Opinião

Neurose institucional e o "protagonismo" geram a judicialização da vida

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29 de fevereiro de 2016, 6h59

A inviabilidade do Poder Judiciário brasileiro não é mais novidade para ninguém. Há muito a sociedade já o reconhece, e qualquer pessoa que tenha de recorrer à Justiça sabe das severas dificuldades que enfrentará. Só para se ter uma ideia, em recente manifestação pública, o ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, destacou que, nos últimos 26 anos, o número de processos ajuizados no Brasil multiplicou-se em mais de 80 vezes — 8.000% —, ao passo que o número de juízes cresceu apenas de 4,9 mil para 16.927, ou seja, não chegou a 400% a mais, o que dá menos de 4 vezes. É uma desproporção dramática. Sistema nenhum no mundo, público ou privado, suporta essa realidade. A quebra é inevitável.

Só que as principais razões desse caos também já puderam ser identificadas, e estão aí igualmente há muito tempo. Surpreendentemente, entretanto, não são atacadas. A grande constatação, sem meias palavras, é que a forma como os assuntos mais importantes do país são conduzidos, incluindo o estado lamentável da Justiça, é um verdadeiro desastre.

As políticas públicas, em especial saúde e educação, nos níveis estadual e federal, por falta de critério, avaliação, planejamento e execução, levam a que se batam recordes de comparecimento nos balcões dos fóruns. A previdência foi historicamente assaltada, e, quando há alguma mudança, é sempre no intuito de fazer o segurado pagar a conta. Não à toa que o INSS é o ente público nacional que mais comparece na condição de réu em processos judiciais.

A política econômica, que se move ao sabor dos ventos, não tem segurança, e é extremamente mal conduzida, multiplica as ações decorrentes do sistema financeiro, principalmente quando o dinheiro da população é simplesmente surrupiado em planos econômicos irresponsáveis. Na hora de devolver o que foi afanado, bom, aí vêm os argumentos da inflação, descapitalização do sistema financeiro, fuga de investimentos estrangeiros, e por aí vai. Rematada hipocrisia: se não daria para devolver, porque pegaram?

E o que dizer das concessionárias de serviços públicos, em especial as companhias telefônicas? É um verdadeiro inferno diário. Milhares e milhares de processos gerados por deliberado descumprimento do mínimo de respeito para com o consumidor. E o pior, está tudo contabilizado, em um pensamento infame que se disseminou num oligopólio com o qual o governo federal é irritantemente complacente. Afinal, para que pagamos os tributos que mantêm as agências reguladoras?

Ou seja, vale mais a pena lesar a sociedade e achar até graça disso: quando alguém gritar, que “vá procurar seus direitos”. Mudar essa mentalidade para quê, considerando que, mesmo assim, os lucros são muito superiores? É a velha história, se o dinheiro é a razão de todas as coisas, como quem faz muito dinheiro pode estar errado? O problema é que pode! O “mensalão” e o “petrolão” que o digam!

E os precatórios — as dívidas do Estado, decorrentes de condenações judiciais — que, olimpicamente, não são saldados? Poucos sabem, porque isso não interessa comentar, que a Constituição prevê intervenção nos Estados que não pagam as contas. É, mas só prevê, porque, nessas horas, quando interessa, o Congresso age rápido, e inventa uma leizinha de ocasião, que autoriza o calote nu e cru, a olhos vistos, mas aí as críticas são apagadas, afinal, o povo é pacífico. Acaba de acontecer aqui no Rio Grande do Sul também, mas não foi muito comentado, porque, bom, afinal, isso é problema da Justiça, que não funciona…

O sistema tributário brasileiro é um emaranhado que ninguém compreende. E é pesado, e é caro. E o que é arrecadado é mal utilizado ou desviado. Resultado, a sonegação é infinita. E aí, o quadro é interessante: quanto mais se sonega, mais se tem de cobrar para sustentar o sistema falido; quanto mais se cobra, mais se sonega. Quem nasceu primeiro, o ovo? Quem saberá?!!

A criminalidade só aumenta, mata-se, rouba-se,…, é um filme de terror, e as grandes cidades viraram grandes prisões! E as prisões não funcionam, e estão transbordando. Porque sem uma educação de qualidade, e uma formação adequada, decorrente de uma paternidade responsável, as pessoas não respeitam os limites impostos pela lei, e vamos continuar produzindo criminosos aos montes. Nossas crianças seguirão brincando de mocinho e ladrão, e achando legal ser o bandido. Enquanto a base não for arrumada, nunca sairemos desse ciclo maldito.

