Opinião

Condenação sem trânsito em julgado não permite interpretação

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24 de fevereiro de 2016, 7h45

Os recursos, criminais ou de qualquer outra espécie, demoram para serem julgados? Sim, muito. Quem tem dinheiro pode contratar advogado “particular” mais experiente para ficar recorrendo e assim conseguir permanecer mais tempo em liberdade e até mesmo alcançar eventualmente a prescrição do crime? Pode. Daí fazer todo o sentido o que disse um ministro: a decisão de permitir a execução provisória da pena diminuirá a chamada seletividade do sistema penal [1], pois os pobres não têm dinheiro para contratar advogados… Ãh?! Entendi: para melhorar o acesso da população pobre ao sistema público de saúde o Estado tem que proibir o cidadão que tem dinheiro de contratar médicos e hospitais particulares…. Nossa, faz todo o sentido! Como ninguém pensou nisso antes? Assim, com essa lucidez, ao invés de melhorar a rapidez do sistema judiciário, com melhores técnicas de administração dos cartórios [2], mais ministros etc., disse o Supremo Tribunal Federal que a solução para a lentidão do sistema judiciário é dar mais efetividade a decisões de tribunais inferiores.

É verdade, os ministros trabalham muito, são muitos recursos — já ouço aquela ideia: vamos acabar com os recursos —, e por isso não sabem que 52% dos Habeas Corpus e Recursos em HCs impetrados no Superior Tribunal de Justiça e no STF entre 2008 e 2012 foram concedidos para corrigir erro na fixação da pena ou do regime inicial de cumprimento de pena. Isso, como mostra a pesquisa da FGV [3], porque juízes de 1º grau e tribunais inferiores recalcitram em obedecer às posições jurisprudenciais consolidadas nos tribunais superiores, como, por exemplo, a Súmula 444 do STJ: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”.

Mas não se preocupem, o STF vai resolver esse problema rapidinho, pois, se no RE 591.054, julgado em 17 de dezembro de 2014, por 6 votos a 4, havia decidido que “Ante o princípio constitucional da não culpabilidade, inquéritos e processos criminais em curso são neutros na definição dos antecedentes criminais”, no HC 94.620, julgado em 24 de junho de 2015, apesar de o writ ter sido concedido, o: “Tribunal se pronunciou no sentido da possibilidade de rever a tese firmada no RE 591.054, e, nesse sentido, o Ministério Público Federal envidará esforços para identificar um caso para submeter ao Plenário oportunamente”.

Detalhe, esse HC 94.620, distribuído em maio de 2008, teve seu julgamento iniciado em outubro de 2008, ainda com a participação do finado ministro Menezes Direito, quando foi afetado ao Tribunal Pleno. O julgamento recomeçou em março de 2009, mas foi interrompido com o pedido de vista do ministro Cezar Peluso, que se aposentou antes de votar e foi sucedido pelo ministro Teori Zavascki, que somente devolveu o writ a julgamento em junho de 2015, quando já compunham a corte os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, sendo certo que este último, diante da vontade do Plenário de, num julgamento dum HC, suplantar a jurisprudência com repercussão geral fixada no RE 591.054, ressaltou:

— “é claro que pode mudar a composição, e mudar a percepção do direito, mas, se, meses depois, nós revertermos uma posição firmada em repercussão geral, a Jurisprudência não se consolida nunca”.

Ao que a ministra Cármem Lúcia retrucou:

—“a meu ver, o fato de ser recente a jurisprudência até auxilia, porque não trouxe ainda maiores consequências”.

É o reconhecimento da inutilidade das decisões do STF, que não geram maiores consequências nem quando possuem repercussão geral, meu Deus! E o ministro Luiz Fux, sem se dar conta de que aquele writ estava sendo julgado sete anos depois da sua impetração por culpa exclusiva da demora dos ministros do STF, teve a coragem de dizer:

— “Essa manifestação da ministra Cármen me parece irrespondível, não se pode julgar uma pessoa que nunca cometeu delito com aquela que comete delitos, que não termina o processo por razões até de atos protelatórios da defesa”.

