Opinião

A (i)legalidade da fan fiction no Direito autoral brasileiro e o papel dos autores

Autor

  • Guilherme Cunha Braguim

    é advogado associado do Opice Blum Bruno Abrusio e Vainzof Advogados Associados. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie é especialista em Propriedade Intelectual e Direito Autoral pela Escola Superior de Advocacia da OAB de São Paulo (ESA).

28 de fevereiro de 2016, 8h30

Um dos temas e assuntos mais comentados e difundidos atualmente nos grupos de discussão e fóruns direcionados à expoentes da cultura pop são as fan fictions. Apesar de um fenômeno com grande aceitação e largo público, muitas vezes ávido e fanático, pouco ou quase nada se discute sobre essa expressão da cultura pop, o que nos deixa diversas lacunas a serem exploradas nessa área, principalmente sob o aspecto da sua legalidade.

Mas, afinal, o que é fan fiction?

As fan fictions (também conhecidas por fan ficsfics ou, simplesmente, FF) são ficções escritas por fãs, baseadas em obras e em personagens que já existem. As fan fics podem tratar do passado, do presente ou do futuro de uma personagem ou obra e, geralmente, são narradas em primeira pessoa, o que traz uma maior interatividade e intimidade entre o autor e o leitor.

Usualmente, as fan fics são feitas sem qualquer intenção de obtenção de lucro, ou seja, por mero entretenimento. Sua principal razão de existir é o incômodo pelo qual alguns fãs de obras de artes (filmes e livros, principalmente) são tomados com o desfecho da uma personagem querida ou daquela trilogia que conquistou milhares de fãs. As fan fics tem como grande meio de transmissão e divulgação a própria internet, a qual se tornou essencial para esse fim. Em poucas palavras, as fan fics representam a consagração da famosa expressão “mas e se…?”.

As fics possuem as mais diferentes fontes de inspiração e, por esse motivo, a criatividade acaba por se tornar ilimitada nesse tipo de produção. Pode o autor se perguntar, ao final da trilogia Jogos Vorazes: por qual motivo deve a protagonista Katniss Everdeen terminar a trama com Peeta Mellark e não com Gale Hawthorne, seu amor de infância?

Ou, ainda, se indignar que na saga Crepúsculo, Bella Swan opte por namorar com o vampiro Edward Cullen ao invés do lobo Jacob Black.

Ainda, pode o autor da fan fic soltar sua imaginação e tornar Watson, o fiel escudeiro de Sherlock Holmes em uma mulher. Quem sabe o autor da fan fic sempre tivesse desejado que Harry Potter se casasse com Hermione Granger ao final da aclamada série que leva seu nome e, quando chegou ao final do último livro lançado, se decepcionou que isso não ocorreu?

Por esses breves exemplos, nota-se que a fan fic carrega consigo elementos muito presentes de carinho e admiração por elementos da cultura pop. O autor de uma fan fic, contudo, utiliza suas personagens favoritas, seu cenário preferido e sua época histórica marcante em uma outra conjectura que não aquela efetivamente seguida pelo autor da obra original. Mais importante, o autor da fan fic não suporta ver sua série favorita chegar ao fim sem que determinado evento tenha acontecido. Aqui, nos cabe a primeira reflexão: aos olhos da legislação brasileira, seria tal forma de expressão lícita?

Antes de adentrar no mérito da questão acima esposada, válido tecer breves considerações acerca do surgimento do universo das fan fictions. Conta a história que Dom Quixote, cuja história foi lançada em duas partes (1605 e 1610) por Miguel de Cervantes teve uma “continuação não oficial” entre os 5 anos de hiato, escrita por um terceiro desconhecido, que não suportou tanto tempo até que a obra fosse concluída. Miguel de Cervantes decepcionou-se e foi tomado pela ira contra o autor dessa “continuação”, repudiando por completo a obra.

Mais recentemente, contudo, tem-se notícia que as fan fics se popularizam com a série Star Trek – Jornada nas Estrelas, em meados dos anos 60. A famosa série de filmes foi a precursora do movimento moderno dos autores de fan fictions com a revista Spocknalia, datada de 1967 e assinada por Gene Roddenbery.

Gene teve a ideia de reunir escritos de diversos fãs da série em uma revista, compilar tal material e distribuir aos outros fãs. A fanzine (mistura de fã e magazine, que significa revista em inglês) teve uma enorme aceitação tanto pelos atores e produtores do filme como pelos seus seguidores. Todavia, o verdadeiro boom das fan fictions surgiu apenas com o bruxo Harry Potter, já no início dos anos 2000.

O arrebatador sucesso de Harry Potter e a popularização da internet foram os principais responsáveis por alavancar o movimento das fan fictions, principalmente por atrair um público mais jovem para esse tipo de escrita.

Mesmo assim, o início do retorno das fan fics se mostrou conturbado. Autores, produtores e editoras estavam receosos sobre possíveis violações aos direitos autorais, razão pela qual optaram por reprimir esse tipo de conduta, inclusive notificando diversos autores sobre a possibilidade de serem alvos de ações judiciais. Aos poucos, contudo, foi necessário suavizar e amenizar tal comportamento, uma vez que o movimento das fan ficsse popularizava e expandia cada vez mais.

