Opinião

Lei 13.165 criou antinomia sobre perda de mandato no Código Eleitoral

Autor

  • Márlon Reis

    é juiz de Direito doutor em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas pela Universidad de Zaragoza autor do livro Direito Eleitoral Brasileiro.

29 de fevereiro de 2016, 6h04

Sem dúvida, um ponto importante do debate sobre a Lei 13.165, de 29 de setembro de 2015, repousará na análise do novo § 3º do artigo 224 do Código Eleitoral.

Segundo o aludido dispositivo, “a decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados.”

Referida norma parece haver definido o fim da hipótese em que o segundo colocado assumiria o cargo eletivo em caso de desconstituição do diploma ou do próprio mandato.

Verifica-se, todavia, que o caput do artigo 224 do Código Eleitoral dispõe expressamente de modo contrário. Segundo a disposição legal, “se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias”.

O legislador pretendeu estabelecer uma exceção à regra contida no caput do artigo 224 do Código Eleitoral. Isso, todavia, não ocorreu. Diversamente, incidiu, numa antinomia grave a ponto de afastar a aplicabilidade da inovação normativa.

O fato é que, como será exposto a seguir, o aludido § 3º do artigo 224 do Código Eleitoral não contém uma exceção à regra estipulada pelo caput do dispositivo. Isso porque, excluídas as situações ventiladas pelo parágrafo sob estudo, não resta qualquer outra hipótese de nulidade de toda a votação concedida a um candidato.

O Código Eleitoral previu duas distintas consequências para o reconhecimento da nulidades.

Nas hipóteses ventiladas nos artigos 220 e 221 do Código não se pode falar em nulidade de toda a votação, senão das cédulas e seções comprometidas pelas falhas relacionadas nos dispositivos.

Segundo o artigo 220, "É nula a votação: I – quando feita perante mesa não nomeada pelo juiz eleitoral, ou constituída com ofensa à letra da lei; II – quando efetuada em folhas de votação falsas; III – quando realizada em dia, hora, ou local diferentes do designado ou encerrada antes das 17 horas; IV – quando preterida formalidade essencial do sigilo dos sufrágios; V – quando a seção eleitoral tiver sido localizada com infração do disposto nos §§ 4º e 5º do art. 135."

Já o artigo 221 reputa anulável a votação nos seguintes casos: I – quando houver extravio de documento reputado essencial; II – quando for negado ou sofrer restrição o direito de fiscalizar, e o fato constar da ata ou de protesto interposto, por escrito, no momento; III – quando votar, sem as cautelas do Art. 147, § 2º: a) eleitor excluído por sentença não cumprida por ocasião da remessa das folhas individuais de votação à mesa, desde que haja oportuna reclamação de partido; b) eleitor de outra seção, salvo a hipótese do Art. 145; c) alguém com falsa identidade em lugar do eleitor chamado

Como se percebe, todas as hipóteses previstas nos artigos 220 e 221 do Código Eleitoral têm em comum o fato de não dizerem respeito a faltas atribuídas a um candidato, mas a vícios observados na administração das eleições. Outro ponto de contato entre essas previsões legais reside no seu alcance: não há falar-se na anulação da votação atribuída a um candidato, mas na declaração de nulidade das seções atingidas nos termos do que dita o artigo 187 do Código Eleitoral.

Situação distinta ocorre quando se questiona, em ação ou representação eleitoral, a ocorrência de conduta ilícita ou falta de requisito para a elegibilidade de um candidato.

Segundo preceitua o artigo 222 do Código Eleitoral,"é também anulável a votação, quando viciada de falsidade, fraude, coação, uso de meios de que trata o art. 237, ou emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei."

Esse artigo 222 contém o enunciado geral que informa todo o tema da cassação de registros, diplomas e mandatos por infringência a normas eleitorais. Em lugar de dispor sobre de nulidade em determinado ato do processo eleitoral, ele estenderá seus efeitos sobre toda a votação obtida pelo candidato. A ele claramente se dirige a regra contida no artigo 224 do Código Eleitoral.

A diferença entre as consequências previstas no Código Eleitoral para os casos de nulidade reside, pois, na seguinte fórmula:

a) ocorrente a nulidade de votos, cédulas e sessões eleitorais (artigos 165, 166, 220 e 221 do Código), realizam-se, caso necessário, eleições suplementares, convocados apenas os eleitores inscritos nas sessões atingidas;

b) se, todavia, a nulidade se abate sobre toda a votação atribuída a um candidato, aí o caso se resolve nos termos do caput do artigo 224 do Código Eleitoral.