E o ministro Luís Barroso aproveitou e, defendendo os advogados, externou essa pérola:

— “como não se permite a execução da decisão antes do trânsito em julgado, isso passou a fomentar o fato de que todo advogado criminal, por dever de ofício, vira um militante da procrastinação, para impedir o trânsito em julgado e, consequentemente, a execução da decisão. E acho que é um destino inglório impor aos advogados o papel de ter que ficar entrando com recurso atrás de recurso. O ministro Toffoli teve, recentemente, um caso que havia vinte e cinco recursos, e não é possível acusar o advogado, o advogado está jogando de acordo com as regras”.

Vamos fazer as contas, aleatoriamente, do destino inglório do advogado criminal militante da procrastinação: dos 25 recursos, 1 RE e um RESP [4]; 10 AgReg [5]; 2 EDv [6]; 2 EI [7]; e 9 EDCL [8], e tem-se o total de inglórios 175 dias. Esse é o tempo que o militante da procrastinação tem nas suas mãos. Perdeu um dia sequer desses 175, transitou em julgado e o cliente vai preso. O resto dos anos e anos e anos que os processos demoram para ser julgados é culpa exclusiva dos ministros.

Mas voltando à mudança da jurisprudência, sim, a jurisprudência do STF muda apenas e tão somente em razão da alteração da sua composição. Além disso, quando há interesse, o Poder Judiciário envida todos os esforços para julgar, não se olvidando do que o ministro Luís Barroso disse no HC 94.620:

— “se não tiver nenhum outro caso no Tribunal, poder se requisitar, ou a própria Presidência comunicar aos tribunais estaduais ou regionais federais que, quando chegar a questão x ou y, encaminhe para o Supremo, e aqui a gente distribui e rediscute”.

E o princípio da inércia da jurisdição? O artigo 543-B, do CPC, em seu §1º, determina que: “Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal”, não cabendo ao STF, evidentemente, avocar processo de seu interesse para julgar conforme a composição do dia…..

Não é que não se possa mudar de opinião, pois quem não troca de camisas ou de ideias é porque não as têm, como costuma dizer o ministro Marco Aurélio. Mas “interpretação” tem limites, só se interpreta o dúbio, e o texto constitucional é claríssimo: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória”. Certo ou errado foi isso o que o constituinte garantiu ao cidadão.

Um ministro até tentou opor a expressão “culpado” à “condenado”, e dizer que a garantia constitucional da não culpabilidade prévia referir-se-ia somente à análise da prova que, na dúvida, deve ser interpretada a favor do réu. Mas isso só até a segunda instância, disse o ministro, porque os recursos excepcionais, como se sabe, não se prestam a reexaminar fatos. O argumento é plasticamente bonito, mas não completamente correto. Há inúmeras questões de direito absolutamente admissíveis em recursos excepcionais que podem anular condenações proferidas em segundo grau, e o ministro sabe disso.

Dosimetria e regime inicial de cumprimento de pena são matérias exclusivamente de direito que podem ser discutidas em recurso especial, por exemplo. Mas um ministro garantiu que o índice de reforma por meio dos recursos excepcionais é baixo, em torno de 5%. Sim, porque como se sabe os tribunais superiores são pródigos em não admitir, não conhecer, não processar, não dar seguimento aos recursos excepcionais pelas mais variadas causas, daí porque o alto índice de concessão de HCs e RHCs, que por não terem — ou não tinham — peias, como dizia mas não diz mais o ministro Marco Aurélio, eram utilizados para se corrigir a injustiça, o que, com a reedição do AI-6 [9], proibindo a utilização do writ como substitutivo do recurso ordinário constitucional e seus reflexos na jurisprudência dos tribunais inferiores [10], ficou e ficará cada vez mais difícil.

Outro argumento foi emprestar a inconstitucional mitigação da não-culpabilidade da Lei da Ficha Limpa — que surte efeitos depois de condenação por órgão colegiado, mesmo que não exista trânsito em julgado —, para se sustentar a constitucionalidade da execução provisória da pena, transformando in dubio pro reo em in dubio pro societate. Um argumento meio correto aqui, colocado ao lado de outro meio correto ali, e no final tem-se um mosaico que parece uma decisão correta, mas não passa de um amontoado de argumentos falaciosos.