Analisado esse prisma inicial, cabe a nós retornar à questão inicial: seriam as fan fictions lícitas ou ilícitas? São os autores de fan fictions violadores de direitos autorais dos autores das obras?

A resposta, como era de se esperar, não é simples. A legislação brasileira de direitos autorais (Lei 9.610/98) não previu o fenômeno das fan fictions e, portanto, nada dispõe sobre tais obras. Mesmo assim, através de uma leitura pontual da legislação correspondente, é possível que se extraiam breves conclusões.

O artigo 7º da Lei 9.610/98 indica quais são as obras intelectuais protegidas pelo nosso ordenamento jurídico destacando, entre eles, os textos de obras literárias e artísticas, senão:

Artigo 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:

I – os textos de obras literárias, artísticas ou científicas; (..)

Prosseguindo-se na análise, nota-se que os artigos 22 e 24 trazem a concepção de que pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou, destacando que um dos direitos morais é o de “assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações”:

Artigo 22. Pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.

Artigo 24. São direitos morais do autor:

IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;

Além disso, o artigo 29 consagra que qualquer utilização de obra protegida por direito autoral deve ser precedidade de autorização prévia e expressa do autor, o que é reforçado pelo artigo 33 da mesma lei:

Artigo 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:

I – a reprodução parcial ou integral;

Artigo 33. Ninguém pode reproduzir obra que não pertença ao domínio público, a pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la, sem permissão do autor.

Por fim, a própria lei excepciona, em seus artigos 46 e 47, as hipóteses em que não há violação aos direitos autorais, valendo destaque ao inciso II do artigo 46 e ao caput do artigo 47:

Artigo 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:

II – a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechospara uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro;

Artigo 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito.

Analisando referidos artigos, é possível que se constate que os textos de obras literárias e artísticas são protegidos por direitos autorais, e que o autor detém todos os direitos patrimoniais e morais a ela relacionados. Entre os direitos morais, está o do autor de assegurar a integridade de sua obra original, opondo-se à quaisquer modificações nela. Corroborando tal entendimento, os artigos 29 e 33 da Lei 9.610/98 indicam que qualquer utilização de obra protegida (que não esteja em domínio público) deve possuir autorização prévia e expressa do autor, sob pena de configurar ilícito civil.

O artigo 46, por sua vez, excepciona que a reprodução “em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro” não constitui um ilícito civil, mas sim uma exceção legal, assim como são as paráfrases e paródias que não forem “verdadeiras reproduções da obra originária”.

Adotando-se uma visão mais abrangente da nossa legislação pátria, é possível verificar que o Código Penal, em seu artigo 184, também se preocupa com a violação de direitos autorais, indicando as hipóteses em que essa violação pode implicar em ilícito penal, além do ilícito civil, valendo destaque:

Artigo 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

        Parágrafo 1o Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente:

        Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

              Parágrafo 4o O disposto nos §§ 1o, 2o e 3o não se aplica quando se tratar de exceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto.

Essa análise literal da Lei 9.610/98 nos permite concluir que:

  • Versões/continuações de obras já existentes devem ser autorizadas pelos detentores dos direitos autorais;
  • O autor pode vetar a produção/circulação/divulgação das fan fictions, ainda que delas o “novo autor” não obtenha lucro;
  • Somente parafrases e paródias são permitidas por lei;
  • A reprodução de “pequenos trechos” é permitida por lei, desde que feito para USO PRIVADO do copista e sem intenção de lucro;
  • fan fiction seria um “uso derivado” de obra protegida;
  • Em tese, a publicação de fan fics pode ser considerada violação à direitos autorais e, inclusive, crime de violação de direito autoral;

Por assim ser, ainda que se repute e se compreenda a existência e popularização das fan fictions como uma forma válida e criativa de se manter viva uma história ou personagem, deve-se levar em consideração que a legislação brasileira transfere ao autor de uma obra protegida a totalidade dos direitos sobre ela, cabendo à ele decidir sobre a permissão ou proibição de exploração de sua obra pelos fãs. Sua (i)legalidade é dúbia e interpretativa, haja vista inexistirem fortes bases de apoio para tal finalidade.

O destino das fan fictions fica todo transferido ao autor da obra originária, o qual detém o direito moral de impedir quaisquer modificações na sua obra à qualquer tempo, inclusive pleiteando a devida reparação civil ou, ainda, persecução criminal daqueles que violarem seus direitos de autor.

Será que eles irão permitir que seus fãs e admiradores escrevam sobre suas personagens e histórias de forma livre? Será que serão impostas condições para as fan fictions existirem, ou será que elas serão banidas de vez? O papel e a caneta estão, como de costume, na mão dos autores.

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    é advogado associado do Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, é especialista em Propriedade Intelectual e Direito Autoral pela Escola Superior de Advocacia da OAB de São Paulo (ESA).

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