Assim, a nulidade capaz de acarretar a renovação das eleições ou a posse do segundo colocado, sempre será aquela “que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito”, já que a isso se refere todo o artigo 222.

Isso quer dizer que o artigo 224 nunca será aplicável a outros casos que não àqueles a que se refere o parágrafo 3º agora introduzido no dispositivo de lei.

Sendo assim, a pretexto de estabelecer uma exceção à regra do caput, o parágrafo 3º entrou em choque aberto com aquela primeira disposição. O caput do artigo 224 só é aplicável aos mesmos casos a que se reporta o § 3º do caput do mesmo dispositivo. Não houve exceção à regra geral contida no caput, mas disputa aberta entre esta última disposição e o teor do § 3º.

Dá-se a isso o nome de “antinomia”.

Ocorre a “antinomia”, ou “lacuna de conflito” [1], sempre que duas ou mais normas jurídicas expressam enunciados de conteúdo conflitante, cobrando do aplicador do direito a adoção de uma ou outra.

Discorrendo sobre o tema, Hans Kelsen prelecionou:

“Um tal conflito de normas surge quando uma norma determina uma certa conduta como devida e outra norma determina também como devida uma outra conduta, inconciliável com aquela. Assim sucede, por exemplo, quando uma das normas determina que o adultério deve ser punido e a outra que o adultério não deve ser punido; ou quando uma determina que o furto deve ser punido com a morte e a outra determina que o furto deve ser punido com prisão (e, portanto, não é com a morte que deve ser punido).” (1998, 143).

A antinomia pode ser igualmente compreendida como um paradoxo que, nas palavras de Rescher, citado por Perez, constitui um “set of propositions that are individually plausible but collectivelly inconsistent” (2006, 5). A antinomia, constitui, assim, uma contradição interna ao sistema normativo (self-contradiction) marcada pelo entrechoque de enunciados isoladamente válidos, mas inconciliáveis entre si.

É papel do aplicador do direito, após se assegurar “(…) dos fatos estabelecidos ou para provar, (…) escolher a regra de direito que lhe é aplicável ali” (Rigaux, 2000, 48). Essa operação lógica é dificultada pela antinomia, que precisa ser submetida à atividade do intérprete para que se opere a sua remoção.

Três são os critérios ou princípios comumente aceitos para a superação das antinomias: o cronológico, o da especialidade e o hierárquico.

Interessa-nos o critério hierárquico.

Sobre esse ponto nos ensinava Kelsen que “(…) os conflitos de normas no material normativo que lhe é dado — ou melhor, proposto — podem e devem necessariamente ser resolvidos pela via da interpretação.” (1998, 144). E afirmava a existência de uma “construção escalonada de normas supra e infra-ordenadas umas às outras, em que uma norma do escalão superior determina a criação da norma do escalão inferior” (1998, 144).

Posteriormente, em sua Teoria Geral do Direito e do Estado, Hans Kelsen proporia:

“O caráter alternativo da norma superior que determina a norma inferior impede qualquer real contradição entre a norma superior e a inferior. (…) qualquer opinião referente à existência de uma contradição que não a dessa autoridade é juridicamente irrelevante. A autoridade competente estabelece a existência jurídica de tal contradição anulando a norma inferior” (1998b, 232).

A hierarquia que rege a relação entre normas, posicionando-as como superiores ou inferiores, não diz respeito apenas ao escalonamento entre a normas fundamentais e as previstas nas leis. Ela também se observa no interior de um mesmo dispositivo.

A redação de um artigo deve observar rigorosa previsão contida na Lei Complementar 95/1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, em conformidade com o que preceitua o parágrafo único do artigo 59 da Constituição Federal.

Consoante estabelece o artigo 10 da referida lei,

“Art. 10. Os textos legais serão articulados com observância dos seguintes princípios:

I – a unidade básica de articulação será o artigo, indicado pela abreviatura "Art.", seguida de numeração ordinal até o nono e cardinal a partir deste;

II – os artigos desdobrar-se-ão em parágrafos ou em incisos; os parágrafos em incisos, os incisos em alíneas e as alíneas em itens; (…)”.

A cabeça, ou caput, do dispositivo deve conter a proposição básica sobre a qual ele versa. Os demais componentes do artigo — parágrafos, incisos, alíneas — devem constituir desdobramentos lógicos do enunciado contido na parte inaugural do comando normativo.

Por isso mesmo, o artigo 11, III, c, da LC 95/98, estipula:

“Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

III – para a obtenção de ordem lógica;

c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida;”

A referida norma estabelece, como se vê, uma função dúplice para o parágrafo: complementar o sentido do enunciado contido na cabeça do dispositivo e definir eventuais exceções à sua aplicabilidade.