Outro ministro disse que na interpretação da Constituição Federal tem-se que “ouvir o sentimento da população”, “das ruas”, que é de total impunidade e que não entende como uma pessoa acusada de homicídio continua durante anos aguardando o julgamento solta, mesmo após ser condenada pelo Tribunal do Júri ou em 2ª Instância. Isto é, para tal ministro, trânsito em julgado significa aquilo que a sociedade quer: um julgamento mais rápido, um rito sumarissilíssimo ou linchamento público, tal como fizeram com uma mulher no Guarujá, depois de boatos falsos sobre sequestro de crianças para rituais de magia negra [11]; ou como faz a Polícia Militar com aqueles que prende [12], ou como faz o chamado Tribunal do PCC [13]. Faz sentido, num país em que a única política que conseguiu diminuir a taxa de homicídios foi a ordem do PCC: “não pode mais matar nas ruas” para não atrair a atenção da polícia e com isso prejudicar o tráfico [14]…

E aí completou outro ministro com algo como: a execução provisória da pena amplifica a função de prevenção geral da pena [15] e, portanto, deve ter ele pensado, reduz a criminalidade. Nossa, obrigado STF! Faz 20 anos que me mudei para São Paulo e nunca usei relógio com medo de assalto. Amanhã vou comprar um Rolex porque realmente acredito que os assaltantes agora procurarão emprego com medo de serem presos depois de condenados em 2ª Instância. A única vantagem de tal interpretação é que não precisaríamos mais ouvir tanta coisa, vamos dizer assim, com roupagem jurídica. Vamos trocar o STF por um Tribunal do PCC. Segundo a interpretação dos ministros, seria uma justiça melhor, até mesmo porque, disse um deles: justiça que tarda é justiça que falha. Com a licença poética que o momento exige, tão fazendo hora extra no mundo, diria um irmão num debate [16]...

E um ministro bem lembrou que se existisse um SuperSupremo — cruz credo! —, certamente algumas das decisões do STF seriam reformadas, de forma que a existência do STF não garante a reforma dos erros das instâncias inferiores — até mesmo porque os recursos excepcionais não se prestam a isso, mas apenas para uniformizar a interpretação da Constituição Federal e da Leis Federais —, e concluiu: “temos que abandonar essa incansável pretensão de fazer justiça no caso concreto”. Aff, cansei de tanta justiça.

E se a justiça errar? Fique tranquilo, disse um dos ministros, as decisões de segunda instância são proferidas por “três desembargadores experientes em estado adiantado de carreira" (sic)…. Mais parece um estado adiantado de esquizofrenia, que tem como um dos seus sintomas a fuga da realidade, porque dois dias antes o próprio STF ao julgar o HC 101.476 [17] decidiu não existir violação da garantia do juiz natural pelo fato de o Tribunal de Justiça de São Paulo ter a solução criativa de criar câmaras de julgamento extraordinárias compostas por juízes convocados de primeiro grau, mesmo que nenhum desembargador tenha voto na decisão….

Tudo bem. Mas e se mesmo assim o Poder Judiciário errar? E se mesmo assim aqueles 52% dos presos tiverem passado mais tempo preso do que manda a lei e a Constituição em uma prisão degradante e sub-humana, como o próprio STF recentemente reconheceu no julgamento do RE 592.581 [18], o que farão? Ah, sei, disse um dos ministros: processa o Estado requerendo uma indenização em dinheiro e fica esperando receber o precatório. É isso mesmo?

Ou será que aí, num julgamento condenatório de segundo grau, em que o Estado que é o grande litigante que enche o Poder Judiciário de recursos absolutamente protelatórios, o STF garantirá ao preso o direito de executar provisoriamente a sentença? Lembremos que o artigo 520, do Código de Processo Civil, admite a execução provisória de sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo desde que se garanta, no caso da reforma da sentença, a reparação dos danos sofridos e, no caso de levantamento de depósito em dinheiro ou dos quais possa resultar grave dano ao executado, dependem de caução suficiente e idônea. Isto é, tem-se mais garantias contra execuções provisórias de dinheiro do que de pena privativa de liberdade.

E a questão sobre o dever de o Estado indenizar preso submetido a superpopulação carcerária e outras circunstâncias insalubres e degradantes está pendendo de julgamento no STF, no RE 580.252, distribuído em março de 2008 e que até agora conta com apenas 3 votos, nesse ritmo… até os inglórios advogados militantes da procrastinação sentirão inveja!

