Tribuna da Defensoria

O defensor público pode orientar o interrogatório do acusado?

Autor

  • Caio Paiva

    é defensor público federal e chefe da Defensoria Pública da União em Campinas/SP. Especialista em Ciências Criminais. Professor de Processo Penal e Direitos Humanos do Curso CEI. Coeditor do Clube do Direito (www.clubedodireito.com). É autor dos livros Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro e Prática Penal para Defensoria Pública e coautor do livro Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos.

23 de fevereiro de 2016, 8h15

Calamandrei dizia que “a querela entre os advogados e a verdade é tão antiga quanto a que existe entre o diabo e a água benta”[1]. Não explorarei, aqui, toda a complexidade desse tema, limitando a abordagem apenas para o que diz respeito à possibilidade de o defensor público orientar o interrogatório de seu assistido.

Pois bem. A Constituição Federal garante ao acusado o direito ao silêncio (artigo 5º, LXIII). Assim, também a CADH (artigo 8.2.g) e o PIDCP (artigo 14.3.g) asseguram-lhe o direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo nem a confessar-se culpado. Embora esses comandos normativos não consagrem expressamente um direito de mentir, não há nenhuma sanção para o acusado que faltar com a verdade em seu interrogatório, exceto se imputa a outrem crime de que o sabe inocente, quando poderá incorrer nas penas dos crimes de denunciação caluniosa (artigo 339 do CP) ou de calúnia (artigo 138 do CP), e ainda quando faz autoacusação falsa, assumindo autoria de crime inexistente ou praticado por outrem (artigo 341 do CP). Fora dessas hipóteses, pode o réu mentir, seja negando a participação no fato, seja apresentando alguma justificativa que exclua a ilicitude ou a culpabilidade da conduta, sem que disso lhe resulte qualquer prejuízo. Nesse sentido, já decidiu o STF:

“(…) O direito de permanecer em silêncio insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E nesse direito ao silêncio inclui-se, até mesmo por amplitude, a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal” (HC 68929, relator ministro Celso de Mello, 1ª Turma, j. 22/10/1991).

Se o réu pode ficar em silêncio e até mesmo faltar com a verdade, até que ponto o defensor público pode orientá-lo nesse sentido? Embora a experiência prática já tenha me demonstrado que as peculiaridades do caso concreto contribuem substancialmente para o grau de orientação sobre o conteúdo do interrogatório, penso que podemos trabalhar aqui com o que denominarei de orientação agressiva e orientação reflexiva.

Por orientação agressiva, quero designar aquela orientação que dita expressamente o caminho a ser seguido no exercício da autodefesa do assistido no interrogatório. Aqui, portanto, o defensor público diz para o acusado: “Você deve ficar em silêncio” ou “Você deve mentir sobre esse ponto”. De outro lado, a orientação reflexiva respeita a autodeterminação do acusado e trabalha mais a questão do aconselhamento jurídico, explicando as consequências de cada manifestação verbal, sem, contudo, sugerir expressamente a sua adoção. Por isso, aqui o defensor público apenas diz para o acusado: “Você tem o direito de ficar em silêncio e, omitindo esse ponto, a sua situação pode ficar menos prejudicial por isso ou por aquilo…” ou “Se você mentir sobre a sua participação no fato, não estará sujeito a nenhuma sanção…”.

Apesar de a complexidade da defesa criminal às vezes dificultar uma rígida separação entre esses procedimentos, considero a orientação reflexiva mais segura para o defensor público, e isso porque ela enfatiza o assessoramento jurídico, e não a condução agressiva da defesa do acusado, havendo aqui, portanto, um aconselhamento sobre a consequência de cada manifestação de pensamento do assistido, e não, repita-se, o sugestionamento para falar a verdade, mentir ou omitir.

Concordando com essa visão, Roxin entende que o defensor possa informar ao acusado sobre a impunidade das negações contrárias à verdade, o que, em seu entender, demonstra as limitações da obrigação à verdade pelo defensor, mas não a sua inexistência[2]. Ainda que com alguma divergência no que diz respeito ao “dever de verdade”, a lição de Figueiredo Dias pode reforçar o acerto da orientação reflexiva:

“Cumpre antes de tudo ao defensor prestar ao arguido o mais completo e esclarecedor conselho jurídico de que for capaz. Não deve aquele, com efeito, limitar-se a estar ao lado do arguido, a assisti-lo ou representá-lo, nas suas diversas intervenções processuais: a assistência ou a intervenção só ganham sentido quando cada intervenção seja, sempre que possível, precedida do esclarecimento da situação jurídica material e processual. É claro, porém, que logo nesta matéria pode começar a surgir, para o defensor, o conflito entre o seu dever de defesa e a sua participação na descoberta da verdade e na justa realização do direito. Contra o seu dever de verdade (…) atuará o defensor que aconselhe o arguido a produzir afirmações inexatas ou que sabem serem falsas — mesmo quando elas possam determinar uma absolvição ou uma atenuação de pena”[3].

