Decisões políticas

Supremo passou a atuar como um legislador anômalo, diz Batochio

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26 de fevereiro de 2016, 11h57

O ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil José Roberto Batochio não poupou críticas à recente decisão do Supremo Tribunal Federal que abriu precedente para prisão antes do trânsito em julgado

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"Critério de decisões do STF deixou de ser jurídico-constitucional", disse Batochio. Foto: Reprodução

Para Batochio, uma das causas para o Supremo ter dado esta decisão é que a corte ultrapassou seus poderes e competências constitucionais, passando a atuar como legislador anômalo.

"Logo, o critério de suas decisões deixou de ser jurídico-constitucional, e passou a ser político. Já não é mais a norma insculpida na Constituição, nem a lei processual, nem o regimento interno da própria Corte, que embasa suas decisões, mas sua livre percepção, que se informa, muitas vezes, na veleidade de julgar apenas 'as grandes questões nacionais'", afirmou o ex-presidente da OAB durante o lançamento de um manifesto contra o entendimento.

Em seu discurso, Batochio também afirmou que o Supremo "lava as mãos" ao lançar sobre os acusados e seus advogados o ônus da morosidade processual. "Como se, para aferição da culpa e da responsabilidade penal, com consequente absolvição ou apenamento, não tivessem importância os tribunais superiores, aos quais têm eles o direito de recorrer. Se os tribunais superiores não servem para isso, por que e para que existem? Somente para sua própria majestade?", indaga.

Como última causa para o que classifica como "infeliz" decisão do Supremo, Batochio aponta que o objetivo foi satisfazer e aplacar alguns setores da sociedade, que clamam por justiçamento em nome de maior segurança. "Após a queda da ditadura, a reconstitucionalização, e a restauração das liberdades, jamais se poderia supor que justamente o Supremo Tribunal Federal, a quem os cidadãos brasileiros confiaram a guarda da Constituição, viesse um dia a golpeá-la tão profundamente", complementa.

Sanha punitiva
Durante o evento ocorrido nesta quinta-feira (25/2) na sede da seccional paulista da OAB, a advocacia expôs sua indignação com a decisão do Supremo. As críticas apresentadas vão desde decisão “tecnicamente infantil” até “inaceitável e inconstitucional violência” aos preceitos fundamentais da Constituição Federal.

Alguns ministros, principalmente os oriundos da advocacia, foram citados por advogados como exemplo de decepção em relação à sentença proferida na semana passada. Para os advogados, o STF aderiu à sanha punitiva e ao Estado policialesco.

Leia a íntegra do discurso de José Roberto Batochio:

Excelentíssimo Senhor Dr. Marcos da Costa, mui digno e operoso presidente da OAB-SP. Presidentes e Representantes das Entidades de Classe dos Advogados do Estado de São Paulo e do Brasil já nominadas. Conselheiros Federais e Estaduais da nossa gloriosa OAB. Demais Dirigentes de Entidades participantes e que prestigiam esta cerimônia cívica. Advogados do meu País. Minhas Senhoras e meus Senhores.

O compromisso primeiro dos advogados brasileiros, foi, é e sempre será com a liberdade e com a dignidade do ser humano, bens mais altos do patrimônio jurídico de cada indivíduo. Mais do que direito fundamental, e como parte da dignidade humana, a liberdade individual é princípio sobre o qual assenta a República (Constituição Federal, artigo 1º, inciso III). É indeclinável dever, pois, respeitá-la e protegê-la.

No Estado Democrático de Direito admite-se, em defesa da sociedade, a privação da liberdade, mediante condenação judicial definitiva. Preceitua a nossa Constituição: “ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, inciso VII).

Fora dos casos de perigo atual ou iminente, que justifica a prisão processual e provisória, somente nessa circunstância, observado o devido processo legal, e com todas as garantias da defesa, pode o Estado privar alguém de sua liberdade. Não fosse assim, a barbárie e o linchamento teriam se reinstalado e seriam situação e prática correntes. Para isso constituímos juízes: para evitar o justiçamento, que marcava a sociedade primária e menos civilizada.

O poder do Estado tem esses limites porque, ética e politicamente, se situa abaixo do homem na escala axiológica. O Estado só existe para que os seres humanos possam viver com liberdade e dignidade. É por isso, por causa da liberdade e da dignidade, que, em nome da cultura e da civilização, proscrevemos os regimes autoritários.

