Passado a Limpo

O caso da promoção do oficial ferido na Campanha de Canudos

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

25 de fevereiro de 2016, 8h05

Spacca
Ainda no Governo Provisório de Vargas havia pendências de vários assuntos que remontavam à República Velha à espera de solução jurídica. Há notícias de requerimento de militar ferido na Campanha de Canudos (1896-97) e que, com base em lei de 1925, pretendia receber diferenças de pagamentos, devido aos ferimentos que sofrera em combate, justificativos do deferimento do benefício pleiteado.

Leitura do parecer dá conta, inclusive, de demorado inquérito militar, com vistas a se apurar se os ferimentos noticiados teriam (ou não) de fato ocorrido. Verifica-se típico caso de Direito Administrativo, no qual o servidor pretende deferimento de benefício, com base em suposta (ou real) disposição legal. Há notícias de que o Ministério da Guerra havia deferido o pedido, ainda que contrariando setor de contabilidade.

Chama a atenção o modo hierático como o texto oficial é confeccionado, gerando no intérprete algumas dúvidas no sentido do deferimento (ou não) do benefício pleiteado, a menos que atente que ao longo do texto o parecerista consignou que em seu entendimento “a dívida seria inexistente”.

Nesse sentido, o do ponto de vista da teoria das fontes, o parecer que segue é interessante registro e ênfase de que a administração também cria Direito, quando o interpreta.

Exmo. Sr. Ministro da Fazenda.

Em ofício de 25 de fevereiro do corrente ano V. Excia. encaminhou à minha consulta o processo, do Ministério da Guerra, relativo a vencimentos atrasados, cujo pagamento foi pedido pelo Tenente-Coronel Arthur Lopes de Castro Pinto. Este oficial é beneficiário da lei nº 4.923, de 30 de janeiro de 1925, que manda contar da data dos ferimentos recebidos em combate a antiguidade de promoção ao 1° posto para os oficiais do Exército aos praças-de-pré que tenham sido feridos em combate, na campanha de Canudos.

Em 1926, esse oficial requereu tais favores, os quais só lhe foram atribuídos por decreto de 25 de abril de 1929, em razão da demora havida na comprovação do fato que justificava essa concessão, pois de seus assentamentos militares não constava o ferimento que ele alegou haver recebido naquela campanha, sendo preciso, para o comprovar, a abertura de um longo inquérito militar.

Em consequência desse decreto, e sendo então major de infantaria o peticionário, contou-se-lhe a antiguidade do posto de 2° tenente da data daquele ferimento (9 de setembro de 1897) a de 1.° tenente, por estudos, de 27 de agosto de 1908, a de capitão, também por estudos, de 12 de novembro de 1913, a de major de 12 de setembro de 1923, e a de tenente-coronel de 20 de setembro de 1928.

A promoção a major se verificara desde 7 de fevereiro de 1929 e a de tenente-coronel a 15 de agosto do mesmo ano, retrogradando, todavia, a primeira a 29 de setembro de 1923, e a segunda a 20 de setembro de 1928, em consequência do referido decreto.

Nessas condições, o tenente-coronel Castro Pinto se julga com direito à diferença de vencimentos de major, de agosto de 1925 a 20 de setembro de 1928, e de tenente-coronel desde esta última data até 15 de agosto de 1929.

O Ministério da Guerra, aliás contra o parecer da sua Diretoria de Contabilidade, deferiu o requerimento, entendendo que, em face da lei de 1925, os oficiais a que ela se refere não podem reclamar vencimentos atrasados, isto é, vencimentos anteriores à data dessa lei; não se considerando tais os que se vencessem após a vigência da lei, mas antes do decreto que a aplica em espécie aos respectivos beneficiários.

Funda-se esta interpretação em que o favor não nasce do decreto, que apenas reconhece o preenchimento dos requisitos de fato que condicionam a sua obtenção, e, sim, decorre diretamente da lei e desde a sua data.

V. Excia. pediu meu parecer sobre dois pontos, a saber:

a) se está prescrita a parte da dívida anterior a 16 de janeiro de 1926;

b) qual a interpretação a ser dada ao art. 2.° do decreto legislativo nº 4.923, de 30 de janeiro de 1925.

Meu parecer é o seguinte:

a) A prescrição da parte da dívida correspondente ao período de agosto de 1925 a 16 de janeiro de 1926, se dívida houvesse seria indisputável.

Do processo consta que o primeiro requerimento do Tenente-Coronel Castro Pinto, pedindo o pagamento da quantia que julga devida, foi apresentado em 17 de janeiro de 1931. As diferenças de vencimentos anteriores a 16 de janeiro de 1926 estariam, pois, incursas na prescrição quinquenal estabelecida no art. 9.° do decreto nº 1.930, de 28 de agosto de 1908.

É certo que desde 14 de agosto de 1926 ele requererá o favor do decreto nº 4.923, mas restritamente à contagem de antiguidade, a qual não acarreta de plano o direito a vencimentos.

b) Todavia, não há que cogitar dessa prescrição parcial, por que, em minha opinião, a dívida por inteiro é inexistente.

Que significa, no decreto n. 4.923, art. 2.°, a ressalva concebida nestes termos: “Os oficiais referidos no artigo anterior não terão direito a vencimentos atrasados”?

Estes vencimentos não são os correspondentes a períodos anteriores ao ato legislativo que outorgou genericamente o favor, ou a períodos anteriores ao decreto do Poder Executivo que aplique a de terminado oficial o favor concedido impessoalmente pela lei. São, sim, todos os vencimentos correspondentes ao posto no período de retrogradação resultante da lei de favor, a qual entendeu conceder uma especial mercê — a retrogradação da antiguidade — com exclusão de vantagem pecuniária por esse fato.

Essa inteligência é a única que harmoniza o decreto nº 4.923 com a lei geral sobre vencimentos de militares, cuja disposição é a seguinte: O soldo integral é devido ao oficial desde a data do decreto da promoção à efetividade do posto até a de sua,reforma ou da exclusão do serviço. Quando algum oficial for promovido contando antiguidade em ressarcimento de preterição que tenha sofrido, declarada explicitamente no respectivo decreto, dever-se-á pagar-lhe o soldo da nova patente desde o dia da antiguidade que lhe foi mandada contar no decreto de promoção. Quando, porém, a antiguidade mandada contar não for em virtude de ressarcimento de preterição, deve-se-lhe pagar o soldo somente da data do decreto, (art. 6.° da lei n. 1.473, de 9 de janeiro de 1906).

Assim, quando o decreto nº 4.923 de 1925 fala nos vencimentos "atrasados" que não devem ser pagos aos oficiais a que manda contar antiguidade retroativamente, tem em vista o sistema legal, vigente, que só abre exceção para o caso de antiguidade mandada contar em ressarcimento de preterição.

Trata-se de lei particular, referente a assunto tratado em lei geral, e que não quis revogar a segunda, confirmando-a, ao contrário, pela disposição de cuja inteligência agora se questiona (Código Civil, art. 4.° da Introdução).

Restituindo todos os papéis atinentes ao assunto, reitero a V. Excia. os protestos de minha alta estima e distinta consideração.

Rio de Janeiro, 29 de abril de 1932.

(a.) Raul Fernandes”.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!