De toda a forma, nenhum ministro se dignou a tentar interpretar a expressão “até trânsito em julgado”. Algum hermeneuta se habilita? Um ministro disse algo como “não se pode ter apego à literalidade da Constituição Federal”…. Hoje perde-se o apego à literalidade sobre a garantia da não culpabilidade prévia, amanhã sobre a necessidade de decisão judicial para violar o sigilo bancário [19]….

O processo é lento e o bagulho é lôco…


1 Certamente o ministro estava falando da seletividade secundária que trata do momento em que o Estado passa a perseguir o cidadão até colocá-lo na cadeia e que recai predominantemente sobre as camadas sociais menos favorecidas, em contraposição à seletividade primária, que ocorre quando o legislativo elege condutas para rotular de criminosas, escolhendo as praticadas pelas classes sociais menos favorecidas, como os crimes violentos contra o patrimônio.

2 O impacto da gestão do funcionamento dos cartórios judiciais sobre a morosidade da justiça brasileira: diagnóstico e possíveis soluções, Coord. Carolina Bonadiman Esteves, Ministério da Justiça, Secretaria da Reforma do Judiciário, 2011, disponível em http://www.justica.gov.br/sua-protecao/reforma-do-judiciario/cejus/publicacoes/publicacoes/funcionamento-dos-cartorios-judiciais-2011.pdf

3 Panaceia universal ou remédio constitucional? Habeas corpus nos Tribunais Superiores —http://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/u100/relatorio_final_pesquisa_hc_ipea-mj_-_junho_-_2014_-_para_publicacao.pdf

4 para cada um o advogado, depois de intimado, tem 15 dias de prazo para interposição, total 30 dias de procrastinação

5 totalizando 50 dias

6 Embargos de divergência, totalizando 20 dias de inglória

7 Embargos Infringentes, total 30 dias de procrastinação

8 Embargos de Declaração, que no STF o prazo é de 05 dias e totalizando inglórios 45 dias

9 “Art. 1º – Os dispositivos da Constituição de 24 de janeiro de 1967 adiante indicados, passam a vigorar com a seguinte redação:

(…)Art. 114 – Compete ao Supremo Tribunal Federal: (…)

II – julgar, em recurso ordinário:

a) os habeas corpus decididos, em única ou última instância, pelos Tribunais locais ou federais, quando denegatória a decisão, não podendo o recurso ser substituído por pedido originário ’”. BRASIL. Ato Institucional nº 6. 1º de fevereiro de 1969. Altera a composição e competência do Supremo Tribunal Federal, amplia disposição do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968 e ratifica as emendas constitucionais feitas por Atos Complementares. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-06-69.htm, acessado em 1º de julho de 2015.

10 Para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o habeas corpus é: “Instrumento de garantia do direito de ir e vir, reservado aos cidadãos ordeiros, que fazem bom uso de sua liberdade, o habeas corpus não pode ser degradado à função de ‘chave de cadeia’ para quem assalta quando está indo, e torna a assaltar quando está vindo” (HC nº 2041743-93.2015.8.26.0000, 9ª Câmara Criminal, Rel. Des. Souza Nery, j. 07.05.15).

15 O objetivo da pena é essencialmente de exercer uma influência na comunidade geral, ameaçar, pois ao cometer fica submetido a uma determinada pena, prevenir a prática de crimes.

16 Nome os membros da facção dão ao julgamento.

18a situação dramática e cruel constatada no modelo penitenciário nacional, que se vive, no Brasil, em matéria de execução penal, um mundo de ficção que revela um assustador universo de cotidianas irrealidades em conflito e em completo divórcio com as declarações formais de direitos” bem como a “situação precária e caótica do sistema penitenciário brasileiro, cuja prática, ao longo de décadas, vem subvertendo as funções primárias da pena, constituindo, por isso mesmo, expressão lamentável e vergonhosa da inércia, da indiferença e do descaso do Poder Executivo, cuja omissão tem absurdamente propiciado graves ofensas perpetradas contra o direito fundamental, que se reconhece ao sentenciado, de não sofrer, na execução da pena, tratamento cruel e degradante, lesivo à sua incolumidade moral e física e, notadamente, à sua essencial dignidade pessoal

19 http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI234057,21048-STF+decide+se+bancos+podem+passar+dados+de+contribuintes+direto+ao

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