Opinião

Fazer justiça, definitivamente, não é sinônimo de ser justiceiro

Autor

  • Rodrigo Reis Bella Martinez

    é advogado sócio da área Cível Empresarial de Whitaker Salles Bella Martinez Advogados. Especialista em Direito Imobiliário pela EPD e em Direito Processual Civil pela FGV (em curso).

24 de fevereiro de 2016, 15h01

A comunidade jurídica assistiu estarrecida à impressionante guinada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na tarde de 17 de fevereiro de 2016, aparentemente pondo fim à presunção de inocência.

É isso mesmo, apesar de a Constituição Federal prever de forma muito clara que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", o texto foi absolutamente ignorado.

Segundo o novo entendimento, na esteira do que já havia manifestado o famoso juiz Sergio Moro, após o julgamento do recurso em instância de apelação já seria possível iniciar-se o cumprimento provisório da pena.

Claro que a sociedade não suporta mais a corrupção generalizada e a sensação de impunidade que (até então, pelo menos) reinam em nosso país. Mas uma decisão como essa, que viola tão flagrantemente um direito fundamental do cidadão, deve ser motivo de profunda reflexão de toda a coletividade.

Basta olhar a recente história brasileira no século passado para se constatar por quantos anos fomos vítimas de regimes autoritários e de desrespeito a direitos básicos da população.

O sistema democrático adota uma premissa cristalina: muitos culpados ficarão impunes para que nenhum inocente seja injustiçado. A salvaguarda dos inocentes é o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Quão ampla? Tanto quanto o ordenamento jurídico permita. Se o ordenamento é restrito, que seja ampliado. Se é extenso, que seja modificado e reduzido. Mas assistir à supressão de um Poder da República dessa forma é algo muito preocupante.

Logo agora quando nossas instituições pareciam amadurecer e se tornar mais impessoais, aplicando a lei contra ex-governantes, parlamentares ou grandes empresários, surge uma bomba como essa, capaz de comprometer justamente o sistema jurídico-democrático e seus órgãos e instituições.

A proposta deste artigo é analisar o ocorrido segundo uma visão cível, onde não é a liberdade nem a transgressão a normas penais que estão em jogo, mas questões patrimoniais, como a propriedade, a posse, o fundo de comércio, a propriedade intelectual, o direito à herança, a reparação de danos, a livre concorrência, o título de crédito, a compra e venda e tantos outros negócios jurídicos ou quaisquer dos demais temas de natureza civil.

Num momento de crise econômica (que na verdade é uma crise política e de confiança) em que o país precisa estimular a realização de negócios, que gerarão empregos, tributos e desenvolvimento, e às vésperas da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, um precedente como esse vindo de nossa mais alta Corte é assustador.

Pois como um investidor, um empreendedor (nacional ou estrangeiro, não importa, apesar de que para este, acostumado a outros sistemas mais estáveis, a situação seja quase incompreensível) pode ter alguma segurança jurídica em relação aos riscos que assumirá naturais de qualquer atividade econômica?

Se uma garantia fundamental tão nobre quanto a presunção de inocência é relativizada, o que se dirá em relação a questões menos nobres, digamos assim?

Que certeza um proprietário tem de que sempre poderá usar, gozar e dispor de seu bem, assim como de reivindicá-lo? Ou seu direito será relativizado de acordo com o caso concreto, se porventura parecer "mais justo" ao julgador?

Ou ainda que tal propriedade não lhe será ceifada em caráter provisório para se ver cumprida a propalada efetividade da demanda?

Pois não foram estabelecidas as consequências para quem cumprir pena provisória e for considerado inocente em momento posterior…

Não se trata de entrar numa interminável discussão sobre ponderação de direitos. E nem de menosprezar princípios processuais importantes como o da efetividade processual ou da duração razoável do processo.

O objeto da análise é mais simples: segurança. Ou o direito positivo existe e é respeitado ou não há Direito. E sem Direito, não há sociedade possível (pelo menos no Brasil e nos dias de hoje…).

O Poder Judiciário não pode suplantar o Legislativo. Apenas não pode. Sequer o conceito de ativismo judicial contempla essa possibilidade, já que ele aborda, segundo Luís Roberto Barroso, (i) a aplicação da Constituição quando ainda não há texto legal ordinário, (ii) a declaração de inconstitucionalidade de normas de maneira mais ampla e (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público.

Ou seja, ativismo judicial não significa que o Judiciário possa dizer que o que está escrito não é o que está escrito, por mais que ele possa interpretar o que está escrito ou modular os efeitos do escrito. O que está escrito está escrito e ponto. Julgadores jamais podem reescrever o texto; pelo contrário, eles devem zelar por ele, aplicá-lo.

Fazer justiça, definitivamente, não é sinônimo de ser justiceiro!

Ou será que para curar a doença é razoável matar o doente?

Que a comunidade jurídica em geral tenha serenidade nesse momento peculiar de nossa nação e saiba perceber que a estabilidade do pacto social é frágil e a segurança jurídica e a pacificação de conflitos são os fins máximos do Direito, o que só pode ser conseguido com absoluto respeito às regras do jogo.

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