As famílias enfrentam severas dificuldades. O número de divórcios explodiu, e o de adolescentes infratores, e o de pais que não conseguem ensinar limites aos filhos, também. A violência doméstica está aí, todos os dias, e os casos aumentam sem controle. E onde isso tudo vai desaguar? Na Justiça, que todos criticam e chamam de (argh) morosa!!!!!

E o quadro é esse: sabemos da doença, e dos incuráveis danos que ela gera; sofremos por isso, criticamos, conhecemos as causas, mas não mudamos. Seria porque “gostamos”? Isso se chama, assim, sem muito compromisso científico: neurose. Algo como um casamento infeliz, turbulento, sem amor, que vai se arrastando tristemente durante, digamos, 26 anos, pelo menos, mas ao qual, curiosamente, não botamos um fim.

Sem a arrogante pretensão de esboçar um diagnóstico, muito menos de sugerir mágicas soluções, lá vai: a Justiça brasileira tem de tomar uma atitude real, e sair da neurose. Isso implica parar de interferir em assuntos que não são de sua competência, fazendo-se respeitar como Poder de Estado e impondo um limite firme e sério a esse caos.

Veja: as soluções “heroicas” até agora propostas não ajudaram e nem vão: pesados investimentos em informática, construção de fóruns, aparelhamento, metas, sistemas, processo eletrônico, relatórios mensais, e…, e… Pergunta: o número de processos diminuiu? Não, vem aumentando, entra ano e sai ano. Então, é o seguinte, em time que está perdendo, há necessidade de substituição, o quanto antes. Mas o que mudar, afinal?

Lá vai: quando a pressão é insuportável, e não há válvula de escape, a panela estoura. Então por que ainda não estourou? Bem, verdade que está quase, mas, apenas por amor ao debate, digamos que ainda não estourou. Porque há uma válvula de escape. E essa válvula tem sido, justamente, durante, pelo menos, os últimos 26 anos, o Poder Judiciário brasileiro, aquele que é (argh) moroso.

Não é a toa que quase tudo chega a ele, e aí está o gargalo que gerou os 8.000% de crescimento de processos. Só que há um detalhe: vamos lá, sem segredos: muitos juízes brasileiros acreditaram, um tanto por ingenuidade, outro por idealismo, e um pouco até por vaidade, que poderiam ser a “balança da nação”, o ponto de equilíbrio, assumindo aquilo que chamam de (argh) “protagonismo” ou (argh) “ativismo”, seja lá o que for. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, adora dizer que assumiu o papel de (argh) “protagonista”, para ser mais claro, ator principal, da novela, e que novela, política.

A equação é mais ou menos singela, e o pior cego é aquele que não quer ver: já que os Poderes Executivo e Legislativo, especialmente a nível federal, não se entendem, e não apresentam respostas satisfatórias, e…, e…, o Poder Judiciário, na base do canetaço, administra a saúde, a educação e a previdência, interfere nos juros bancários, pune as companhias telefônicas, gerencia as cadeias, e legisla em assuntos relevantes, como nepotismo, aborto, pesquisas científicas, casamentos, e até impeachment. E faz metas, e estatísticas, e projeções, e isso, incrivelmente, é objeto até de propagandas na televisão, com atores globais, pompa e circunstância.

Aliás, no último grande julgamento do Supremo Tribunal Federal, o sério candidato a “heroi nacional” foi o ministro Joaquim Barbosa. Tinha até gente usando máscaras imitando o rosto do jurista. Agora, é a vez do juiz Sergio Moro. Bacana!! Chique!! Só que não adianta nada. E não faz bem ao país. É como no futebol: quando o árbitro aparece mais do que os jogadores, é porque a partida vai de mal a pior!!

E com isso a Justiça brasileira inchou, em tamanho e em ego, de uma maneira incontrolável. Só que há um grande problema nisso: a função verdadeira de julgar, essa sim absolutamente necessária, está seriamente ameaçada, e vai sucumbir. A resolução dos conflitos reais do dia a dia está travada na imensa quantidade de processos decorrentes dos problemas acima referidos. E os juízes, a propósito de “contribuírem para o progresso do país”, e tornarem-se os (argh) “protagonistas” da nação, caíram na arapuca, aliás, mais que isso, ajudaram a confeccioná-la. Ou por acaso se acredita que a falência da Justiça não interessa a um montão de gente, e que a (argh) morosidade, também não?

