Embargos culturais

O que a interpretação jurídica pode aprender com a interpretação bíblica

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

28 de fevereiro de 2016, 8h00

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A atuação do jurista é substancialmente interpretativa. A compreensão de textos constitucionais, legais e contratuais é precedida, informada e de algum modo concluída por juízos de interpretação. Essa é mais uma semelhança, entre tantas outras que há, entre Direito e Teologia, campos epistêmicos que carregam uma trajetória convergente. Harold J. Berman, em intrigante livro sobre a História do Direito, explorou essa relação, com foco nas fontes teológicas da tradição jurídica ocidental, no contexto do catolicismo; John Witte Jr. o fez também, na conjuntura das tradições reformadas, especialmente a luterana.

Essas percepções são extensivas a problemas de hierarquia (expressão que tem sentido originariamente teológico, implicando a ideia de sagrado, na etimologia grega), de fixação de textos canônicos (que também consiste em operação substancialmente teológica, pautada pela constatação de textos de autoridade), a par de arranjos institucionais orientados para a acomodação de conflitos e de angústias humanas. Paul Ricouer, referindo-se a Johannes Weiss e a Albert Schweitzer, a propósito, entre outros, do tema central do “kerygma”, aproximava o esforço da interpretação neotestamentária a um fundamento não escatológico de liberdade; como é também, afirmo eu, a liberdade o sentido e o limite da interpretação jurídica.

É nesse contexto que o estudo do livro de Augustus Nicodemus Lopes é também seminal para os que atuam e pensam no ambiente jurídico. O autor é Pastor presbiteriano, com mestrado na África do Sul, doutorado nos Estados Unidos, e ampla atuação como pastor e professor, no Recife, em São Paulo, em Goiânia, entre outros. Escrito sob um ponto de vista reformado esse belíssimo texto centra-se na demonstração de que o método gramático-histórico é o que melhor se adaptaria “ao caráter humano e divino das Escrituras”. O livro é construído com material de aulas sobre o tema, circunstância que comunica com clareza e objetividade pontos controvertidos dos vários modelos e fórmulas de interpretação bíblica.

O tópico dos distanciamentos (temporal, contextual, cultural, linguístico e autoral) das Escrituras é o ponto de partida do livro, revelando – humana e humildemente – os limites e os paradoxos de uma tentativa de exegese séria dos textos bíblicos. Há uma sistemática e bem elaborada síntese dos primeiros intérpretes do Antigo Testamento, a exemplo dos Rabinos do Antigo Israel, de Filo de Alexandria e de Flávio Josefo; nesse campo histórico há também extensa referência às comunidades do Mar Morto, cujos manuscritos, encontrados em 1947, são estudados por Augustus Nicodemus Lopes, menos como pontos de divergência ou de convergência com o Cânon, e mais porque “refletem as práticas hermenêuticas em vigor naquela época”. Isto é, o autor nos evidencia que cada época constrói sua exegese, sua Teologia, do mesmo modo, e agora a ilação é minha, que cada tempo constrói suas interpretações e suas verdades, também e substancialmente, quanto a seus arranjos jurídicos.

É ao mesmo tempo com muito rigor que Augustus Nicodemus Lopes explora os intérpretes alexandrinos (Orígenes e Atanásio) e antioquianos (Teófilo), os pais latinos da Igreja (Agostinho e Jerônimo), os intérpretes da Idade Média (Cassiano, Bernardo de Claraval), os reformadores (Lutero, Calvino), com estações ainda em Erasmo de Roterdã, humanista católico, sobre quem o autor observa que “(…) teve importante contribuição para a hermenêutica que se desenvolveu após a Reforma (…) Ele desejava alcançar o sentido simples e original do texto bíblico e torná-lo significante para as pessoas de sua época (…) Seu alvo era simplificar o Cristianismo, exaltar a razão e enfatizar a moralidade em vez do ritualismo que prevaleceu na Idade Média”.

Passando pela Idade Moderna, o autor alcança também os intérpretes contemporâneos, sob uma etiqueta de “pós-modernos”, com especificações no que denomina de “vertente teológico-psicológica” (Schleirmacher), “vertente exegética” (Bultmann), “vertente teológica” (Barth), “vertente-lingüística” (Saussure), e “vertente-filosófica” (Gadamer e Derrida), além, naturalmente, dos chamados estruturalistas, no contexto do que denomina de “estruturalismo bíblico”.