A Constituição de 1988, determina que “ninguém seja submetido a tratamento desumano ou degradante” (artigo 5º, inciso III), e “assegura aos presos o respeito à integridade física e moral” (artigo 5º, inciso XLIX). Entretanto, passados quase 200 anos desde a Constituição Imperial, segundo a qual as prisões deviam ser “limpas e claras”, as unidades do sistema carcerário brasileiro são dantescos cenários de horror e degradação. No Brasil, quem é condenado à perda da liberdade, cumpre de fato pena ainda mais grave, consistente na privação da sua dignidade.

O Supremo Tribunal Federal é composto por pessoas honradas, juristas de reconhecida competência. Por que então afrontam — com a autorização para se privarem de liberdade pessoas ainda não definitivamente julgadas — aquela primeira e pétrea norma, que a Constituição foi buscar na lei natural? Como podem encarcerar quem ainda não foi condenado por sentença definitiva? Entendem por ventura que, cinco ou mais anos depois, possam acolher o recurso do encarcerado sem atrair para si próprios a responsabilidade de sua destruição e de sua dor? Creem-se moralmente irresponsáveis por isso? Imaginam existir reparação possível para esse dano?

Atônita, a sociedade civil tenta compreender a explicação dessa inaceitável e inconstitucional violência, encontrando três fenômenos causacionais.

O primeiro — apontado pela doutrina —, é o de que, tendo recebido da Constituição de 1988 o poder de julgar a lei em tese, o STF desbordou dos seus poderes e competências constitucionais, passando a atuar como legislador anômalo. Logo, o critério de suas decisões deixou de ser jurídico-constitucional, e passou a ser político. Já não é mais a norma insculpida na Constituição, nem a lei processual, nem o regimento interno da própria Corte, que embasa suas decisões, mas sua livre percepção, que se informa, muitas vezes, na veleidade de julgar apenas “as grandes questões nacionais”. Hoje, são dezenas de milhares os processos represados, obstaculizados, às portas dos tribunais superiores, esperando um julgamento que nunca acontecerá; para afastar esse inconveniente, o elevado volume de serviço, e não a justiça, é que passa a ser utilizado como causa de decidir.

Esse primeiro dado causacional liga-se ao segundo: lavam-se as mãos lançando sobre os acusados (e principalmente sobre seus advogados) o ônus da morosidade processual. Como se, para aferição da culpa e da responsabilidade penal, com consequente absolvição ou apenamento, não tivessem importância os tribunais superiores, aos quais têm eles o direito de recorrer. Se os tribunais superiores não servem para isso, por que e para que existem? Somente para sua própria majestade?

A Constituição não afirma que o acusado é sempre inocente. Dispõe, de forma cogente, que ele não pode ser encarcerado enquanto não tiverem sido julgados os seus recursos. Logo — pensam aqueles senhores —, elide-se o efeito suspensivo dos recursos, e se resolve o problema…

Finalmente, parece que a terceira causa do infeliz decisório é satisfazer e aplacar alguns setores da sociedade, que clamam por incruento justiçamento em nome de maior segurança.

Mas, que segurança poderíamos ter fora do Direito? São dele — dizia Pontes de Miranda — os fios invisíveis que sustentam a sociedade.

Após a queda da ditadura, a reconstitucionalização, e a restauração das liberdades, jamais se poderia supor que justamente o Supremo Tribunal Federal, a quem os cidadãos brasileiros confiaram a guarda da Constituição, viesse um dia a golpeá-la tão profundamente.

Exortamos os brasileiros a meditarem sobre o perigo dessa incontinência. Esperamos que unam forças e se movimentem para repudiá-la, em defesa da Charta Magna: esta representa a garantia da liberdade, no presente e no futuro, e, sem ela, ninguém jamais estará suficientemente protegido. Invocamos aqui a memória do professor Goffredo da Silva Telles, de cuja Carta aos Brasileiros tomamos de empréstimo as luzes e a indignação, para, em nome da cidadania, dizer aos senhores ministros: cumpram a Constituição que elaboramos por nossos lídimos representantes; e, se não são capazes de fazê-lo, a alternativa é a renúncia aos cargos que ocupam por delegação do povo soberano. Nenhuma força pode haver, nem mesmo a das armas, que seja maior que a ordem constitucional legitimamente estabelecida. Não há vida fora do Direito, não há liberdade nem legitimidade fora da Constituição!

Muito Obrigado".

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