Importante que o defensor observe com muito cuidado as circunstâncias do caso concreto, havendo situações em que a orientação reflexiva poderá — inclusive — aconselhar o assistido sobre o benefício de uma confissão quando há demonstração cabal da prática do crime, sem que exista nenhuma causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade. Manoel Pedro Pimentel, em obra clássica sobra a prática da advocacia criminal, faz a mesma advertência: “Assim, se há demonstração cabal da autoria do fato delituoso imputado ao constituinte, será em vão orientar a defesa no sentido da negativa. Inútil será o afã de sustentar uma sedutora legítima defesa, quando as provas não corroborem as assertivas do constituinte”[4].

O defensor público não deve se privar nem tampouco ter qualquer crise de consciência por orientar o interrogatório de seu assistido. Trata-se de uma decorrência do direito do assistido à ampla defesa, o que envolve o assessoramento jurídico integral, inclusive sobre o que falar, sobre como falar e sobre se deve falar ou se calar no interrogatório. Nesse sentido, a preciosa lição de Juarez Cirino dos Santos:

“O direito de consultar advogado antes do interrogatório e o direito de permanecer calado (ou de não responder perguntas) nos interrogatórios podem prevenir impropriedades semânticas, impedir declarações infelizes e evitar versões equivocadas do fato — frequentes em acusados com recursos linguísticos limitados, como a clientela do sistema penal —, com efeitos desastrosos sobre as teses de defesa. Mas a informação de direitos tem significado mais relevante: reconhece o direito do acusado ser orientado pelo Defensor sobre o que falar, sobre como falar e, mesmo, se deve falar ou calar nos interrogatórios”.

E prossegue o Cirino dos Santos para dizer que:

“Como sabem os advogados criminais, o interrogatório do acusado é a base do discurso de defesa: reconhecer a importância da orientação jurídica sobre o conteúdo e a forma da fala do acusado significa admitir (a) que acusado e defensor devem preparar o interrogatório e (b) que o interrogatório deve conter a descrição mais adequada à defesa criminal. Esse é o claro sentido do direito de consultar advogado antes do interrogatório e do direito de calar nos interrogatórios. Nenhuma censura contra a preparação do discurso de autodefesa pelo acusado e seu defensor (…) Em poucas palavras, a informação de direitos do acusado é pressuposto do exercício da ampla defesa, a mais importante garantia individual dos acusados no processo penal”[5].

Finalmente, Cirino dos Santos conclui pela natureza conflitual da defesa penal, ressaltando que “(…) o acusado só tem o defensor para enfrentar os recursos humanos e tecnológicos do aparelho repressivo do Estado”, e afirmando, ainda, que “saber disso pode fazer grande diferença na defesa criminal”[6].

Para que o processo penal não se converta, portanto, num mero ritual de passagem para o assistido, que chega(ria) como acusado e inevitavelmente sai(ria) como condenado, o defensor público pode perfeitamente orientar o desenvolvimento daquele no seu interrogatório, tanto no que diz respeito ao conteúdo da fala quanto no tocante à forma de se expressar.


[1] CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 77.
[2] ROXIN, Claus. Pasado, presente y futuro del Derecho Procesal Penal. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2007, p. 53-54.
[3] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1974 (reimpressão de 2004), p. 487-488.
[4] PIMENTEL, Manoel Pedro. Advocacia Criminal: teoria e prática. São Paulo: RT, 1965, p. 173-174.
[5] SANTOS, Juarez Cirino dos. Comunicação para Advogados Criminalistas. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2013/01/Comunicação-para-Advogados-Criminais.pdf. Acessado no dia 15/02/2016.
[6] Comunicação para Advogados Criminalistas, idem.

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    é defensor público federal, chefe da Defensoria Pública da União em Guarulhos (SP), especialista em Ciências Criminais e professor do curso CEI. É autor do livro "Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro" (2015) e coautor de "Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos". Sua página no Facebook: www.facebook.com/professorcaiopaiva.

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