteve o título de bacharel pela Faculdade de Direito do Recife em 1866. No ano de 1870, recebeu o título de doutor em direito pela mesma faculdade. Isto poderia servir de argumento para inseri-lo naquilo que se convencionou chamar de “geração 70”. Entretanto, vincula-se a Escola do Recife à chamada “geração 70”, ou seja, àqueles juristas que concluíram o curso de bacharelado em Direito ao longo da década de 1870, no ambiente da Faculdade de Direito do Recife.

Após subsequentes gerações fortemente influenciadas por ideais românticos, a chamada geração 70 apresenta-se como aquele grupo de pessoas que cuidará de matar o velho, de modo a preparar a chegada do novo.

O “novo”, então, era identificado com o materialismo, o cientificismo, o anticlericalismo etc.; de modo a recepcionar algumas das doutrinas em voga na época, quais sejam: o positivismo, de Comte e de Littrè; o evolucionismo de Haeckel e Spencer, etc.[1]

Coelho Rodrigues, contudo, foi um ferrenho defensor da manutenção da escravidão durante a monarquia, e só se manifesta claramente e publicamente em prol da república após a sua proclamação e a expulsão da família real do Brasil. Isto não significa, todavia, que ele pode ser simplesmente rotulado como conservador e que os membros da Escola do Recife devem ser considerados a vanguarda daquele tempo.

Clóvis Bevilaqua, por exemplo, é constantemente referido como um dos mais notáveis componentes da Escola do Recife; mas também pode ser apontado como agente da manutenção das velhas estruturas jurídicas e sociais. Como se pode notar em seu projeto de Código Civil, levando-se em consideração os projetos anteriores de Teixeira de Freitas e Coelho Rodrigues.

Se muitos dos egressos da Faculdade de Direito do Recife presentes aos debates no Congresso Nacional eram favoráveis à inserção do divórcio a vínculo no Código Civil, em vista da influência das concepções materialistas hauridas no ambiente da Faculdade pernambucana; a atitude de Bevilaqua foi a de se integrar ao coro dos católicos e dos positivistas comteanos. Apesar de sua posição comteana moderada, Clóvis Bevilaqua é relacionado por Pontes de Miranda no grupo dos positivistas comteanos que se uniram aos católicos a fim combater “renhidamente” a proposta favorável ao divórcio.[2] Termina por ser mais conservador do que o Imperador em relação a quem fez uma acirrada oposição. Pois, a última Comissão incumbida da tarefa de elaborar o Código Civil ao tempo do Império – presidida “de fato” pelo Imperador – chegou a deliberar pela admissão do divórcio entre nós, mas somente em caso de adultério[3].

Por outro lado, para Clóvis Bevilaqua: “Sobre esta tormentosa questão do divorcio, não pareceu licito ao auctor do Projecto avançar uma linha”.[4] A atitude de Clóvis Bevilaqua em relação ao divórcio também termina por ser mais conservadora que a legislação vigente à época. O Decreto 181, de janeiro de 1890 (Lei do Casamento Civil), admitia a possibilidade do divórcio. O divórcio, contudo, não tinha o condão de dissolver o vínculo conjugal, prestando-se apenas para permitir a “separação indefinida dos corpos” e a cessação do regime de bens (artigo 88).

Como já dito na primeira parte deste estudo, trata-se da alteração mais significativa no direito civil brasileiro em muito tempo. O artigo 82 da Lei do Casamento Civil estabelecia que o pedido de divórcio só poderia ter por causa a prática do adultério (parágrafo 1º), sevícia ou injúria grave (parágrafo 2º), abandono voluntário do lar conjugal e prolongado por dois anos contínuos (parágrafo 3º), ou em virtude do mútuo consentimento dos cônjuges, se forem casados há mais de dois anos (parágrafo 4º). Tal possibilidade deferida pela Lei do Casamento Civil (de 1890) restará obstada com o advento do Código Civil de 1916, projetado por Clóvis Bevilaqua.

Não há que se falar, portanto, em um sentido cabalmente inovador no Projeto de Código Civil de Clóvis Bevilaqua. Isto porque as contribuições mais significativas e numerosas são de Teixeira de Freitas e Coelho Rodrigues: “Breve estatística poderia dizer-nos que foi, ainda em 1900-1915, Teixeira de Freitas, o codificador de 1860, quem mais criou no Codigo; depois, Coelho Rodrigues, Bevilaqua, a Commissão revisora e o Senado”.[5] Isto talvez se deva ao fato de Clóvis Bevilaqua ser pouco afeito à práxis jurídica á época, por exercer exclusivamente a docência, diversamente de advogados experientes como Teixeira de Freitas e Coelho Rodrigues. Sem dúvida, o simples fato de Coelho Rodrigues haver sido incumbido da tarefa de formular a Lei do Casamento Civil já o coloca em uma posição de destaque entre os reformadores do direito civil brasileiro.