A referência a esses pensadores, especialmente Saussure, Gadamer e Derrida, suscita ambiência familiar para os estudiosos de hermenêutica jurídica; refiro-me, entre outros, ao tema dos preconceitos como condição da compreensão, um dos núcleos discursivos que se colhe em atenta leitura do “Verdade e Método”; cuja conexão com a experiência normativa é explicitada em autores de muito vigor intelectual, a exemplo de Inocêncio Mártires Coelho e de Lênio Streck. Para este último, Streck, com base em Gadamer, “o caráter da interpretação do direito é sempre produtivo (…) esse aporte produtivo forma parte inexoravelmente do sentido da compreensão (…) é impossível o intérprete colocar-se no lugar do outro”; para aquele primeiro, Inocêncio, a pré-compreensão “é prefigurada pela tradição em que vive o intérprete e que modela os seus preconceitos (…).

O tema da compreensão é recorrente nos juízos de interpretação jurídica, situação que também pretende se ajustar nos juízos de interpretação bíblica, para a qual Gadamer pretenderia qualificar também a chamada “fusão de horizontes”. Para Augustus Nicodemus Lopes, “apesar das contradições internas e das críticas, a filosofia hermenêutica de Gadamer ganhou grande aceitação no mundo acadêmico e contribuiu de forma decisiva para o surgimento de sistemas de interpretação da Bíblica centrados no leitor, inerentemente subjetivos (…)”.  Augusto Nicodemus Lopes, ao que consta, contesta a fórmula da fusão dos horizontes, forte na percepção de que a realidade mostra que o intérprete nem sempre estaria preso a seus preconceitos; é que, afirma, “se Gadamer estiver certo, o leitor sempre interpretaria o texto da mesma maneira”.

Miríade de problemas de interpretação jurídica possuem correlatos em problemas de interpretação bíblica. Ambos os campos podem mutuamente se socorrer, em busca do esclarecimento e da tomada de decisões. Quando afirmo que a interpretação jurídica tem a aprender com a interpretação bíblica refiro-me à necessidade de mais obras de hermenêutica jurídica de sistematização de várias correntes, ainda que contemos com belíssimo o livro de João Baptista Herkenhoff.

No limite, o Direito e a Teologia são, do ponto de vista epistêmico, experiências humanas, profundamente, inegavelmente humanas, que guardam semelhanças e dissemelhanças. O Direito se pauta pela construção de arranjos de convivência, práticos, e a Teologia busca na revelação, na intuição e na compreensão das limitações também humanas, uma fórmula de superação que se desdobra também no mistério da transcendência.

Nesse sentido, a leitura do livro de Augustus Nicodemus Lopes, a par de seus insuperáveis méritos intrínsecos, de rigor intelectual e de método, de riqueza de informações, de provocações intelectuais, de orientação pedagógica, é também uma recorrente lembrança de que os problemas de interpretação são universais, e que questões de exegese jurídica também são metodologicamente visitadas pela experiência Teológica.

1. Dedico esse pequeno ensaio-resenha a meu tio, Reverendo Antônio de Godoy Sobrinho, Pastor e educador, falecido, a quem devo estímulo pela especulação nos temas de hermenêutica bíblica e de língua grega.

2. Harold J. Berman, Law and Revolution- The Formation of the Western Legal Tradition, Cambridge, Massachusetts and London: Harvard University Press, 1983, pp. 165 e ss.

3. John Witte Jr., Law and Protestantism- The Legal Teachings of the Lutheran Reformation, Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

4. Paul Ricouer, Ensaios sobre Interpretação Bíblica, São Paulo: Novo Século, 2004, pp. 149 e ss. Tradução de José Carlos Bento.

5. Cf. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Interpretação do Direito, Rio de Janeiro e São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1965, pp. 273 e ss.

6. Augustus Nicodemus Lopes, A Bíblia e seus Intérpretes, uma breve história da interpretação, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004.

7. Cf. Augustus Nicodemus Lopes, cit., p. 7.

8. Cf. Augustus Nicodemus Lopes, cit., p. 8.

9. Cf. Augustus Nicodemus Lopes, cit., p. 9.

10. Augustus Nicodemus Lopes, cit., p. 65.

11. Augustus Nicodemus Lopes, cit., p. 167.

12. Cf. Augustus Nicodemus Lopes, cit., p. 226 e ss.

13. Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 416 e ss. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Revisão de Ênio Paulo Meurer.

14. Lênio Luiz Streck, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, uma Nova Crítica do Direito, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 6.

15. Inocêncio Mártires Coelho, Interpretação Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 6.

16. Augustus Nicodemus Lopes, cit., p. 220.

17. Augustus Nicodemus Lopes, cit., p. 219.

18. João Baptista Herkenhoff, Como aplicar o Direito, Rio de Janeiro: Forense, 1999.

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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