Os mecanismos legítimos e democráticos de pressão sobre os Poderes Executivo e Legislativo para que, afinal, apresentem respostas ao povo, não têm sido exercidos de modo eficaz, muito embora manifestações públicas estejam acontecendo aqui e ali. É justamente porque a Justiça tem sido sempre chamada nesses casos. Só que aí o resultado é peculiar: a sociedade desvia o foco, e passa a exercer a pressão sobre os juízes, dizendo que eles demoram, (argh) demoram, e os outros Poderes seguem a vida normalmente: muito conveniente! A questão agora está na Justiça, deixe que ela resolva, só que vai demorar um pouco…

Então o que tem de mudar? A postura que está nas decisões, especialmente do Supremo Tribunal Federal. Curto e grosso. Se o Poder Judiciário, assumir o papel real que lhe é atribuído, dizendo, afinal, “não”, para assuntos que são de atribuição dos outros Poderes, a sociedade vai se mover em outro sentido, exercendo a pressão democrática real, e obrigando os agentes eleitos a mudarem sua conduta. O resultado disso pode ser uma ruptura, talvez. E rupturas doem, verdade! Agora, convenhamos, falar-se, como se faz, em estabilidade institucional, no atual estado de coisas, também é muita forçação de barra.

Recentemente, o ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, concedeu entrevista na qual disse que o Poder Judiciário tem de fazer o caminho contrário, ou seja, a desjudicialização. Concordo. Brilhante!! Mas quem vai fazer isso? A presidente da República, que está sob julgamento político no Congresso, ou no Supremo, já nem sei mais, e com as negociações respectivas a todo pano? A Câmara dos Deputados, exatamente na mesma situação? O Senado Federal, exatamente na mesma situação? Não! No que depender deles, nada vai acontecer. Pior que isso, vão adotar a soluçãozinha mágica: deixe que vá tudo para a Justiça, porque até ela resolver, tudo estará bem!!!

Então, isso nunca vai sair do discurso se a iniciativa real e concreta não partir do próprio Poder Judiciário, começando por sua Corte Suprema. Mas é complicado quando uma parcela de juízes acredita que as mudanças do mundo acontecem pelo poder mágico da caneta.

Juiz tem de ser juiz, e não especialista em medicamentos, vagas em creches, administração de presídios, computadores, sistemas, estatísticas, metas, e por aí vai. Juiz não é conselheiro familiar e nem educador de adolescentes rebeldes. As mudanças reais e efetivas têm de nascer na sociedade, de dentro para fora, através de seus mecanismos democráticos de pressão e decisão, e de seus representantes eleitos, e não nos fóruns, que não aguentam mais a judicialização da vida.

Juiz pode ser idealista, desde que isso esteja longe das decisões que toma nos processos. É, convenhamos, é um pouco difícil, então melhor que não seja!!! Decisão judicial é técnica e análise, baseadas no ordenamento jurídico, e não serve para a realização de sonhos pessoais. Interpretar significa extrair do texto legal a regra que o ordenamento jurídico quer estabelecer, e não aquela que o juiz pensa que é a ideal!

Por isso, uma singela sugestão: a Justiça brasileira tem de admitir o erro cometido, há muitos anos, ao “interpretar” a Constituição, acreditando que as coisas acontecem de fora para dentro, por decreto, do juiz, no caso, e que tudo pode ser objeto de ações judiciais.

Políticas públicas, incluindo a econômica, devem ser foco de debate no Congresso Nacional, e reguladas por leis claras e objetivas, retirando-se a intervenção judicial, salvo por via de ações coletivas, em casos excepcionais, e que devem ser de competência originária dos tribunais de Justiça. Alterações Constitucionais devem emanar do Congresso, e não do Supremo Tribunal Federal. As agências reguladoras devem ter maior autonomia e punir severamente as más práticas, inclusive com intervenções severas, e cassação das concessões. A judicialização, também nesses casos, só por via de demandas coletivas.

Os benefícios previdenciários devem ser concedidos via administrativa, com disposições legais igualmente claras, e com estatísticas mais técnicas e confiáveis. Construção e administração de presídios é competência do Poder Executivo, e a Lei Orçamentária, do Legislativo, e isso não pode influenciar as decisões criminais.

E, por fim, a mensagem institucional da Justiça brasileira deve ser clara: há um limite para tudo na vida, inclusive para o trabalho dos juízes. Se isso for compreendido e respeitado, iniciar-se-á um rumo diferente, oxalá melhor. Se não, enquanto a Justiça administra o país, e o Congresso e o Planalto ficam brigando por impeachment, as pessoas estarão em estado de guerra, resolvendo os conflitos reais pela força, porque o juiz está muito ocupado agora. Se não queremos isso, está mais do que na hora de mudar de atitude.

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