A década iniciada com a Proclamação da República não trouxe alterações significativas em matéria de direito privado, mas deve-se ressaltar a relevante alteração ocorrida no direito de família (a Lei do Casamento Civil), como exceção dentro daquele quadro geral.[6] A inserção de Clóvis Bevilaqua na “geração 70” se dá em virtude de sua parcial adesão às idéias de Tobias Barreto, e não à sua atitude conservadora, ou vanguardista. Coelho Rodrigues, por outro lado, não se alinhava ideologicamente com os seguidores de Tobias Barreto. Ele combatia vigorosamente as idéias pregadas por Tobias Barreto e seus discípulos, chegando a protagonizar o conhecido episódio da reprovação de Sílvio Romero. Em 1875, Sílvio Romero submeteu-se a banca a fim de obter o grau de doutor perante da Faculdade de Direito do Recife. Francisco de Paula Baptista registrou o famoso diálogo entre o candidato e o examinador Coelho Rodrigues:

"Em seguida, [o Dr. Coelho Rodrigues] passou à segunda tese de direito romano, concebida nos seguintes termos: “O 'ius in re' compreende também a posse”. E, depois de uma discussão mais moderada que as duas precedentes, pergunta aquele doutor: – qual a ação, que garante esse Direito real, no seu entender? – Isto não é argumento, responde o doutorando – Por quê? pergunta aquele. – Porque, responde-lhe este, não se pode conhecer a causa pelo efeito. – Pois admira-me, torna o primeiro, que, tendo-se mostrado o senhor tão contrário ao método metafísico, na epígrafe das suas teses (a qual repetiu, traduzindo o inglês, em que estava escrita), recuse agora um argumento 'a posteriori'. – Nisto não há metafísica, Sr. Doutor, diz o segundo, há lógica. – A lógica, replica o argüente, não exclui a metafísica. – A metafísica, treplica o doutorando, não existe mais, Sr. Doutor; se não sabia, saiba. – Não sabia, retruca este. – Pois vá estudar e aprender para saber que a metafísica está morta. – Foi o senhor que a matou? Pergunta-lhe então o Dr. Coelho Rodrigues. – Foi o progresso, foi a civilização, responde-lhe o bacharel Sílvio Romero, que, ato contínuo, se ergue, toma dos livros, que estavam sobre a mesa, e diz: – Não estou para aturar esta corja de ignorantes, que não sabem nada. E retira-se, vociferando por esta sala afora, donde não pudemos mais ouvi-lo".[7]

Tal reprovação, inclusive, ensejou a publicação por Tobias Barreto (em 1875) de um ensaio denominado “A metafísica deve ser considerada morta?”; no intuito de se contrapor à atitude de Coelho Rodrigues como examinador. Graziela Bacchi Hora e João Maurício Adeodato, autores de obras essenciais sobre o pensamento de Tobias Barreto, registram que o estilo agressivo de Tobias Barreto (e também de Silvio Romero)[8] fizeram-no “odiado pela congregação da Faculdade de Direito”.[9] Coelho Rodrigues, por outro lado, era muito admirado por seus pares na Faculdade de Direito do Recife. Ironicamente, o prédio da Faculdade de Direito do Recife é carinhosamente chamado de “Casa de Tobias” na atualidade. De Coelho Rodrigues, contudo, pouco se fala.

Post scriptum: Recebi a notícia da aprovação do Mestrado em Direito da Faculdade Sete Setembro, em Fortaleza. Sob a liderança da Professora Maria Vital da Rocha, ilustre romanista e continuadora da obra de Agerson Tabosa, o Direito Civil brasileiro passa a contar com um centro de pesquisa de excelência!

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] AGUIAR, Cláudio. Franklin Távora e seu tempo. São Caetano do Sul-SP: Ateliê Editorial, 1997, p. 244.

[2] MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & C., 1928, p. 24-25.

[3] LOBO, Abelardo Saraiva da Cunha. Curso de direito romano. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 609.

[4] BEVILAQUA, Clóvis. Em defeza do projecto de código civil brazileiro. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906, p. 96.

[5] MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & C., 1928, p. 118.

[6] CÂMARA, José Gomes Bezerra. Subsídios para a história do direito pátrio – tomo IV [1889-1930]. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana, 1967, p. 74.

[7] BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2.ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 144.

[8] ADEODATO, João Maurício. O positivismo culturalista da Escola do Recife. Novos Estudos Jurídicos, v. 8, n. 2 (maio/agosto de 2003). Itajaí: UNIVALI, p. 314.

[9] HORA, Graziela Bacchi. A escola do recife como expressão dos movimentos intelectuais do século XIX. In: BRANDÃO, Cláudio; SALDANHA, Nelson; FREITAS, Ricardo (coords.). História do direito e do pensamento jurídico em perspectiva. São Paulo: Atlas, 2012, p. 291-292.

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