Opinião

Obama sofrerá resistência atípica na indicação de juiz para a Suprema Corte

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25 de fevereiro de 2016, 7h45

Há pouco mais de uma semana, faleceu o justice Antonin Gregory Scalia, da Suprema Corte norte-americana. Nomeado pelo republicano Ronald Reagan, Scalia era conhecido sobretudo por seu notável conhecimento jurídico e por suas ideias conservadoras.

Os anais da corte registram um sem número de casos de grande repercussão em que Scalia se manifestou. Citem-se os precedentes envolvendo direitos de homossexuais, a adoção de sistema público de saúde, ações afirmativas, imigração, controle de armas, pena de morte e aborto. Em todos esses, Scalia manifestou-se favoravelmente aos interesses conservadores, hoje em dia capitaneados pelos partidários republicanos.

Em 2000, no julgamento de Bush v. Gore [1], Scalia se uniu à corrente vencedora, quando a Corte determinou a suspensão da recontagem dos votos suspeitos captados em favor do candidato republicano George W. Bush.

Como se sabe, o poder de tomar decisões políticas é atribuído, normalmente, a órgãos representativos, cujos membros são depositários de votos populares. Os mandatos dos membros dos órgãos representativos, ademais, são temporários, para que possam ser substituídos, na hipótese de não mais representarem aqueles que neles confiaram.

Scalia estava no cargo há quase 30 anos e nele foi alçado sem receber nenhum voto dos americanos. Não obstante isso, a sua convicção política alterou, significativamente, a forma com que milhões de cidadãos iriam viver as suas vidas.

De onde vinha a legitimidade democrática de Scalia e dos membros da Suprema Corte para tomarem decisões políticas?[2]

Essa pergunta comporta algumas respostas possíveis. Uma delas é a do mecanismo de seleção dos magistrados.

Nos Estados Unidos, como no Brasil, o método de investidura dos juízes de Suprema Corte é composto da indicação do presidente da República e da aprovação do nome indicado pela maioria absoluta dos membros do Senado. Nos Estados Unidos, a sabatina dos indicados é um procedimento altamente politizado. A vida pregressa, inclusive a conduta política dos candidatos, é examinada e debatida exaustivamente. Por isso, os nomeados são, em regra, juristas ideologicamente alinhados com o chefe do Executivo e com o Parlamento.

Nesse sentido, quando o assunto é método de escolhas, uma pergunta que costuma vir à tona é esta: por que não um método exclusivamente meritocrático de seleção de juízes constitucionais? A resposta é simples.

Anualmente, a Suprema Corte julga dezenas de hard cases, assim chamados os casos onde não há resposta pronta na Constituição e que, por isso, transcendem a fronteira do direito e penetram na seara política, no que se incluem os casos citados acima. Isso significa que os desideratos ideológicos dos nove membros que compõem a Corte vão influenciar substancialmente a vida dos cidadãos.

A figura dworkiana do juiz Hércules [3], capaz de lutar contra tudo e contra todos para proferir uma decisão absolutamente neutra [4], está superada. Há muito, a hermenêutica constitucional comprovou a influência que as pré-compreensões exercem sobre a produção de conhecimento.

Assim, atribuir aos detentores de legitimidade eleitoral o poder de investidura faz com que os membros dos tribunais não estejam muito afastados ideologicamente da opinião pública majoritária. A importância disso decorre do fato de que, afinal, a Suprema Corte não consiste em órgão meramente legal, mas instituição política, na medida em que decide questões politicamente relevantes [5].

É claro que o procedimento não está isento de falhas. Poder-se-ia dizer que a opinião pública majoritária do momento em que Scalia foi sabatinado e a atual são diferentes, opostas até. Com efeito, nenhum sistema será perfeito, na medida em que o excesso de alinhamento político entre o magistrado e a opinião pública acabaria comprometendo a independência judicial, igualmente necessária à jurisdição constitucional. O que se busca é uma escolha proporcional entre independência e alinhamento político.

Em suma: a escolha presidencial e a arguição altamente politizada [6] do Senado, que leva em conta diversos fatores, como o passado, a vida pública e privada e a personalidade do candidato, é essencial à democracia, além de mitigar a crítica, comumente atribuída à jurisdição constitucional, da dificuldade majoritária e da legitimidade que decorre do voto dos cidadãos.

Por que, então, Obama sofrerá resistência no Senado?

Primeiro, porque o partido democrata detém 44% (do total de 100, os republicanos têm 54 e os democratas 44 e dois são independentes) das cadeiras no Senado. Isso significa que, em tese, a maioria absoluta dos membros do Senado só aprovaria um candidato cuja ideologia seria alinhada com os republicanos.

Some-se a isso o fato de que o presidente se encontra no último ano de mandato. Quando o presidente está em vias de deixar o cargo, a legitimidade democrática, que poderia ser transferida ao candidato, é proporcional ao tempo de mandato remanescente. É que, em pouco tempo, outro presidente será o detentor das credenciais democráticas de que goza um presidente eleito. Ele será democrata ou republicano. Haveria, assim, a carência de um dos pilares de transferência de legitimidade democrática ao sabatinado.

Imagine-se, assim, a seguinte situação. A posse do presidente dos Estados Unidos ocorre no dia 19 de janeiro do ano seguinte às eleições. Contudo, em outubro do ano eleitoral já é possível saber o nome do candidato eleito. Suponha-se que o presidente eleito seja ideologicamente diferente do presidente que deixa o cargo. Entre outubro e o dia 19 de janeiro do ano seguinte, o presidente derrotado pode escolher um juiz para a Suprema Corte. Todavia, essa escolha poderá carecer de credenciais democráticas que os juízes constitucionais recebem da legitimidade presidencial. No Brasil, esse ponto é menos evidente, uma vez que, em virtude sobretudo da existência da figura da aposentadoria compulsória, os presidentes nomeiam, normalmente, bem mais juízes que os presidentes norte-americanos. Portanto, não há nada de estranho que a resistência ao candidato de Obama seja de certo modo atípica na atual conjuntura.

Caso o presidente Obama decida escolher o sucessor de Scalia, ele deverá indicar jurista técnico e neutro, que seja palatável aos senadores republicanos.

Sendo assim, um candidato como Laurence Tribe, conhecido por ser um acadêmico liberal, dificilmente veria seu nome aprovado, a despeito de ser um dos mais respeitados professores de direito constitucional dos Estados Unidos.

Srikanth Srinivasan, juiz do segundo tribunal mais importante dos Estados Unidos, o District Columbia District Court. Srinivasan foi indicado e nomeado ao Tribunal de Apelação por Obama, após votação unânime no Senado, composto por republicanos como Ted Cruz e Marco Rubio. Além disso, Srinivasan exerceu cargo importantíssimo na chefia do Ministério Público, no governo Bush, o que lhe confere característica de neutralidade ideológica. É um dos nomes que, segundo especialistas, teria menos dificuldade em alçar ao “templo de mármore”.


1 Bush v. Gore (531 U.S. 98 (2000))

2 Para uma análise pormenorizada, V. Rodrigo Brandão, Supremacia judicial versus Diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição?.

3 V. Ronald Dworkin, o império do Direito.

4 Essa síntese da figura extraída de Ronald Dworkin, o império do Direito, é colhida de Patrícia Perrone Campos Mello. Cf. http://www.conjur.com.br/2016-jan-17/entrevista-patricia-campos-mello-professora-direito-uerj

5 Robert Dahl, Democracy and its critics.

6 Desde a independência norte-americana, o Senado já rejeitou 25 indicados para o Supremo Tribunal, cerca de 20% dos nomes escolhidos.

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