Em ambos os casos, não é autorizada a redação de parágrafos em conflito com o enunciado principal do artigo. Estipular exceções não corresponde a estabelecer essa conflitividade. Diversamente, implicam em articular os casos em que a proposição receberá solução diversa da genericamente contemplada no caput.

Essa afirmativa é corroborada por Felipe Fernandes:

“O parágrafo constitui-se numa divisão do artigo destinada a tratar de uma disposição secundária que explica ou modifica (excepciona ou restringe) a disposição principal (art. 11, III, “c”, LC no 95). Portanto, o parágrafo não deve formular regras gerais nem princípios básicos, mas limitar-se a complementar o caput do artigo. Deve haver uma conexão material entre o parágrafo e o caput do artigo. O enunciado do parágrafo não é autônomo, devendo estar intimamente relacionado à parte inicial do artigo.” (s.a., online).

Como se percebe, o parágrafo está logicamente submetido ao conteúdo da cabeça do artigo, não podendo com este rivalizar. Eis uma premissa a ser observada na interpretação do dispositivo. Em caso de antinomia entre o parágrafo e o caput deve o hermeneuta privilegiar este em detrimento daquele.

Como se viu no início deste artigo, existe uma evidente contradição entre o texto do caput do artigo 224 do Código Eleitoral e § 3º. Enquanto o primeiro afirma que a renovação das eleições só correrá quando ocorrer a anulação de mais de 50% dos votos, o segundo parece dispor que a designação de novo pleito que é medida que sempre se imporá em todos os casos de desconstituição do diploma eleitoral ou do mandato eletivo.

Não há nisso a abertura de uma exceção, mas, pelas razões acima pontuadas, franca divergência entre o § 3º e o caput do artigo 224 do Código Eleitoral.

Forçoso reconhecer que o parágrafo 3º introduzido no artigo 224 não pode pretender revogar o quanto definido no caput do mesmo artigo de lei, o que atentaria contra todo bom senso. Isso implica afirmar que a regra da posse do segundo colocado nos casos que o candidato cassado teve menos de 50% dos votos é medida que continua a se impor sem qualquer alteração substancial.

Trata-se de regra de antiga aplicação no foro eleitoral, declarada acorde com a Constituição por diversas vezes no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, e que tem diversos méritos:

  • trata de forma diversa situações essencialmente distintas, reservando a medida extrema da renovação das eleições para os casos em que os candidatos destituídos de suas posições conseguiram votação de grande envergadura;
  • reserva aos casos de evidente necessidade a realização do grande investimento de recursos econômicos necessários para a mobilização do aparato administrativo exigido para a organização do novo pleito.

Com efeito, a posse do segundo colocado, nas hipóteses em que a lei a admite, é medida que vem sendo adotada sem qualquer questionamento social. Além disso, tem o mérito de mobilizar a atenção de todos os participantes do prélio eleitoral com relação ao modo com que seus adversários se portam.

Grande parte das demandas eleitorais em que se atribui aos candidatos a utilização de vias ilícitas é justamente proposta por aqueles que têm a expectativa de ver reparada a injustiça de serem derrotados por quem desafiou a legislação ao longo do pleito

O artigo 224 do Código Eleitoral institui verdadeira política institucional que estimula a participação de todos os concorrentes na fiscalização da legitimidade do pleito.


Referências bibliográficas
– Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. T. João BaptistaMachado]. 6a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998.

– Kelsen, Hans. Teoria geral do direito e do estado. T. Luís Carlos Borges. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000.

– Rigaux, François. A lei dos juízes. T. Edmir Missio. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000.

– Perez, Oren. Law in the air; a prologue to the world of legal paradoxes. In: Perez, Oren e Teubner, Gunther (editores). Paradoxes and inconsistencies in the law. Portland: Hart Publishing. pp. 3-37.

– Ráo, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

– Fernandes, Felipe Nogueira. Legística aplicada ao Poder Executivo. Disponível em http://abejur.org.br/Anexos/Portal/Cursos/Leg%C3%ADstica%20Aplicada%20ao%20Poder%20Executivo.pdf. Acesso em: 13 de novembro de 2015.


[1] Sobre a expressão “lacuna de conflito”, Kelsen afirmava: “Como, porém, o Direito vigente é sempre aplicável, pois não há “lacunas” neste sentido, esta fórmula, quando se penetre o seu caráter fictício, não opera a pretendida limitação do poder atribuído ao tribunal, mas a auto-anulação da mesma” (1998, 173).

Autores

  • Brave

    é juiz de Direito no Maranhão, presidente da Associação Brasileira dos Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais e membro do Comitê Nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral

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